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Scream, sidney, scream!

Flyn Pinkman – 2070

Eu acordei com a raiva ancestral. Uma coisa que foi passada por muitas gerações na família e até eu, o cético, aprendi a aceitar sua validade. Assim que me desvinculei dos indulgers, também me desvinculei do mundo e naquele ponto somente tinha minha ciência e o apoio do meu pai nas pesquisas. Mas eu queria trazer à tona a raiva ancestral. Ora, já que o nome referia à ancestralidade e que nossa espécie é a mais raivosa e destrutiva que já existiu nesse planeta, decidi procurar na nuvem por algum registro de ato violento cometido pelos antepassados. De certo encontrei muitos registros detalhados, mas eu queria alguma coisa minimamente tragicômica!
Foi nesse ímpeto que acabei entrando em contato com filmes do século passado e dei de cara com um trabalho que eu tive muita dificuldade pra caracterizar. Em alguns momentos o longa metragem dava a impressão de que queria assustar garotinhas de 10 anos de idade, em outros ele parecia querer evocar algo como comédia. Você tenta avaliar o trabalho de outra época imparcialmente e considerando coisas como o contexto histórico, mas não dá. Eu assisti o filme rindo do começo ao fim. Não sei se era um filme pra adolescentes retardados, se as pessoas naquela época eram retardadas ou se era pra ser um filme de comédia.

- Flynn, ta ocupado? – perguntou Emanuel pela linha de emergência
- Porra, Emanuel, ta usando essa linha indulger comigo? – perguntei impaciente
- Essa linha é minha.
- Tá, tudo bem, o que você quer.
- Decidi entrar pro treinamento. Vou vestir a porra do traje
- Você sabe que essa porra arrancou meus dois braços, não sabe?
- Bem, os braços novos que você recebeu funcionam bem. Isso não será problema.
- Tem certeza que vai suportar a dor?
- É o que vamos descobrir!
- E você quer satisfazer a quem com essa porra? Meu pai?
- Eu quero satisfazer algo imaterial. Alguma coisa essencial que existe dentro de todos, inclusive de mim. I wanna indulge mankind’s hatred, man.
- Ah! Leu meus diários de adolescência, é? Você é um pervertido!
- Não somos todos?
- Exato! Bom treinamento, Emanuel. Faça aqueles moleques sofrerem e abrace a dor!

Emanuel se desconectou e eu não podia ficar pra trás. Abri os comentários do filme e achei apenas um.
“Um absurdo a maneira como o cinema distorcia a cultura e os seres humanos. Isso jamais aconteceria no mundo real!”
Aquele comentário me transtornou e inspirou ao mesmo tempo. Durante toda a minha vida eu ouvi que sou um absurdo distorcido pelas minhas costas e só não fui perseguido e agredido por causa do poder da minha família. Mas não há poder que te faça ser “equilibrado”. Muito pelo contrário, quanto mais poder você tem, mais liberdade tem pra ser extremo. O que esse cara falou do filme já foi dito sobre mim tantas vezes que se tornou imperativo provar o contrário.

- Computador, encontre e imprima essa fantasia pra mim em fábrica de algodão do século 20. Quero 15 cópia.

O computador rapidamente encontrou várias versões, mostrando como essa fantasia invadiu o século 21 em celebrações de fantasia. Mesmo alguns anos depois desse filme se produzido, foi satirizado por outros filmes e pela própria cultura popular. A cultura popular estava prestes a pagar. Sentiriam a raiva ancestral e veriam Sidney gritar. Eu e esse filme jamais seríamos comédia!
Tudo o que eu precisava fazer era me tornar Danny rolling vestido de Ghostface em alguma cidadezinha americana e então começar a matar adolescentes. Coisa corriqueira! Nada impossível pra um expert em computação bilionário e ocioso! Tudo o que eu precisaria é desativar o monitoramento, os robôs e, quem sabe, a própria energia elétrica!
O segredo de assustar pessoas, segundo meu tio Benjamin, reside precisamente em lhes apresentar inconstância, imprevisibilidade. Chegamos à segunda metade do século 21 e realizamos o sonho positivista. Ordem, progresso e muita putaria! Mas alguém precisava parar essa porra. Alguém precisava relembrar a humanidade de um pequeno fato: ninguém controla nada e os deuses ainda brincam com o nosso destino!

- computador, facas inoculadoras. Projeto 36, gutting knife versão 2.7 com titânio e fio artesanal.
- Sim, senhor flyn. Devo acrescentar à fila ou adiantar?
- Quantos trajes já foram feitos?
- Sete, senhor
- Então faça agora as facas.
- Sim, senhor.

Aquela impressora 3D já era velha, mas dava conta do recado muito melhor do que as outras disponíveis. Uma verdadeira beleza ver aqueles braços robóticos trabalharem de forma aparentemente aleatória e de repente apresentarem o trabalho exigido. Cheguei ao ponto em que parei de comprar coisas pra minha casa e passei a simplesmente imprimir tudo. Somente pela diversão de dizer que eu mesmo fiz tudo o que tenho. Eu até quis imprimir outra impressora, mas seria insuportável ter que montar tudo e não há robôs que saibam fazer isso por conta própria, então, desisti.

- Flyn, está disponível? – disse martha
- Puta que o pariu, to popular hoje, em? O que você quer, Stewart?
- Estou procurando Emanuel. É urgente, cara. Você sabe onde ele se meteu?
- Por acaso alguém sabe por onde Emanuel se mete. Talvez ele esteja nadando na porra do ártico!
- Ele disse da última vez que o vi que te ligaria. Ele te ligou?
- Ligou sim, Martha.
- Ele não disse pra onde ia?
- Não disse pra eu dizer onde ele estava indo. Sabe como é, né?
- Não, Flyn, isso é sério. Cadê o Emanuel?
- Garotinha, eu to ocupado. Se você ama tanto seu indulger, porque ele não te disse onde está? Pra alguém que tem assuntos com ele você me parece bem mal informada, não?
- Vai se foder, cara. Você nunca foi um indulger.
- Bem, eu também nunca fui uma putinha transando com mendigos, fui? Cada um com seus problemas, Rita!
- Ele... te contou isso?
- Quem, meu hacker? Ah, Emanuel sabe disso!? Que genial!
- Você é um merda, Flyn.
- Bem, nesse caso você bem que poderia enfrentar seus demônios e vir aqui chupar meu pau, loirinha. Seu pai ficaria tão orgulhoso!
- Deixa meu pai fora disso! Cadê o Emanuel?
- Ah, eu me esqueci de mencionar. Eu removi o cérebro do seu pai com uma colher nanoafiada e dei pro cachorro dele comer. Foi cômico seduzir o cachorro que estava com raiva de mim usando o cérebro do dono como suborno!
- Cara, um dia eu vou arrancar a porra da sua cabeça.
- Não, você vai ser uma bela cachorrinha indulger e vai vir aqui se superar. Vai amar seu inimigo e chupar o pau dele.

Ela desligou. Difícil olhar pra ela e não se lembrar da nossa história. Nós nos conhecemos através do pai dela e tivemos um relacionamento de uns 2 meses. Conturbado como qualquer coisa que envolve a mim, o relacionamento acabou com ela fazendo um escândalo numa festa do meu pai. A verdade é que ela sempre foi tão louca e danificada como eu e que até nos dávamos bem, mas que ela fez aquilo pra ficar com Emanuel. Perfeitamente compreensível, já que ele sempre foi um indulger melhor do que eu. Até eu largaria ela por ele, afinal! Foi uma relação de 4 anos, muito mais do que o aconselhado pelo conselho, e no fim das contas eu não sei se somente falhou ou se decidiram terminar porque ele virou indulger. De qualquer maneira, os separou, porque senão eles não poderiam ser indulgers eficientes...!
Depois de um tempo ela descobriu que Emanuel era meu amigo e começou com esse hábito retardado de vir me perguntar por onde ele andava sempre que sentia vontade de ter ele dentro dela pra aquecer seu útero frígido. A questão urgente dela só poderia ser a necessidade de receber o orgasmo que aparentemente só ele conseguia fornecer. Segundo ele, era uma questão circunstancial que os unia, não a habilidade dele. Eu não sei dizer se isso é verdade, porque esse cara tem talento pra ambiguidade: a circunstância pode ser simplesmente que ele sabe chupar frígidas!

- Flyn, responda a porra do telefone! – Meu pai disse na minha tela
- Quem te deixou hackear meu computador?
- Porque você não está trabalhando no software que te pedi?
- Porque eu estou de férias. Sabe o significado dessa palavra?
- Férias não sobe o nome Pinkman.
- bem, lorde Pinkman, que tal você mudar seu nome pra Sir Leagueman? Você já serve esse grupo, afinal!
- Eu comando esse grupo, Flyn. Nós seremos os donos desse mundo!
- Corrigindo, você será dono desse mundo. Eu sou só seu cachorro pra morder quando você manda e fazer programinhas em sigilo.
- Se te incomoda tanto, fique de férias então. Estou com uma nova leva de recrutas pra vestir o protótipo e espero que ao menos morram ao invés de ficarem remoendo bracinhos perdidos dentro de casas trancadas.
- Foda-se. Quer brincar? Então vamos brincar!

Desliguei a comunicação, tomei minhas facas e inseri a ricina. O traje estava pronto e a máscara atrapalhava minha visão, mas decidi seguir usando aquela mesmo pra honrar o filme.
Pra falar a verdade aquela noite foi completamente entediante. Adolescentes retardados e desprotegidos estavam sozinhos em casa. Eu quis brincar com o primeiro, mas com os outros eu decidi só fazer o que devia fazer. Era desligar a comunicação, depois os robôs, depois as trancas eletrônicas e então remover a eletricidade. Você nem precisa mais falar muita coisa: basta você remover, uma por uma, as parafernalhas tecnológicas e as pessoas entram em pânico. Criamos ferramentas pra facilitar nossas vidas e nos tornamos tão dependentes dela que viver sem é como ser uma criança pequena abandonada no meio da selva. O primeiro foi até interessante no começo. Invadi os óculos dele, que ele usava compulsivamente pra tentar fazer ligações mesmo estando sem recepção.

- Hey, quem está falando? – perguntei em tom casual
- Puta merda, graças à Deus!
- Ah, então você acredita em Deus? Que fofo!
- Quem tá falando? – ele perguntou irritado
- Você que me diga: quem tá falando?
- Que palhaçada é essa? Isso é algum tipo de trote?
- Ah, sim, sim. Eu sei um trote, quer ouvir?
- Cara, deu algum problema aqui em casa, chama ajuda pra mim. Para com essa palhaçada.
- Aí é do açougue?
- O que é um açougue?
- Porra, você estragou o meu trote. Seu filho de uma puta!

Acabei entrando na casa dele com a roupa do pânico e a reação dele foi hilária. Tirou os óculos que não pesavam nem meio quilo e começou a bater com eles na minha cabeça e gritar num tom agudo. De fato as antigas previsões estavam certas: os homens perderam sua masculinidade. E isso nada tem a ver com a homossexualidade, pelo que vi nas minhas vítimas. É uma coisa de idade: quanto mais jovem, mais afeminado é o cara. O infeliz conseguiu desmaiar de medo somente porque alguém entrou em sua casa com uma fantasia do século passado. Deprimente! Que aquilo tenha me feito rir balançou meu propósito: comecei a querer fazer tudo pra conseguir algumas risadas. Mas eu sempre fui um cara determinado, então o objetivo tinha que ser o mesmo de antes. Eu iria fazer uma piada do passado se tornar terror real e todos os que riram desse filme (e já morreram) vão pagar!
Enfiei a faca no peito do moleque e liberei 10 miligramas de ricina. Era uma coisinha pequena e frívola sem nenhuma reconstrução ou procedimento plástico. Dentro dez bilhões de habitantes, quem sentiria falta do pobre afeminado?
Conforme planejado, deixei cicatrizadores fecharem a ferida dele e ativei seu robô no local, dando a entender que a máquina salvou sua vida.
Fora esse pequeno incidente, todos os outros sete jovens reagiram da mesma maneira. Gritaram feito crianças, tentaram me estapear e correr, mas não conseguiam nem correr pela casa depois que decidi desligar também seus óculos que já não os avisava sobre obstáculos pelo caminho. Que tipo em mundo vivemos em que jovens não sabem mais fugir de um simples assassino em série?
Com todos eles a encenação foi a mesma. Facada no peito, salvos pelo robô herói que agia sob meus comandos e cicatrizados enquanto o agressor fugia. E ninguém tinha tecnologia pra detectar a porra do veneno. Há 20 anos essa tecnologia está disponível e ainda é luxo!
Voltei pra casa e hibernei em sono sem sonho por dois dias. Por algum motivo essa matança me sugava a energia. Era, de fato, a única coisa capaz de me acalmar, mas ao mesmo tempo parecia que eu mesmo morria por algum tempo depois de fazer essas coisas.
Quando despertei, descobri que formaram um grupo de apoio para os jovens “traumatizados”. Quanta solidariedade! Assisti a uma reunião e me dei conta do quão patética a nossa civilização se tornou. Todos se tornaram vítimas querendo atenção do mundo e sem nada pra dar em troca. Um mundo sem religião, mas com uma população que faria Nietzsche arrancar o bigode! Querem pecar, mas ainda querem o papai do céu pra passar a mão na cabeça. Essas pessoas mereceram a morte que tiveram!
O mais irônico de tudo foi o organizador do grupo atribuir os sintomas do meu veneno a efeitos somatizantes do trauma. Até mesmo as doenças se tornaram apenas problemas psicológicos, tamanha a previsibilidade do mundo contemporâneo. Quem pensaria que um veneno usado há cem anos estaria matando adolescentes medíocres no meio do nada? Até que perceberam depois que o segundo morreu e a cidade realmente entrou em toque de recolher. Aquilo só me inspirou.

- Flyn, tenho um presentinho pra você! – Martha falou
- Porra, Emanuel te passou a ligação direta comigo?
- Não, eu tenho amigos. Acessa o vídeo! Boas festas!

Eu nem sabia, mas estávamos em época de natal. Abri o arquivo que ela me mandou e era um vídeo bidimensional de uma animação 3D. A visão congelou o meu corpo. Eu queria parar de assistir, mas nem meus olhos se moviam. Era um homem correndo com os braços abertos e se chocando contra dois pilares de marsídio. Os braços se separaram do corpo e ele se debateu no chão por alguns segundos sem nenhuma forma de cicatrização. Era eu, dentro daquela merda de traje. Perdi os dois braços e a máquina não desligava. Vi minha vida diante dos meus olhos como quando uns moleques mais velhos queimaram meu rosto num motor de caminhão quando eu era criança. Só que dessa vez foi meu próprio pai que se aproveitou da minha resistência à dor pra me colocar diante da morte.
Eu caí no chão da minha sala e comecei a convulsionar e tive um daqueles malditos lapsos de tempo. Os robôs me seguraram pelo que vi no vídeo, e fiquei me debatendo por um dia inteiro no chão da sala. Limparam minha urina, minha saliva e minha merda. Todo esse maldito avanço e ninguém sabia dizer que porcaria de doença é essa que eu tenho. Bem que eu mereci esse ataque da Martha, depois de confessar o assassinato do pai dela. Mas naquele ponto até o idiota do Peçanha já tinha desistido de me curar e eu não estava com nem um pouco de disposição pra conseguir o conhecimento necessário pra começar a fazer isso por mim mesmo.
Quando acordei, a cidade estava em alerta. Casas trancadas, robôs com sistemas de segurança mais avançados, trancas mecânicas nas portas. E, acredite se quiser, estavam treinando crianças pra correr em ambientes domésticos e encontrar abrigo! Pessoas estavam sendo vacinadas contra minha velha toxina e pensavam realmente que poderiam se defender de mim! Assistir aquilo da minha casa era tão hilário quando ver abelha tentando aplicar ferrão em robôs de crianças destruidoras. Eles vão destruir o ninho, não há nada que os insetos possam fazer, mas eles reagem, porque é tudo o que sabem fazer!
Os meus insetinhos estavam me convidando ao massacre com essas defesas fúteis!
Computador faça a haste pra encaixe da minha lâmina de marsídio. Leia a lâmina. Eu adorava dar comandos na ordem contrária pra confundir os computadores e amava o fato de que você pode fazer isso com esse algoritmo caótico que fizeram na liga.
Pela primeira vez o modelo impresso falhou e a haste não encaixou na lâmina. Tive que fazer medidas manualmente e construir o modelo tridimensional pra me armar. A espada ficou elegante com o fio nanométrico. Pronta pra cortar através do concreto dessas casas ridículas.
Eram casas bem separadas umas das outras, como somente em lugares isolados como aquele permitiam. Tinha árvores reais espalhadas por campos reais. Um disparate numa civilização onde praticamente tudo já havia se tornado artificial e controlado. Era literalmente mato que cresceu por meio de sucessão ecológica! Perfeito pras minhas exibições.
Minha primeira vítima era a mãe do desmaiado. Estava em estado de choque porque sua cria morreu, removendo sua razão de viver. Ou talvez ela simplesmente nunca tivesse tido contato com alguém que posteriormente morreu e esperasse que seu filhote frívolo vivesse pra sempre! Fosse como fosse, parecia imperativo reintroduzir ao mundo a morte. Por incrível que pareça, a perda da noção de finitude estava removendo toda a paixão do mundo!
Bem, decidi ativar meus músculos artificiais e causar estrago!
Qual não foi minha surpresa quando descobri que o nome dela era Sidney!
Aquela maldita dor de cabeça voltou e perdi o controle do lado esquerdo do meu corpo. Ativei o controle artificial dos membros, mas segui com aquela velha sensação de meu braço e minha perna tinham sido removidos, arrancados. E eu removi a tontura, mas mesmo assim continuei sentindo como se não fosse eu mesmo. Há coisas que tecnologia nenhuma resolve. Na tentativa de curar os sintomas da doença mental, acabamos por apenas ocultá-la. Pessoas como eu, diagnosticadas com uma doença pra cada médico, se beneficiam desses tratamentos porque podem ter vidas relativamente normais e se desenvolver cognitivamente. Mas a eterna sensação de que em boa parte do tempo você não é você, mas um artefato tecnológico, já me motivou a simplesmente deixar meu corpo convulsionando no chão. Em momentos quietos eu me perguntei se esse ódio infinito que parece brotar de dentro de mim é fruto das tradições de família ou se é porque tenho genes que me levaram a ser assim. No fim das contas percebi que as duas explicações são perfeitamente compatíveis e simplesmente aceitei quem sou.
Ela estava com um homem pequeno e gordo. Logo que eu ouvi sua voz, percebi que se tratava do pai da minha vítima. Um homem frívolo como o filho, chorando mais do que a própria mulher. Esses arranjos familiares modernos parecem cada vez mais estranhos pra mim. As únicas famílias que parecem funcionar são entre amigos que nunca sequer se tocaram, porque vínculos românticos já não duram o bastante pras pessoas sequer considerarem ter filhos. De fato, a mais nova forma de família é entre homossexuais do sexo oposto, que chegam a morar juntos como se fosse um casal clássico, mas nunca se tocam. A humanidade sempre acaba encontrando um jeito de seguir se propagando como a praga que é, mesmo que seja de maneiras cada vez mais bizarras.
Contra a homossexualidade eu nunca tive nenhum problema. Afinal, isso seria hipocrisia, dado que meus melhores relacionamentos foram com homens. Mas se tem uma coisa que me dá raiva é homem com comportamento frívolo, frágil. O que os gregos atribuíam às mulheres. Eu tive que começar por ele.
Apaguei todas as luzes, desliguei a comunicação e comecei a correr em torno da casa. As pancadas que eu dava nas árvores começou a chamar atenção dos dois e rapidamente Sidney saiu de casa com um rifle de assalto. Minha surpresa foi grande quando ela me rastreou e me atingiu com um tiro na cabeça que me derrubou desorientado no chão. Desativou o reparo do meu cérebro e perdi o controle dos membros esquerdos. Os tiros começaram a destruir toda a minha roupa e ela parecia não perceber que eu estava sob proteção pesada demais pra ser atingido por uma arma daquele porte. Ela gritava enquanto sua arma destruía minha fantasia e eu me arrastava pro refúgio da escuridão. Assim que meu cérebro se recuperou e minha crise acabou eu lancei uma granada sonífera e o jato de gás no rosto a derrubou instantaneamente. Uma cidadã comum, impotente diante dos milhares truques tecnológicos da elite intelectual do mundo.
E o gordinho logo apareceu berrando e correndo na direção da amiga/baby mama. Quando me viu, no entanto, escorregou e caiu no chão. O infeliz bateu de cabeça numa mesinha e desmaiou sozinho. Essa foi uma das razões porque eu passei tanto tempo sem caçar e matar pessoas. Há uns trinta anos atrás você ainda encontrava presas dignas que conseguiam fugir e lutar. Presas como essa Sidney eram coisa comum. Mas a frivolidade tomou conta desse mundo. Estamos seguros demais, acomodados demais. Perdendo cada vez mais o contato com nossas origens caçadoras e assassinas. Como os próprios cães, que foram adestrados através dos milênios para se tornarem dóceis, a maioria das pessoas aceitou esse adestramento frívolo ao ponto de um homem se tornar aquilo que eu via diante de mim.
Coloquei o homem no ombro puxei Sidney pelo cabelo até o Carvalho do quintal dos fundos.  Dando a volta na casa, percebi como ela era velha. Devia ter uns cem anos de idade. Afinal, com uma casa daquele tamanho eles deveriam ricos se fosse uma coisa nova. A tinta nova escondia a madeira podre abaixo. Uma estrutura condenada pelo progresso.
O carvalho era mais novo do que a casa, mas nem por isso deixava de ser velho. Fosse como fosse, Era forte o bastante pra minha brincadeira. Ele tinha cicatrizadores, mas eram antigos, daqueles bem burros que chegavam a matar pessoas. Deitei ele na grama bem na base da árvore e abri um buraco cirurgicamente limpo  na sua barriga, passando camada por camada até chegar ao seu intestino delgado. Eu precisaria de uns 5 metros, então foi o que consegui. O intestino do homem era absurdamente grande, como se a natureza o estivesse obrigando a ser obeso como era. Então usei os próprios cicatrizadores dele pra fechar o que sobrou de tubo digestivo, Deixando o homem com um tubo digestivo minúsculo, mas teoricamente funcional. Os outros órgãos ficaram soltos por uns instantes, mas logo o excesso de gordura tratou de preencher o espaço recém-liberado e a cicatriz cirúrgica foi fechada. Encontrei uma mangueira e joguei agua gelada no rosto daquele bípede desprezível até ele despertar, rapidamente retomando seu pânico juvenil. Mas ele já não conseguia se levantar. Ainda estava se recuperando de sua recente “cirurgia”. Lancei sobre ele um dardo com 10 miligramas de nicotina e ele ficou ainda mais desorientado, embora tenha diminuído seus sinais de medo. Nada mais divertido do que ativar a região responsável pela sensação de “recompensa” do cérebro logo antes de matar uma pessoa: mostra a futilidade e irrealidade das alegrias da vida.
Com seu intestino cheio nas mãos, apertei a musculatura lisa e produzi peristaltismo externo, liberando aquele bolo alimentar fétido na boca dele, porque meu objetivo não era roubar comida. Ele vomitou uma mistura de suco gástrico, sangue e suco de maçã: fiz questão de fazer a análise nanoquímica daquilo. Quando o tubo estava limpo, preparei meu nó de forca e subi na árvore com um salto. Ainda sobrava um tubo anti-asma de nanocelulose no meu compartimento traseiro, então logo inseri ele naquele verme pra me certificar de que ele não seria sufocado. E certamente, com o peso que tinha, ele já tinha instalado sistemas facilitadores de circulação sanguínea, de maneira que não tinha como ele morrer rápido. Amarrei e preguei o intestino em um ramo grande enquanto ele chorava.

- Por favor, pelo amor de Deus! O que eu fiz pra merecer isso?
- Você nasceu, porco, e polui o mundo com sua existência.

Logo depois de fazer isso, meu chute o derrubou, impedindo que ele seguisse implorando. Ele tossia e se debatia em pleno, possivelmente na esperança de quebrar o galho, mas era grosso demais até pra alguém com o peso dele. Sidney já estava próxima de despertar, embora estivesse bem longe de se livrar da desorientação que aquele tranquilizante causa. Se debatia em algum tipo de pesadelo, então decidi acordá-la com alguns tapas na cara pra que ela pudesse ver o espetáculo. Acordando, ela viu o homem se debatendo, a cada segundo menos disposto. A vida estava se esvaindo aos poucos, já que menos sangue chegava até o cérebro e os neurônios iam morrendo aos poucos. Daquele jeito ele levaria meia hora pra morrer porque a tecnologia da sua corrente sanguínea impedia a obstrução de veias e artérias e meu aparelho de asma impedia que ele se sufocasse. Era um dano constante, irreversível e fatal.
Sidney estava deitada de bruços e eu estava sentado sobre suas costas assistindo o espetáculo. “como seria”, imaginei, “se ela o salvasse agora?” De certo ele já estaria levemente demenciado. Ela ia se fortificando a cada minuto enquanto a luta ia deixando os olhos de seu companheiro. A partir daquele dia, ela teria que associar seu fortalecimento e recuperação à morte de seu “amor”, pai de sua cria morta. Sozinha no mundo e sem perspectiva, aquela mulher sofreria mais que seu moribundo marido. Ponderei, por um instante, não mata-la.

- Seu... Filho de uma puta... – ela disse
- Oh, já ganhou força pra falar, doce?

Virei ela de barriga pra cima e  vi suas lágrimas de ódio escorrendo pelo rosto. Limpei as lágrimas enquanto ela passava as mãos pelo corpo. Encontrou uma arma e, por incrível que pareça, conseguiu dar dois tiros no meu peito antes de a arma cair de suas mãos. Mas ela sabia que aquela pistola não tinha como me ferir.

- Eu vou te matar. Um dia eu vou ter a sua cabeça...

Eu não conseguia parar de rir. O cara parecia ser capaz apenas de pequenos espasmos e ela alternava entre olhar pra mim e olhar pra ele. Num instante ela pareceu ter um insight e pegou algo no bolso direito da calça. Uma injeção de adrenalina! Que tipo de civil carrega algo assim no bolso? Não pude resistir. Tomei a injeção dela e injetei em seu coração. Ela respirou fundo e rapidamente se soltou de mim. Correu na direção de seu amigo, que naquele ponto já estava morto. Seu abraço e seu choro chegaram a me comover e pela primeira vez em muito tempo eu me senti vivo. Mas já era hora de dar fim à brincadeira e matar a cadela. Segurei seus cabelos negros e a puxei pra trás, mas ela se debateu e lutou. Socos, chutes e até mordidas na minha roupa. A mulher simplesmente nunca parava de me enfrentar, não importando o quão desesperadora fosse a situação. Seus gritos ecoavam pelo campo. Quando finalmente levantei minha espada pra remover sua cabeça, meu pai apareceu.

- Então é assim, vai desrespeitar a sua mãe assim? – ele disse
- O que... O que você tá fazendo aqui?
- Pensa que eu não sei o que você anda fazendo, geniozinho da computação? Eu te conheço. Você ficou traumatizadinho de novo e agora quer desrespeitar a sua mãe.
- Isso não tem nada a ver com ela!
- Não, claro, porque ela não foi decapitada, né? Pensa que não sei quantas mulheres você já matou assim?
- Isso não tem nada a ver com ela, você não sabe de nada.

E foi por aí que o diálogo acabou. Ele lançou uma esfera estranha na minha cabeça e eu ativei a defesa contra neuralização, mas ela não fez mais do que abrir meus olhos e mostrar meu braços sendo arrancado dentro daquele traje maldito. E quando eu berrei o vídeo se repetiu, dessa vez em câmera lenta. Eu podia ver as pequenas fibras de musculo sendo rompidas, podia ver minha dor agonizante. Caí no chão em terror e gritei até ficar inconsciente. Quando acordei, já estava naquele maldito hospício com uma camisa de força e paredes acolchoadas.
Alguém deixou a tela que ficava no teto da sala com um pequeno vídeo que eu poderia comandar que fosse executado. Era o rosto do meu pai em uma conferência midiática e tinha só alguns segundos.


“A ciência é justa, e ela deve sempre ser imparcial. Não há como negar que meu filho é um psicopata. Embora no meu coração eu acredite que ele possa um dia ser curado, é irracional que ele seja livre. Que fique claro hoje que nenhuma emoção ou fraqueza ou preconceito deve regular nosso mundo. Hoje eu abro mão da minha família pelo bem do mundo.”

Cortes e recortes por ângulos tortos (extra)

Emanuel Peçanha, 2040

Vi o vagão dela sumir nos velhos trilhos do metrô e sorri como um idiota. Um aluno de engenharia passou um dia inteiro estudando neurofarmacologia com sua namorada, abandonando seus próprios compromissos atrasados. Eu ria ainda mais quando pensava em mim mesmo na terceira pessoa: parecia um completo idiota. Mas quem se importa em ser idiota se isso significa ser feliz? Estudei algo divertido, passei um tempo com ela e ela voltaria pra mim depois da prova. Minha Liana, meu passarinho cantante voltaria. Tudo tinha que ser preparado como ela indicou. Duas garrafas de vinho, batata frita e mais algumas bobagens pra comermos. A maior parte das coisas eu já tinha preparado e a casa foi deixada com a temperatura correta. Os móveis também já estavam todos fora do lugar pra podermos ver nosso filme, como nosso vinho, nossa pipoca, nossas porcarias cardiopáticas. Liguei meu video-game e comecei a jogar qualquer coisa pra ver se o tempo passava. E realmente passou! Entre meus pulos e golpes errantes, passei uma hora e fiquei tão suado que um banho se mostrou inevitável. Logo que saí do chuveiro, alguém me ligou. Acionei meus óculos e atendi. Era jônatas.

- Cara, tá podendo falar?
- To aqui, pode falar, cara.
- Porra, perdeu a aula de ontem! Professor surtou porque alguém tava boçejando na aula dele. Po, filmaram e colocaram na internet e tudo!
- Porra, Jônatas, quantas vezes vou ter que te falar que agora se chama nuvem porque mudou a tecnolgia?
- Ah, sim sim! O professor estava falando disso. Eu posso chamar de internet ainda, sabe porque?
- Manda.
- Cara, pensa na palavra máquina. Sabia que ela veio do latim Machina, que usavam pra descrever aqueles trabucos tipo dos jogos de estratégia? Procura só no google aí.
- Tá, e daí?
- Po, e daí que chamamos uma impressora 3D de máquina. Mudou a tecnologia, mudou o paradigma, mas ainda usamos a mesma palavra. Não precisa ficar trocando toda hora, maluco. Nuvem não tem nada a ver, essa palavras.
- Cara, é um novo paradigma de computação e de rede. Deixa de ser animal.
- Tá, tá, não liguei pra falar disso não. Eu só tava tomando coragem.
- Pra quê?
- Po, cara, nem sei como te contar isso. Sabe a liana?
- Ta tudo bem com ela?!
- Ta sim, cara, tá tranquilo. É que eu to vendo ela agora aqui na minha frente, te juro. Já tem uns 10 minutos que ela tá se pegando com um cara aqui. Ela tá te traindo, cara. Na cara dura!
- Sabe quem ele é?
- Ah, é um cara da ADM aí. Vou te mandar a imagem ao vivo. Estão naquele beco do prédio de ciencias humanas.
- Não, porra! Eu acredito, não quero ver isso não. Para, sai...!
- Tudo bem, calma. Não precisa gritar também!
- Cara, eu vou desligar.
- Ela tá indo pro metrô. Tá indo praí? Cara, não vai fazer nenhuma bobagem!
- Tipo o que?
- Sei lá, porra, o guto acabou preso por brigar com a namorada na faculdade e empurrar ela. Não dá mole, só manda ela embora que ela é safada.
- Cala essa boca, Jônatas. Tu não sabe de nada e fica aí falando dela. Eu não sou dono dela não. Não sou eu que vou dizer quem ela pode ou não pode beijar!
- Porra, tu é o que, um corno manso. Maluco, várias pessoas viram isso, não foi só eu não!

Desliguei o telefone e deitei na cama, minha respiração acelerada. Eu estava com medo. Quem seria esse cara, que me recusei a ver? Será que ele era importante, será que ela queria terminar tudo comigo? Como poderia ser possível, se parecíamos tão bem ontem?
Naquele momento eu fui tomado por paranoia. Será que ela se incomodou com a garrafa de agua dela que sempre esqueço fora da geladeira e fica quente? Não, ela nem se incomodava tanto de beber água no copo! Ou será que ela não me falava de algum problema mais fundamental na relação e tudo estava acontecendo sem eu saber?

- Para com isso, merda! Não tem nada de errado, lembra dos textos! - gritei pra mim mesmo feito louco

O computador acionou e buscou minha frase no google. Me senti um retardado. Eu mesmo, o cara que tanto falava do poliamor, o único que sabia do caso do meu pai com aquela Mônica e o apoiava firmemente. Um cara que leu livros, que aceitou argumentos, agora estava tendo crise de insegurança e ciuminho? Ridículo, eu tinha que ser mais maduro que aquilo.
Sentei na cadeira e tomeu uma lata de energético. Minha perna direita tremia e minha cabeça coçava. Eu tinha que sair, tinha que andar. E foi o que fiz: saí de casa e andei até o shopping que ficava a uns dois quilômetros de casa, pra, de lá, ir pra estação onde encontraria com ela. De repente eu já estava todo suado novamente na estação, artificialmente calmo pela caminhada. Mas quando ela apareceu, tudo ficou natural.
Ela desceu do vagão e me viu logo de cara, com aquele sorriso acanhado que ela tem. Segundo ela, não passa de uma reação à cara de imbecil que eu faço toda vez que a vejo. Mas ela colocou os braços pra frente e veio correndo na minha direção com o sorriso. Quando abraçá-la, descobri que ela segurava a mochila no braço direito.

- Ta pensando o que, pode pegar a mochila! - ela disse
- Ué, mas pensei que ia ganhar um abraço!
- Tem abraço nenhum pra você não que tá muito abusado pro meu gosto.
- Vem cá agora, mulher. É agora!

Quando fechei o abraço ela deu um passo pra trás sorrindo, mas acabou me abraçando de volta. Era sempre o mesmo jogo, eu sempre soube que ela adora meu jeito exagerado de expressar meus sentimentos. As vezes parecia que ela resistia exatamente pra me ver fazer esses espetáculos em público. E isso porque ela se declarava tímida! Enquanto andávamos pra casa ela veio falando sobre como foi a prova, sobre o que soube responder e o que não soube, e senti aquele efeito único de estar com ela. Não importa que tipo de problemas passam pela minha cabeça. Seja crises existenciais adolescentes, problemas na família, qualquer coisa, ela chegava e tudo passava. Até mesmo a crise causada por ela era calada pela presença.
Tudo o que eu queria era cheirar aquele cabelo preto logo depois dela sair do banho, fazer batata frita e assistir alguma novelha mexicana velha do jeito que ela gostava. Ela sempre gostava quando eu imitava as caras e bocas que os personagens faziam. “não, carlos mariano, não!!!”. Também tinha aquelas cenas loucas de transição que, presumivelmente, aconteciam antes de intervalos comerciais, mas que já não tinha comerciais porque estávamos fazendo streaming da nuvem.

- Liana, preciso cheirar seu cabelo! - gritei com minha expressão facial congelada passando a sensação de que era uma questão de vida ou morte.
- Você tá estranho, Emanuel. O que você tem?
- Por acaso em algum momento você me viu sem estar estranho?
- Não, mas dessa vez você tá diferente. Não sei, tem alguma coisa aí.
- Tem falta de LP, é isso.
- AN?
- Falta de Liana passarinho, é isso.
- Deixa de ser doido, eu dormi aqui ontem já!
- Bem, nunca é demais, né?

Ela sorriu e virou o rosto do jeito que sempre faz. Aquilo já tinha virado um convite pra mim. Sempre que ela fazia, eu a abraçava e começava aquela brincadeira besta. Dessa vez não foi diferente.

- Sai, sai Emanuel que você tá muito abusado pro meu gosto!
- Abusado nada, to ensandecido. Voa pra ca, passarinha!
- Não, sai, sai! - ela falava em meio a risadas imponderáveis
- Ta bem, só um beijinho, só um!
- Você pede só um beijinho toda hora, pensa que sou besta?
- Vou ficar duas horas inteirinhas sem te agarrar, prometo!
- mentira, duvido!
- Dou a minha palavra!
- Não, mentira sua... Para... Ta bem, tá bem

De repente o cotovelo dela estava fora do caminho da minha boca em volta do meu pescoço. Foi um beijo que ela tentou fazer curto, mas eu insisti, como de costume. Ela deu um passo pra trás, rindo.

- Era só um!
- Não terminou ainda!
- Manu, eu quero batata frita. Eu to com fome.

As vezes parecia que ela fazia isso de propósito. Falava de alguma coisa que ela precisava exatamente porque sabia que aquilo ia me parar. Era uma urgência, afinal, que ela tivesse a batata frita! Na cozinha já estava tudo preparado e ela foi pegar a batata no congelador pra fritar. Por um instante a sensação de insegurança voltou e abri uma Ice que achei na geladeira. Imaginei que o energético estava provocando a ansiedade, então o álcool deveria diminuí-la pela depressão do sistema nervoso. Estudar pra prova dela serviu pra alguma coisa! Ou não...!

- Tá começando cedo, em? - ela comentou
- Never too soon to rock n roll, baby!
- Tá errada essa frase, não?
- Agora tá certa!

Dei um gole e ela começou a tirar batatas já fritas. Fui beliscando uma ou outra. Difícil acostumar com essas batatas pré-salgadas. Tudo parecia muito mais natural com batata frita industrializada sem tempero! Mas essa era deliciosa porque não ficava uma mais salgada do que a outra. Liana bateu na minha mão.

- Para com isso que assim a gente não vai ter pro filme. Faz a pipoca, faz?

Ela estava agindo tão naturalmente que aquilo me assustou. Quer dizer, se aquele caso extra-conjugal fosse verdade e fosse um problema pra relação, como ela podia estar se comportando daquela maneira? A sensação de que eu estava pra ser pego por um fim de relacionamento repentino me deixou apreensivo. Fiquei imaginando coisas pra fazer que evitariam aquilo tudo enquanto observava a pipoca ser feita.

- Porque você sempre faz isso? - ela perguntou?
- isso o que?
- fica olhando pro micro-ondas assim. Como se algo surpreendente fosse acontecer além do imediatamente previsível.
- Nem sei. Eu só fico viajando, eu acho.
- Vou colocar o filme lá na sala. Depois trás a pipoca. Essa é a light, né?
- É! Mas você sabe que isso é loucura porque estamos comendo batata frita, né?
- Pois é, eu já vou virar uma bola pela batata, imagina se ainda comer pipoca normal cheia de calorias?
- Ah, tem mais calorias no vinho do que na pipoca, Liana. Mais fácil parar de beber pra emagrecer.
- E você quer que eu pare de beber, por acaso?
- Não, jamais! Você fica legal demais bêbada!
- Então trás aí vinho pra mim e pra você também!
- Você me perguntou se eu quero?
- Anda logo que já tá pronto aqui pra gente ver o filme, manu!

Depois de certa dificuldade pra encontra o saca-rolhas, enchi nossos copos, guardei a garrafa na geladeira e vim pra sala com os copo.

- Cadê a pipoca, não tá pronta ainda?
- Ta sim, esqueci lá. Pode por o filme pra rodar que eu já vi, tá tudo bem.

O filme começou, naquele volume meio alto que ela gostava e eu sentei novamente na frente do micro-ondas. Os mesmos questionamentos passavam pela minha cabeça enquanto eu lentamente abria o saco de pipoca. O vapor saiu e veio no meu rosto, mas foi como se não fosse nada. Fechei os olhos e pus a pipoca no pote pra ela salgar sozinha. Eu podia ir com o pote salgando pra sala, mas acabei esperando o processo todo sentado ali na cozinha

- Manu, cadê a pipoca?! Vou acabar comendo a batata toda, vem logo!

Encontrei a garrafa de Ice aberta e terminei toda ela em um gole antes de voltar. Percebi que ainda estava de meia, tirei e pus no cesto: tudo que eu podia fazer pra evitar ir pra sala eu fazia. Mas acabei ficando sem mais nada pra fazer e cheguei lá. O filme era Mr. Nobody, um dos meus favoritos que ela nunca tinha visto. Sempre marcávamos de ver e acabávamos nunca vendo, mas hoje estava tudo combinado. Os olhos negros dela ficavam ainda mais fechados do que o normal enquanto ela prestava atenção na tela. Um golinho de cada vez ela ia bebendo o vinho.

- Ainda vou ter que aprender a beber no seu ritmo, viu?
- Ah, é que eu fico enjoada de beber rápido
- Eu sei, eu sei...

Ela colocou as pernas em cima de mim e ficamos vendo o filme. De tempos em tempos eu voltava pra cozinha e pegava mais vinho. Quando acabamos com a primeira garrafa o filme acabou. Eu estava fazendo massagem nos pés dela e com minha mente e outro lugar. Ela colocou a novela mexicana que ela estava assistindo e eu fui buscar mais vinho. Percebi meus sentidos alterados e a bagunça que deixamos na cozinha. Abri a garrafa e coloquei vinho nos copos, mas derrubei um pouco na pia. Como sempre, eu me mostrava fraco pra bebida. E ela, daquele tamaninho, muito mais resistente do que eu. Quando cheguei na sala, Luana me mandou mensagem pelo celular. Sentei com Liana e lembrei da conversa que tive com Jônatas. Eu tinha que escolher entre Liana e Luana, a única diferença era uma letra no nome de cada uma. Pelo menos segundo ele, eu tinha chances com as duas, mesmo que pra mim eu não tivesse chance com nenhuma. Mas a confluência caótica de eventos acabou me unindo a Liana, e eu não era o tipo de pessoa a ficar olhando atrás e tentando calcular se outra escolha teria sido melhor. Mas e se ela estivesse pensando isso?

- E aí, manolo, tudo beleza?
- Oi Luana, tudo bem sim. Só enlouquecendo um pouquinho e consumindo o etanol aqui
- hahahaah! Vai que é hoje que te conto todos os meus sonhos e esperanças?
- É hoje, luana! Vou achar a chave do seu coração!
- hahaha! Escuta você soube daquele curso de férias?
- O de biomateriais e filtração?
- É, esse mesmo!
- po, eu to trabalhando na equipe, Lu. Soube sim, tem que falar com a professora helena pra entrar!
- caraca você tá na equipe? Que foda, cara! Tão dizendo que vai dar pra cancelar com a disciplina de biomateriais do semestre que vem, é isso mesmo?
- Não sei, Lu. Conversa com a professora helena lá pra confirmar certinho
- Beleza. Mas e aí, como vai a vida?

Liana moveu a perna, indicando, como de costume, que queria a massagem. Mas ela queria outra coisa.

- Tá falando com quem?
- Com a Luana. Sabe, dos calouros lá?
- Ah, aquela anoréxica? Tá confessando bulimia pra você?
- Confessou que comeu um bolinho inteiro hoje. Ela é magra mas não é feia não!
- ah, e eu sou gorda balofa, né?
- Não, você tá no ponto certo. Prefiro mil vezes você!
- Você fala isso só porque tá comigo. Aposto que falaria a mesma coisa se fosse ela aqui.

Eu não podia acreditar no que estava acontecendo. Ela estava se beijando com outro naquele mesmo dia e agora estava tendo uma crise de ciúmes. Porra, ela mesma concordava com a coisa toda de poligamia, como podia estar com outro e ainda assim ter ciúme de uma conversa por mensagens telefone? Naquele ponto eu me senti no direito de expressar meus próprios sentimentos, mas sem revelar o que eu sabia.

- Mas e você, não tem suas dúvidas também?
- Ah, você sabe que eu sou maluquinha, né? Eu tenho sempre dúvidas.
- mas daí você sabe se quer mesmo estar comigo?
- Tá pergutando isso porque? - ela falou tirando os pés do meu colo
- Ah, porque eu sou bem mais ativo nas coisas. Tipo, sempre que a gente se beija pra valer sou eu que te beijei, você nunca veio me beijar por conta própria.
- Claro que fui, semana passada aqui no sofá!
- Eu tava te puxando e você esqueceu porque tava meio chapada
- Ah, mas não tem nada a ver...

Ela pareceu desconfortável e levantou. Pegou meu copo e foi pra cozinha encher de vinho. Eu sabia que ela estava fugindo, mas não quis ir atrás. Ela sempre fazia isso quando queria pensar sobre alguma coisa sem eu ficar olhando no rosto dela. Afinal, mesmo com ela negando isso, o rosto dela mostrava bastante do que ela tava sentindo, então, pelas nossas longas horas de conversa, dava pra saber mais ou menos o que ela estava pensando só de olhar pro seu rosto. Mas acabou que ela não se demorou. Encheu os copos, deu um gole no dela e depois terminou de enchê-lo, esvaziando a garrafa toda. Ela voltou no mesmo ritmo lento de sempre e sentou no sofá comigo.

- coloca pra mim o próximo capítulo da novela? - ela falou num tom de voz baixo

Mandei o comando pra tela e o episódio começou. A música tocando, cenas passando e ela bebendo o vinho dela em silêncio. Quando eu ia recomeçar o assunto ela falou.

- O que você tem com essa Luana, em?
- Ela é uma colega do meu curso. Eu saí com ela e o Jônatas uma vez.
- Mas vocês nunca ficaram, né?
- Não. Mas porque?
- Ah, não é nada. Não é certo eu ficar assim com ciúme, a gente fica sempre com essas conversas de poligamia, né?
- Certo e errado pra mim não são coisas tão bem definidas.
- É, mas daí a gente fica nessa coisa de pode isso, não pode aquilo e as pessoas acabam se machucando, sabe?
- Olha, pra mim o negócio é saber se você me ama, sabe? As vezes eu penso se não devia ter saído com a Luana.
- Porque você tá falando isso?
- Ah, sei lá, Liana. Você fica sempre fugindo dos meus abraços, dos meus beijos, dos meus carinhos. E quase nunca diz que me ama. Quer dizer, as vezes parece que você tá comigo, mas que queria estar com outra pessoa. Isso é mais que poligamia, sabe? É tipo: você quer estar com outro e não comigo, o que é diferente de querer os dois. Daí...
- Ah, manu, não fala assim. Você sabe que eu sou assim mesmo, que eu tenho dificuldade de expressar meus sentimentos. Mas não quer dizer que eu não me importe e que eu não queira. Eu sou doida, mas você sabe que se eu não quisesse estar aqui com você agora eu não estaria.

Ela deu um gole no copo. Parecia angustiada com a situação. Aquela mesma cara que ela faz quando se sente pressionada, com uma tentativa fracassada de sorriso defensivo. Mas eu não estava disposto a parar.

- Sim, mas você entende que isso me deixa inseguro as vezes? Sabe, você bem que podia fazer um esforço...

Ela estava bebendo o vinho num ritmo bem mais acelerado do que o normal. Um gole pequeno atrás do outro, ela chegou a beber mais rápido do que eu, que estava ocupado falando e pensando no que falar e já tinha esquecido que tinha um copo comigo. Dei um gole grande e ficamos em silêncio por um tempo. Então ela deu um último gole e largou o copo. Veio pra cima de mim, sentada no meu colo e me abraçou forte. Com aquele efeito mágico que só ela sabe ter, o abraço dela tirou todas as minhas preocupações e colocou meu coração pra queimar. Ela beijou meu pescoço e foi me dando vários beijos até chegar na minha boca. Suas mãos passavam pela minha cabeça e então desciam pelo pescoço e o ombro. Abracei o corpo dela inteiro, com um braço segurando sua cintura e o outro subindo até sua nuca. O piercing no nariz dela arranhava o meu e meu rosto estava coberto por seus cabelos negros. A novela ia passando na TV até que ela mesma colocou o pé na tela e a desligou. Quando a perna dela voltou pra cima de mim eu a levantei e carreguei pro quarto. Nos beijamos na cama por um tempo até eu me vi beijando todo o seu corpo. A textura daquela pele, o cheiro que ela emanava... algo ali simplesmente me hipnotizava. Quando fui tirar sua blusa, ela me interrompeu.

- Espera, espera, pega o jaleco. Vai... Por favor!

Ela adorava quando eu pegava um jaleco antigo meu e colocava os óculos e fazia um roleplay de médico. E eu adorava os sorrisos que ela dava, então não tinha como resistir. Vesti o jaleco, coloquei os óculos e sentei na cadeira.

- Então, você tem se alimentado bem e regularmente? Seus exames de sangue mostram excesso de gordura saturada e açúcar.
- É, doutor... É que eu não tenho levado uma vida muito saudável, sabe?
- Mas Liana, eu já não te expliquei como é importante se alimentar bem? Vamos, deixa eu te examinar.

E ela me olhou com aquela cara de criança que está prestes e fazer alguma travessura.

- Então eu preciso tirar a roupa pra o senhor me examinar e ver se está tudo bem?
- Sim, claro. Preciso ver se não tem nenhum problema na sua pele. As vezes são só detalhes que a gente tem que ver, entende?
- Ah sim, sim. Saúde em primeiro lugar, né?

Ela tirou a roupa e ficou apenas de calcinha.

- Já te falaram que ceroulas fazem mal pra saúde?
- hahaha! Para com isso vai estragar!
- Bem, certo, certo. Você por acaso já fez seu exame de mamas?
- Não fiz! É importante?
- Muito importante, deixa eu te mostrar!

Eu massageava os seios dela e os sorrisos se misturavam com suspiros. Nunca soube dizer porque ela gosta tanto disso, mas também nunca me importei. Minha experiência diz que muitas vezes saber qual é a graça de algo tira totalmente sua graça. Explicações só deixam a vida menos fantástica e surpreendente. Ela me puxou pra si e me deu um beijo profundo. Subiu em cima de mim e tirou meu jaleco. Foi tirando toda a minha roupa enquanto eu só atrapalhava o processo passando minhas mãos pelo corpo dela.

- Seu celular tocou. Não vai atender?
- Ah, deixa ele tocar.
- Pode ser um paciente!
- Já tenho todos os pacientes de que preciso aqui!

Virei-a pra mim e comecei a beijar seu pescoço, atrás da sua orelha, seu corpo. Meu beijos desciam pelos braços até a mão e então subiam de novo pra tomar outro caminho até chegarem no seu destino. Como sempre, ela resistiu em me deixar tirar sua calcinha.

- Não pode olhar, fecha o olho!

Mas tudo o que eu precisava mesmo era do meu tato. Com o tempo você vai aprendendo detalhes pequenos e eles se tornam automáticos. Já estávamos juntos há tempo suficiente pra eu saber como ela gostava. O segredo era fazer ela se sentir segura e ser paciente. Nada espetacular, nenhuma técnica mágica. O orgasmo dela era pelo coração. Eu, da minha parte, sentia a respiração dela, as contrações na perna, os gemidos roucos, o gosto, o cheiro. A minha vontade era de continuar ali pra sempre, dando prazer pra quem já tinha se tornado parte de mim. O prazer dela parecia retornar em dobro pra mim e cheguei ao ponto de gemer com o orgasmo dela. Com Liana eu tinha descoberto uma nova razão pra existir. Eu vivia pra vê-la feliz, pra amar. Tudo bem que eu sempre trocava de sentido de vida porque nunca nenhum me satisfez, mas vários meses já tinham se passado e eu ainda não tinha mudado de ideia!
Quando ela gozou, foi como sempre. Gemeu um pouco mais alto, prendeu minha cabeça entre suas pernas e deu aquele sorriso que eu sempre fazia questão de abrir os olhos pra ver. Depois disso fizemos amor exatamente da mesma forma que sempre fazíamos. Uma peculiaridade dela é que, por mais que o sexo fosse uma coisa bem parecida entre uma transa e outra, ainda assim era magnífico. O mesmo gemido, o mesmo arranhão na nuca, as mesmas posições. Até a duração era mais ou menos a mesma. Mas era sempre mágico, era sempre como se fosse a primeira e última vez.
Quando terminamos, ela foi pro banheiro e trancou a porta.

- Deixa eu entrar, Liana, abre a porta
- Ah não, espera sua vez.
- Abre aí, quero ir!
- Quem mandou morar num lugar só de um banheiro? Problema é seu!
- Eu estava dentro de você agorinha, qual é o problema de eu entrar no banheiro contigo?
- Todos! Não pode e ponto final!

E realmente tive que esperar. Pra mim era incompreensível que ela me mandasse fechar os olhos durante o sexo oral e me proibisse de entrar no banheiro com ela, mas que fizéssemos todo o resto. Mas eu já estava acostumado e só pedia pra irritá-la. Fui no banheiro depois dela, tomei meu banho e voltei pra cama. Ela já estava quase pegando no sono.

- Manu, não esquece que vamos na praia amanhã. Vai a família toda, você não pode dar furo, viu?
- Não, tudo bem, vamos sim. Já colocou o despertador?
- Coloquei pra 8 horas
- Caralho, não vamos pra praia não! Meu deus, pra que tão cedo?!
- Para de graça, vamos sim.

Em poucos segundos eu pude ouvir a respiração dela ficar mais lenta e intensa. Ela sempre dormia rápido depois do sexo. Virou pra mim e pude ver seu rosto. A coisa mais linda desse mundo era a tranquilidade dela. Sorri e tentei ficar acordado, mas acabei pegando no sono também.

- Manu, você tá roncando, vai resolver! - ela falou depois de me dar fortes chutes

Levantei no meio da madrugada, ainda meio bebado, e fui desobstruir as vias aéreas. Acrescentei uma substância dilatadora de vasos sanguíneos pra melhorar a eficiência e voltei pro quarto. Ela já estava dormindo e eu a segui rapidamente.

Sonhei que ela estava beijando um estranho na faculdade. Quando ia falar com ela, ela agia como se não me conhecesse e o estranho me apresentava pra ela. Eu não podia ver seu rosto, mas tentava explicar que ela era minha namorada. Só que e falava outra língua e eles não entendiam, então foram embora. De repente eu estava nu, mas mesmo assim ninguém conseguia me ver. E fui encolhendo, ou o mundo foi ficando gigante até que alguém pisou em mim e eu acordei.

- Manu, tudo bem? - Liana perguntou
- Ah, nossa, tive mó pesadelo!
- Depois me conta. Já são 8:30 e estamos atrasados
- Qual praia é mesmo?
- A de copacabana. Vamos, lava esse rosto e comemos alguma coisa por lá mesmo.

Fomos pra praia de metrô e encontramos minha família estrategicamente posicionada perto de um quiosque. Liana que tinha convencido todo mundo a se juntar ali e as pessoas pareciam estranhamente confortáveis com a situação. Por incrível que pareça, meus pais estavam de mãos dadas, Fred estava sem seguranças e Letícia estava de Biquini. Coloquei essa estudante de psicologia com a família e ela deu jeito de tirar todo mundo do marasmo. Uma coisa impressionante. Todo mundo cumprimentou todo mundo e eu rapidamente virei pra comprar algo pra comer.

- manu, trás pra mim um suco de laranja sem açúcar?
- Ta bem, li. Vai comer o que?
- Nada, já comi meio sanduíche em casa!
- meio sanduíche! Vou te enfiar comida goela abaixo!
- Aí vou ficar com bulimia igual àquelazinha!

As pessoas não entenderam o que estávamos falando direito. Minha mãe se limitou a falar que ela precisa se alimentar bem, mas que homem nenhum gosta de mulher gorda. Quando cheguei no quiosque, um homem estava me olhando diretamente. Estava com uma porra de um sobretudo de dia no verão no Rio de janeiro.

- Você, to falando com você!
- Ah, desculpe, eu não tinha ouvido. O que?
- Cadê ele?
- Ele quem, cara?
- Ele pensa que vai tirar tudo de mim? Quem ele pensa que é!?
- Cara, eu não sei do que você tá falando. - falei antes de virar pro balcão - Manda um suco de laranja, um energético e um salgado desse aí de queijo presunto.

Quando me voltei pra ele, percebi que ele estava com duas submetralhadores apontadas pro chão. O homem do balcão se escondeu e eu comecei a andar pra trás.

- Cara, relaxa, ninguém aqui quer o seu mal, a gente só veio curtir uma praia, mais nada!
- Ele vai pagar!

Quando ele apontou as armas eu percebi que Liana estava correndo na minha direção.

- Não porra, volta! Abaixa!

O homem começou a dispara contra todos que estavam por ali. Em plena luz do dia, pessoas corriam de um lado pro outro e eu estava agachado no chão. Alguém acertou sua cabeça pelas costas e ele caiu morto sobre mim. Quando tirei ele, vi que pessoas estavam aglomeradas em torno de alguém que tinha sido atingido.

- Nossa, de todos os tiros só uma pessoa foi atingida! - exclamou uma mulher

Meu estômago embrulhou. Fui até o lugar de olhos fechados e quando os abri, vi ela. Atingida por um tiro na cabeça em uma plena manhã de sábado.

- Pai! PAI!!! Me ajuda, puta que o pariu! - Eu gritava – conserta a cabeça dela, conserta, porra!

Mas meu pai estava em choque abraçando minha mãe e Letícia, que choravam copiosamente. Frederico estava caído no chão com os olhos arregalados. Levantei e o mundo começou a girar. Vomitei até esvaziar meu estômago, mas continuei sentindo as contrações no meu abdome.

- Não, porra! NÃO!!


Eu senti que ela já não tinha pulso e percebi que o meu também já não era tão forte. De súbito, a vida pareceu fugir também de mim...