RSS Feed

9 - Arrependimentos (Parte 2)

Constantino Peçanha – 2020

Viajei em congresso pro Piauí como se estivesse no século passado e esse tipo de deslocamento fosse estritamente necessário. Não que fosse algo incomum, especialmente porque havia subsídio da universidade, mas eu raramente ia senão pra vê-la. Cada vez que eu acreditava ter me livrado de seus encantos ela protestava quase silenciosamente pela minha presença e me seduzia mais uma vez. Mônica tinha uma maleabilidade absurda que acabou fazendo com que ela ficasse cada vez mais eficiente em me arrebatar. Dessa vez, bastaram algumas palavras e lá estava eu no meu voo econômico indo ouvir Neurocientistas brilhantes que poderia aparecer na tela do meu computador. Quando eu cheguei ela já estava no aeroporto com aquele sorriso cinematográfico e parecendo uma criança diante de um novo brinquedo.

- Constantino! - disse ela quase gritando

Correu na minha direção com passos curtos, como se soubesse que assim me faria correr na direção dela. As pessoas estavam olhando, alguém poderia me reconhecer. Pausei por um instante, mas ela não recuou ou reduziu o ritmo. Acabei correndo feito um moleque apaixonado e me jogando nos braços dela, que quase caiu no chão.

- Tá vermelho porque? - ela perguntou em tom sarcástico
- Não sei, Mônica. Talvez porque um monte de gente está nos olhando, porque tem um segurança vindo avisar que você não pode entrar aqui ou porque estou feliz em te ver. Porque será que meu coração bate assim?

Ela me abraçou e pôs a cabeça no meu peito.

- Deve ser porque você tá tá é velho gagá e não aguenta mais correr!
- Disse a moça que correu devagarinho feito uma anciã com passos curtos!
- Aquilo foi puro charme, meu filho! E você não resistiu!
- Com licensa, senhora, mas essa zona é para passageiros apenas – alertou o guarda
- Pega lá a sua mala, Constantino!

Eu fui na direção da bolsa. Tropecei e quase caiu, e ela soltou mais uma risada estrondosa que sem dúvida todos ouviram. Essa maneira que ela tinha de ser expressiva acabava contrastando com a Luiza, que era tão silenciosa e sisuda. Era como se, no meu coração, Mônica fosse mais minha família do que minha própria esposa. Só com ela eu sentia tantas emoções e ao mesmo tempo tanta familiaridade.

- Já escolheu a linha de pesquisa? - ela perguntou
- To pensando em decidir aqui. A interface homem-máquina é o tema desse congresso.
- Eu posso ir com você? - ela perguntou empolgada
- Reservei duas vagas na esperança de que você fosse pedir isso, mas acho que vai ser um tédio pra você.
- Eu to de viagem, querido. Eu quero ver como esses seus companheiros pensam, é um mundo totalmente estranho pra mim.
- Bem, que ótimo! O problema é que eu já li o trabalho do Nicolau, o principal palestrante, e ainda assim não decidi minha linha de pesquisa. Na verdade eu nem tenho tanta esperança de que isso seja produtivo a não ser como uma distração mesmo.
- Não é pra se distrair! Quantas vezes vou ter que te falar? Olha, você tem que se atrair! Vou te ensinar um segredo meu que você vai achar bobagem.
- Não tem bobagem sua que não seja um deleite pra mim!
- Para! Você só tá falando isso pra me pegar, seu tarado!
- Tudo o que eu faço é um pouco pra te pegar, mas também não exagera! Qual é o segredo?
- É a Maia, lembra?
- Não era uma amiga imaginária sua de infância?
- Sim, mas daí ela cresceu. Ela agora é uma sábia tibetana que conversa comigo de vez em quando.
- Como assim?
- Sempre que as dúvidas me assolam, eu paro e imagino toda uma cena na frente do espelho ou então num computador com câmera. Aí eu converso comigo mesma como se eu fosse a Maia e dou conselho pra mim mesma.
- E isso funciona?
- Bem, até agora eu me orgulho da vida que tenho vivido. Eu amo mais, realizo mais, viajo mais, aprendo mais. Assim eu decido que rumo eu quero pra minha vida. Você devia tentar!

Nem percebi, mas fomos andando e já estávamos no quarto de hotel. Seria uma semana inteira com ela.

- Olha, eu tenho aqui as versões prontas do mercado de tudo o que você gosta. Só colocar no micro-ondas!
- Seus dotes culinários nunca deixam de impressionar!
- Promete que vai falar com a Maia?
- Ah, eu tenho dúvidas dentro de mim, mas eu não tenho muita escolha, sabe? Só vou receber financiamento em neurociência se eu entrar pra área financiada pela indústria do entretenimento. Ou seja, interface homem-máquina, realidade virtual. Não tenho muita opção, acho que Maia me diria pra eu deixar de ser idealista apenas.
- Ah, mas adoro suas ideias mirabolantes! Lembra que você queria que o mundo fosse anarquista?
- Haha! Bons tempos!

Tomamos vinho barato e assistimos ao por do sol ao som de músicas que nem conhecíamos, mas que ali mesmo aprendemos a apreciar.

Constantino Peçanha – 2075

Eu tinha todo um plano esquematizado pra derrubar Miguel como um herói de desenho animado, mas no fundo eu nem visualizava mais do que uma morte heróica. Minha vitória foi algo tão inesperado que eu nem imaginava o que fazer quando recebi a notificação de que as crianças estavam prontas pra serem deslocadas e que miguel estava pronto pra ser neuralizado. Eu tinha pensado no meu avô, que era político e tinha aquela fazenda que foi passada pro meu pai e depois pra mim. Ele tinha um auditório enorme e uma mansão que visitei apenas algumas vezes na vida. Eu poderia levá-los pra lá, mas rapidamente eu seria rastreado. Mesmo assim, eram mais ou menos 150 pessoas pra acomodar, alimentar, vestir, etc. Eu teria que construir muita coisa lá.

- Caralho, o que eu vou fazer?
- Comando recebido – meus óculos responderam
- O que?
- Constantino, aqui é o Creed. Programei isso nos seus óculos porque antigamente você tinha o hábito de repetir essa frase. Uma vez, bêbado, me contou que a Mônica falou da maia. Lembra? Fale com ela! Essa é uma mensagem gravada.

Fiquei deitado na cama tentando imaginar uma Maia, mas a ideia de uma monja ou algo assim não me apetecia. Tentei criar um cientista, mas aí me dei conta de que isso seria o mesmo do que falar com uma parede: teria tantas respostas sobre questões sociais-morais quanto um cão tem sobre as nuvens. Tinha que ser alguém que estuda a sociedade, que age sobre ela, que acredita que nada seja impossível de mudar, mas que não está contaminado com a noção de que pra tudo há uma solução técnica...

- Luíza! - gritei
- iniciando ligação... - disseram os óculos
- Não, não! Desligar! - gritei

A tela de discagem se apagou, mas logo luíza estava me ligando de volta.

- Tá tudo bem contigo, Tino?
- Tá sim, foi sem querer. Meus óculos estavam configurados pra fazer ligações mediante um grito. Daí eu gritei aqui feito louco.
- Teve pesadelo com a Luíza?
- Não, deixa pra lá. Depois falo com você, tá bem?
- tá certo, vou desligar meus óculos porque to meio ocupada, desculpa. Depois eu falo com você, o Creed te acha.
- Sempre!

Ela desligou bem ao estilo século 21, sem dizer tchau, assmi como não disse alô nem nada assim no começo da conversa. Segui como meu plano original e projetei Luiza com minha imaginação, sentada em sua banca de avaliação como fazia com seus muito orientandos.

- Então, senhor Peçanha, que proposta você tem pra essas crianças? - ela disse, invasiva como sempre
- Pra falar a verdade, eu não sei. Consigo pensar em um ou outro paradigma que produz “resultados”, sejá lá o que isso for, mas nenhum deles parece certo.
- E porque não?
- Não sei, parece que são incompletos
- Pois veja só o que te falta. Ouvir. Você está aí deitado na sua cama, fechado no seu mundinho e achando que sabe o que é melhor pra pessoas que você nem conhece. Quem é você pra querer decidir isso? Que tipo de autoridade divina você tem? Se você chega com um plano pra vida dessas crianças, mesmo na ausência de drogas, como você é diferente de quem você combate?
- Então você está sugerindo que eu converse com elas?
- Mais do que isso, que você veja, que escute, que seja uma influência positiva na vida delas, mas que não seja um agente cerceador que colocará grades em suas potencialidades. Se elas quiserem sair de perto de você entrarem na liga, o que você vai fazer?
- Não...! Bem, acho que a escolha é delas mesmo. Mas quero que saibam o que é a liga antes disso.
- Exatamente: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará! É quase clichê, jovem, mas o que muita gente não vê é que isso é todo um conceito de liberdade. Sabendo o que é a liga, o que a liga de fato faz, eles poderão decidir segundo seus próprios valores se vão fazer parte dela ou não. Assim como podem decidir vender o corpo por dinheiro ou viajar pelo espaço, porque a vida é deles e é um poço de possibilidades. Você precisa, mais do que guiar, apontar possibilidades pra eles experimentarem, estudarem, sentirem! Esse é o papel da educação numa sociedade livre!

Ela desapareceu tão repentinamente quanto surgiu e eu imediatamente comecei a comprar as contruções que seriam instaladas na fazendo. Uma enorme estrutura de refeitórios, dormitórios, armazens, salas de aula e aparatos tecnológicos. Um pequeno exército de robôs pra manter tudo em ordem e pronto. Alguns milhões gastos de uma reserva monetária que eu nem conhecia bem, mas que não pareceu fazer muita diferença. A montagem começou e saí de casa. Miguel preparou ônibus para eu transportar as crianças e elas estavam esperando em um pátio por mais instruções. Quando me viram, pareceram me reconhecer rapidamente e um deles, João Victor, veio logo me cumprimentar.

- Senhor, aguardamos instruções! - disse ele sem ao menos olhar nos meus olhos.
- Vamos entrar nos ônibus. O endereço já foram enviados aos pilotos automáticos. Será uma viagem de mais ou menos cinco horas. Não levem muita coisa, pois terão coisas novas lá.
- Sim senhor!

Os meninos se alinharam e entraram nos ônibus sem fazer muito ruído, como se não tivessem nenhuma pergunta sobre o que estava acontecendo. Quando todos entraram, as portas se fecharam e a viagem começou. Fora exceções, foram todos dormindo e eu mesmo peguei no sono.
Chegamos lá e a estrutura ainda estava sendo montada por aqueles robôs gigantes e assombrosos que só faziam com que eu me sentisse velho. Fui até uma árvore onde ficava sentado quando novo e as crianças me seguiram, como se essa fosse uma coisa totalmente obvia de se fazer. Quando me sentei pra assistir a construção, Eles também se sentaram e seu líder veio se sentar comigo.
João Vitor era o líder daquele grupo de jovens que parecia segmentado por um sistema de hierarquia intelectual. Foi conversando com ele que percebi que Miguel era só mais uma engrenagem num sistema enorme que envolvia mais do que a Cidade do Rio de Janeiro e que mandá-lo pra liga tinha sido quase inútil. De fato, se não fosse pelo ataque que realizamos eu nem teria conseguido levar essas crianças pro interior de São Paulo na antiga fazenda do meu pai. Eram 150 jovens de idades que variavam entre 5 e 16 anos. João tinha 15 e se portava como um militar.

- Reconheço você. É Constantino Peçanha, um dos fundadores da Liga dos cientistas pela ciência livre
- Poderia ser qualquer um com o meu rosto!
- Se fosse outra pessoa já teria morrido. Frederico não perdoa, mas respeita família.
- Então você conhece meu filho?
- Sim, eu sou o único que já viu ele aqui. Segundo ele, eu me mostrei como líder, ele percebeu e me colocou nessa posição. Agora todos os outros recebem instruções de mim.
- Deve ser um peso e tanto. Olha só pra todas essas crianças, sentadas enfileiradas e quase que em silêncio total. Parecem pequenos robôs sob seu comando.
- Não é um peso porque não sou eu quem garante o comportamento de todas. Mesmo assim elas não são tão quietas assim. Acontece que sabemos o que rolou no rio, sabemos que você salvou a gente daquilo e que é uma situação de crise. Se ficarmos fora de controle vamos acabar mortos ou pior, abandonados. Estamos inclusive um pouco tristes porque alguns dos nossos professores morreram no ataque.
- Você está triste pelos professores?
- Eu... Isso não importa. Olha, você sabe se ali do lado do clube da zona oeste que foi atacado o bairro ao lado ficou intacto?
- Olha, pelo que sei teve danos paralelos e várias edificações ficaram comprometidas. Estão reparando tudo e mensurando os danos ainda.

O rapaz deixou uma lágrima escorrer.

- Angela... “anrrela”...
- Quem é essa?
- Ela é uma pobre coitada que mora ali do lado. Ela nem sabe falar português puro, veio das regiões que falam esse portunhol deprimente. Ela diz que o nome dela é “Anrrela”.
- E você chora por essa pobre coitada?
- É uma fraqueza da qual já falei antes com meu comandante. Um dia numa excursão pela região eu a vi dirigindo um carro bem velho pela rua, sem ter nem piloto automático. O carro quebrou e nosso guia nos instruiu sobre auxiliar a população local pra reforçar o silêncio. Então peguei meu equipamento e fui lá consertar a lata velha dela. No começo eu me irritei bastante com aquele portunhol, porque estamos no Estado do Rio de janeiro, ela deveria falar português ou ao menos espanhol, mas não essa mistura vulgar. Mas ela ficava sorrindo pra mim com aquela marca abaixo do olho direito. Alguma coisa naquele sorriso tirou toda a minha tensão, sabe? Eu até demorei pra consertar o carro por causa dela e tomei uma bronca.
- O que tinha no olho?
- Ah, acho que é uma cicatriz porque ela não tem cicatrizadores, daí se feriu e ficou a marca. É um sinalizador de pobreza, mas por algum motivo me deixou maluquinho. Disseram que eu sou pervertido.
- Quantos anos você tem mesmo?
- Tenho 15, senhor.
- E ela?
- Ela tem 14. Ja vi tudo da vida dela e as vezes eu me pegava falando com ela online. Dei até um óculos pra ela escondido. Disseram que ela não podia entrar na escola porque ela não é orfã e porque é burra, mas ela é esperta. Eu conheço ela! Ela tem o cabelo encaracolado e a pele alva. Tem olhos negros, a voz mais doce da zona oeste e só faz gentileza pras pessoas.
- Você sabe como surgiu esse portunhol, que hoje em dia dizem ser pura burrice?
- Sim, depois da guerra quando anexaram os outros países do norte da América do sul as línguas se misturaram. Um fenômeno linguístico que profanou nossa língua, segundo nosso professor.
- Sabe a idade do seu professor?
- Tem 23 anos.
- Bem, então ele era muito pequeno pra entender o que de fato aconteceu. Os livros registram apenas versões limitadas do que de fato aconteceu.
- Então qual é a sua versão? - O menino parecia ter esperança de fazer do meu discurso um elogio pra sua amada
- Acontece que durante a guerra o antigo Brasil recebeu armamentos contrabandeados da liga e apoio massivo da américa do norte. Nós invadimos e massacramos nossos povos vizinhos enquanto a mídia era manipulada pela moribunda TV e pelos hackers que programavam robôs pra espalhar mentiras pela internet. Só que a verdade acabou vindo à tona e descobrimos os massacres que estavam sendo cometidos. Com líderes mortos ou se rendendo, no final da guerra uma jogada política anexou essas nações vizinhas ao Brasil.
- Sim, disso eu seu.
- Então esse povo sofrido falava espanhol e houve uma comoção nacional por reconstruir o que foi destruído e tentar repor o que os criminosos de guerra tiraram. Enquanto criminosos de guerra eram julgados e condenados, o povo brasileiro começou a acolher pessoas desses países por todo o território nacional enquanto alguns foram voluntários pra ir trabalhar pela reconstrução desses novos estados. Só que eles só falavam espanhol e a pessoas começaram a tentar imitar o espanhol pra se comunicar com eles. O Brasileiro puxava um pouquinho do sotaque pro espanhol, falava uma palavra aqui e outra ali do espanhol e vice-versa. Esse esforço se prolongou e as línguas foram se misturando enquanto as crianças eram criadas ouvindo das duas línguas o tempo todo
- Mas então porque somente pobres falam portunhol e os mais ricos falam das duas línguas separadamente?
- Porque quem mais acolheu os estrangeiros foram os pobres.
- Como é?! Mas eles já não tinham dificuldades?
- Sim, mas ainda assim foram os que mais se compadeceram. Os ricos se fecharam ainda mais nos seus condomínios e na sua língua, mas o povo já tinha dialetos diferentes e uma linguagem flexível que sempre mudava. Então essa menina, qual é o nome dela?
- Angela.
- Sim, a Angela é o fruto de algo muito bonito, que foi a compaixão dos nossos mais necessitados pelos crimes de guerra cometidos por toda a América do sul. O portunhol dela nada mais é do que um sinal de que nossa nação não é das que segregam e perseguem como outras da Europa, por exemplo. Nós só separamos ricos de pobres e Angela só fala a língua que os outros pobres falam, por isso desprezam ela.
- Queria saber se ela está bem...

O menino deitou-se e ficou olhando os dormitórios serem construídos. Eu nem sabia bem o que fazer. Certamente podia alimentar e abrigar aquelas crianças, mas o que exatamente eu tinha pra lhes ensinar? Tinha muita coisa pra ouvir de crianças que não estavam habituadas a ter voz: precisava de tempo. Acessei meus óculos e pedi uma sala de recreação e aparatos tecnológicos pra manter as crianças entretidas enquanto eu pensava. Eram claras as camadas hierarquicas até mesmo pela roupa. As mais pobres, como Juanito, vestiam roupas sem cores e até rasgadas em alguns pontos e pareciam mais sujas enquanto que outras se vestiam e portavam como se estivessem sendo treinadas pra constituir algum tipo de elite. Roupas novas, óculos de última geração do mercado e olhares altivos.
Tendo em mente todos os locais dos dormitórios, decidi misturar todas as “castas” de crianças nos diferentes quartos como uma tentativa de quebrar essa tradição. Logo tudo ficou pronto e eles entraram em fila pelos corredores sem a necessidade de nenhum tipo de orientação especial. Receberam em seus óculos ou camisas o local onde ficariam e foram pra eles sem reclamar. Anunciei uma assembleia geral pra explicar o que estava acontecendo.

- E aí, Constantino, decidiu se vai sair do planeta ou não? - perguntou creed invasivamente nos meus óculos
- Não decidi. Estou pensando em como explicar as coisas pros meninos e não sei o que dizer,
- ótimo! - disse ele empolgado
- O que? Como assim ótimo? - retruquei
- Deixa eu fazer minha apresentação pra você e pra eles. Passei dois dias construindo isso, deu o maior trabalho!
- Qual é o tema?
- É uma propaganda de Marte, pra convencer pessoas educadas a irem, mas eu falo, então vou simplificar pra eles.
- E é hora pra isso? - perguntei em to irônico
- Tem outra escolha? - Ele retrucou em tom de zombaria
- Bem, faça como quiser. Assim pelo menos esvazio minha cabeça.

Quando cheguei no auditório onde meu avô fazia palestras, vi que ele estava bastante mudado. Coisas que não encomendei estavam instaladas por ali. Creed perdeu totalmente os limites e fez pedidos no meu nome pra fazer a apresentação, como se minha incapacidade de saber o que falar pras crianças fosse uma coisa tão óbvia que ele já tinha planejado falar no meu lugar. As crianças estavam enfileiradas e milimetricamente alinhadas numa fila dupla que as separava pelo sexo. Só aí vi a predominância de meninos sobre meninas, porque elas também estavam usando o mesmo corte de cabelo militar e eram duas vezes mais numerosos. Quando entrei, João, o primeiro da fila, bateu continência pra mim e ficou parado. A situação constrangedora se manteve por uns 30 segundos até eu entender que ele pedia autorização pra entrar no auditório.

- Podem entrar – disse eu meio perplexo
- Sim, senhor. - Respondeu joão num tom que antigamente chamariam de robótico

Os meninos entraram em um silêncio tão intenso que parecia ser algo sagrado pra eles. De alguma maneira, todos eles sabiam exatamente onde iriam se sentar, como se até pra isso fossem treinados. Subi no palanque e falei brevemente:

- Algumas coisas ainda estão sendo definidas. Como sabem, é um momento crítico e estamos todos preocupados com a segurança de vocês. Não posso passar mais informações porque muitas decisões ainda precisam ser tomadas, então por enquanto vocês tomarão lições escolares com robôs aqui na fazenda. Para a reunião de hoje, decidi trazer um conteúdo fora do comum, mas que poderá fazê-los pensar sobre o futuro de maneira diferente. Lhes apresento creed 2030!

Os aplausos dos meninos a um estranho foi tão artificial que pareciam até sincronizados.

Os projetores mostraram um Macaco Bonobo e os meninos riram.

- Não, esse não sou eu – disse a voz alterada de Creed no fundo – mas a primeira lição que tenho pra dar vem desse macaco e de seu companheiro.

Outro macaco apareceu bem de frente pra esse, e os dois se encaravam de maneira agressiva. Começaram a gritar e bater as mãos no chão e nos peitos por algum tempo, mas sem saírem do lugar, até que repentinamente pararam e andaram numa determinada direção como se nunca houvesse ocorrido o desentendimento.

- Não sei se vocês sabem, mas Bonobos não brigam assim. Chimpanzés que fazem isso. E na verdade esses macacos não estavam brigando, mas sim manipulando um robô.

Projeções da atividade cerebral dos macacos e de seus índices metabólicos apareceram no topo do holograma.

- Vejam como com esse comportamento os níveis de cortisol sobe e a atividade cerebral como um todo indica estresse. Isso é lido pelos robôs, que levam comida para os macacos, então eles aprenderam a se estressar para ganhar comida. Vejam só o holograma mais ampliado.

Apareceu uma cena da floresta e os outros bonobos assistiam a cena com atenção, mas olhando em volta a procura do robô. Gráficos na cabeça dos outros bonobos mostravam que a tensão artificial não os afetava e que todos sabiam que aquilo era uma “farsa”. Os rapazes perceberam que uma fêmea estava realizando sexo oral em outra e as risadas foram estrondosas, mas não duraram muito.

- Exatamente! Esse riso diz tudo! Dois macacos brigando e elas ali trocando amores? Não vamos agora discutir o comportamento sexual desses macacos, mas vejam só como foram inteligentes: manipulam robôs sempre que a comida fica escassa e assim nunca passam apertos. Alguns outros animais desenvolveram estratégias semelhantes. Nas regiões tradicionais da nuvem vocês encontram notícias e documentários sobre como a natureza perdida tem sido restaurada em florestas plantadas onde antes havia desertos e que um grupo que se auto-denominou “druidas” está efetivamente curando o mundo que a industrialização fez adoecer. Mas isso é uma mentira e esses macacos são uma das provas. Nenhum bonobo em seu ambiente natural precisou manipular robôs e nenhuma floresta precisou ser meticulosamente monitorada em suas diversas variáveis ecológicas pra ser mantida viva. Na verdade, 95% dos recursos empregados na manutenção de florestas ao redor do mundo não são documentados, e assim fica a impressão de que algo disso é natural. Mas não é.

Gráficos apareciam de um lado pro outro.

- Vamos ignorar esses números por um instante e só pensar: porque é que as florestas precisam de robôs? Aqui vai a lista: 1) Sem controle meticuloso, a maioria das espécies entraria novamente em extinção, porque elas não deixaram de existir no passado por acidente e o planeta não tem mais condições de comportá-las. 2) sem controle meticuloso do solo, os micro-organismos que vivem ali o tornariam hostil à vida de todas as plantas e o local voltaria a ser um deserto. 3) Sem controle artificial das temperaturas e das chuvas, quase nenhuma espécie viva sobreviveria nesse ambiente. E não estou falando só dessa imensa floresta do kalahari, meus jovens. Eu estou falando do mundo inteiro!

- Como assim o mundo inteiro? - um dos alunos ousou perguntar

Os outros alunos o olharam com reprovação por ter se manifestado, mas ele te manteve firme.

Desastres naturais estão acontecendo o tempo inteiro, furações e maremotos vem sendo impedido ou mitigados por medidas tecnológicas o tempo inteiro. Grandes chuvas são dissipadas e grandes secas são interrompidas por aviões que literalmente provocam chuvas. A vida no oceano é só uma sombra do que um dia foi e os peixes que comemos são todos criados em laboratórios espalhados pelo mundo. Alguns não sabem, mas no passado extraíamos peixes diretamente do mar sem nenhum tipo de reposição, tamanha a fartura. Em suma, sem essas tecnologias, nossa espécie entraria em extinção e o próprio mundo entraria num colapso que poderia acabar com toda a vida como a conhecemos. Nosso mundo, como disse um velho amigo, vive à custa de aparelhos.

Depois da fala um vídeo foi exibido mostrando os equipamentos operando e alterando toda a dinâmica climática além da fauna e da flora com uma música de fundo um tanto melosa.

Depois disso, ele mostrou a primeira colônia de marte de 2030, com apenas alguns blocos de moradia e plantações.

- Essa foto foi tirada no mesmo dia em que eu nasci. Na época, esse lugar se mantinha com o monitoramento total: era um reality show onde as pessoas assistiam a vida em marte e, com sua audiência, recursos eram mandados periodicamente pra lá. Mais tarde, o elemento Marsídio foi descoberto e a colônia entrou em franca expansão, extraindo e exportando o material em troca de recursos. Marte é um planeta que encontramos morto, e nesse sentido não é muito diferente do nosso. Mas em outro sentido, ele é totalmente diferente. Nunca houve um homicídio em marte. Na verdade, ninguém lá tem nenhum tipo de armamento. Não existe pobreza em marte. Na verdade, eles têm um conceito bem diferente sobre propriedade privada. Não existem chefes e patrões: a democracia é absoluta. Entre dois planetas mortos, você tem a opção de escolher entre um onde as pessoas se respeitam em suas diferenças e outro que segrega. Um que agrega e outro que destrói. Um cheio de ódio e segredos, cheio de inutilidades e desperdício e outro onde o limite dos recursos une as pessoas e as torna transparentes. O que acha de deixar o mundo onde nasceu para trás?
- É... não, obrigado! - gritou um deles

Todos os meninos deram uma risada longa e acabou que o próprio Creed começou a rir, o que desencadeou mais risadas. Mas eu sabia muito bem da veracidade daquelas informações e acabei ficando introspectivo. Seria, porventura, a hora de deixar esse mundo pra trás?
Com todo o poder tanto monetário quanto de fundador da liga, fiquei parado e deixei o mundo tomar os rumos que tomou. A ideia de que esse planeta já não tem salvação começou a tomar conta de mim. E arrependimentos começaram a se tornar esperança...

9 - Arrependimentos (parte 1)

Frederico Peçanha - 2075

Na verdade eu já sabia que isso aconteceria. Eu sabia que ele estava se preparando pra atacar, eu sabia de tudo. Só esperava que ele me provasse o contrário, que nem toda a minha família fosse se voltar contra mim. Primeiro meu irmão, sem ao menos saber, toma de mim a coisa que eu mais quis nessa vida e depois meu pai entra na minha cidade, rouba todos os meus pupilos, corrompe meu chefe traficante e mata um terço dos meus homens! Reagrupando, depois de todo esse dano, vou ter que interromper meus planos de atacar São Paulo simplesmente por falta de contingente pra manter a cidade! Aquilo seria uma porra de uma mina de ouro e ele tirou isso de mim. Isso sem falar na minha mãe, que descobriu quem eu sou e parou de falar comigo por completo nos últimos 6 meses de vida. Olhando pra trás, me parece que eu só tive e tenho de verdade duas pessoas na minha vida. Isabela e Letícia. Minha letícia, minha irmãzinha genial que decidiu investir o talento dela em trabalhar na maquinaria que mantém o mundo se movendo. Desde programar robôs a processar dados de levantamentos ecológicos, ela é parte da equipe que se denomina “a liga dos druidas” e criou as florestas artificiais da liga, que balancearam as emissões de gás carbônico no planeta. Ela acabou se tornando uma guardiã do mundo, já que é responsável pelos aparelhos que o mantém respirando. E Isabela, minha princesa guerreira sorrateira! Vem e vai quando quer, e você nunca sabe de fato quando ela virá com seus feitiços. Desde matar um inimigo meu que eu sequer sabia que existia até colocar aquela lâmina nano-afiada no meu pescoço pra me relembrar que ela pode acabar comigo. Ela não me encantou à primeira ou á segunda vista, como Liana, mas não posso negar que ela me conquistou. Com aquele intelecto poderoso, aquele jeito que ela tem de adivinhar meus pensamentos e já dar palpites sagazes...

- Então você já acordou, bebê chorão? - Isabela falou entrando no quarto com uma bandeja
- Isabela? O que você faz aqui, moça? - respondi
- Vim cuidar desse bebê chorão aí. Tava resmungando enquanto dormia e até chamou o nome da liana.
- Porra, pra que você vai falar dela agora?
- É pra te relembrar de algumas coisas. E tem uma, aliás, que eu sabia e nunca te contei.
- Ta falando do que?
- Da Liana, idiota.
- Deixa a menina descansar em paz, Isa. Já se passaram décadas.
- Ela tinha outro. Não era o Emanuel, esse. Era outro.
- Como assim? Você por acaso tem provas disso?
- Sim, claro. Diálogos virtuais rastreados e dois encontros inteiros gravados. Eu preferi nunca te falar isso, porque você precisa de foco, mas hoje decidi falar.
- E era uma relação parecida com a que ela tinha comigo ou com o Emanuel?
- Nem de perto, cara. Ela obedecia esse cara, era até meio cômico. Ele fez alguma coisa com ela na cama que deixou a menina louquinha. Era engraçado de ver, porque ele era bem pobre. Na verdade ele nunca soube de você, passou a trabalhar pra você e foi morto ontem á noite nesse Blitzkrieg que fizeram contra você. Por isso que me lembrei agora.
- Mais um vestígio dela se apagando do mundo...
- Quer ver algo da interação deles?
- Francamente? Não. Ela me ensinou muita coisa, mas não foi ativamente. Ela fez comigo o que eu fiz com o mundo: usar diferentes tipos de poder pra influenciar e controlar as situações. Você precisa antes ser vítima pra depois aprender a ser algoz.

Eu falava enquanto comia aquele pão com carne moída e bacon que ela inventou com 15 anos e eu aprendi a amar. Temperos artificiais carcinogênicos eram seu toque de amor e nostalgia. Difícil acreditar que alguém conseguiu passar tanto tempo sendo parte da minha vida. Quando terminei, ela puxou aquela mesma faca e subiu em cima de mim.

- Você lembra dessa faca? - ela disse
- Lembro.
- Então me conta a história dela.
- Quando eu te rejeitei sob a alegação de que você era nova demais, você mandou fazer essa faca do tamanho do meu pescoço e planejou me degolar da garganta até a nuca, mas acabou me seduzindo no processo.
- E você nem ligava de verdade pra eu ser tão nova, seu pervertido!
- Eu ligava pra não ser esmagado pelo seu pai!
- É, eu nunca perguntei mas imaginei. E o que te convenceu?
- Foi a sua faca mesmo. Você entrou na minha casa sorrateira, subiu na minha cama e pôs a faca no meu pescoço. Lembra daquela cena?
- Lembro. Eu fiquei te olhando e saboreando o que deveria ser o seu medo. Mas você tinha desejo no olhar e eu fui ficando confusa.
- Quando você me beijou, eu me senti a pessoa mais poderosa do mundo. Você demonstrou que era mais do que uma menina invadindo a minha casa e provou que podia tirar a minha vida!
- Então você devia se sentir fraco!
- Mas como? Se você me beijou ao invés de me matar! Se você me amou ao invés de me odiar?
- Amou? Estamos ficando românticos agora?
- Eu quis dizer outra coisa, Isa, para de graça. Você tinha todo o poder de me destruir e ainda assim escolheu se entregar pra mim e ser minha naquela noite. Aquilo mudou tudo. Eu tava disposto a correr o risco de seu pai me matar por aquilo.
- Pensando bem, sua primeira gozada foi até rapidinha pro seu padrão! Bobinho apaixonado, você!
- fala sério, aquilo foi praticamente um filme pornô, Isa. Lolita sexy te acorda, te domina e te seduz. Tá se sacanagem!
- hahahahaha! Lolita? Seu doente!

Ela apertou a faca contra o meu pescoço e fez aquele sorriso meio escondido pra mim. Desceu devagar e sua franja caiu nos meus olhos, que se fecharam. Ela selou o quarto e fez parecer que era noite. Mesmo de olhos fechados eu percebi. Estava recriando nosso momento, como sempre faz. Mal sabia ela que cada momento era um novo e que ela nunca precisou me fazer reviver nada. Eu enlouqueci e quis tomá-la nos meus braços, mas ela apertou a faca no meu pescoço.

- Que graça é essa, Fred? Tá achando que pode tudo agora?

Então eu abri os braços na cama e deixei ela me beijar. Era a única mulher que eu deixava beijar meu pescoço daquele jeito. Aquela pele macia que ela manteve idêntica com o passar dos anos por tecnologia fazia seu corpo pressionado contra o meu parecer que era a primeira vez. Aquela mesma voz, aquele mesmo cheiro. E eu era completamente incapaz de me enfastiar. Quando você encontra o milagre de estar com uma pessoa que sempre te surpreende em vez de te decepcionar, tudo parece como se fosse a primeira vez independente de quantas vezes se repita. Movi minhas mãos devagar, do jeito que eu sabia que ela gostava. Com ela você não pode se apressar em tomá-la. É como uma égua selvagem que você precisa domar com bastante calma e sob o menor deslize ela te derruba. Minhas mãos chegaram na sua cintura e ela se contraiu na hora. Depois de todo esse tempo, ela ainda custava a se entregar pra mim. E me surpreende que, com seus escravos, ela nunca tenha tido essa resistência toda. Segurou meus pulsos contra o colchão e me olhou seriamente

- O que difere os fortes dos fracos, Fred?
- Fortes buscam poder para realizar mudança. Fracos buscam poder para impedí-la. Fortes são empreendedores revolucionários, fracos são velhos lobos sentados em tronos de mentira.
- De onde vem o poder, Fred?
- Da paixão e do ódio...
- Look me in the eye and show me your hatred!

Eu vi aqueles olhos brilharem. Aquele calor, aquele cheiro que nunca me cansaram e aquela estranha capacidade de tomar o que há de pior em mim e transformar em grandeza acaba me transformando no mais poderoso dos escravos. Acompanhei a mudança no planeta ocorrida no século 21, entendi como as dinâmicas de poder mudaram e me aproveitei delas, mas sempre foi impossível entender que tipo de relação de poder eu e Isabela tínhamos. Com ela, me sentia o homem mais poderoso do mundo, com uma chama sempre acesa e quase dependente daquela voz de menina que ela insistia em conservar. Ela me tinha na mão, e, por escolha própria, se entregava e me empoderava. Já enlouqueci tentando entender o que ela quer de mim, todas as minhas ofertas parecem banais, mas ela consegue alguma coisa insondável e se dá por satisfeita. Mulheres...!
Subi em cima dela e rasguei suas roupas. Ela sorriu, puxou meu cabelo da nuca quase ao ponto de arrancar todos os fios e me puxou pra si. Um beijo cheio de paixão e cheio de ódio. Não havia naquele quarto qualquer tipo de restrição. Eu queria que ela me mostrasse sua força, e lhe mostrava a minha. Cada um de nós amava a ideia de que o outro podia arrancar-lhe a cabeça num segundo. Ela nunca largava aquela lâmina, que já não se posicionava em posição ameaçadora. Como sempre, nosso beijo foi ficando mais profundo, e nossas “agressões”, foram se acabando, restando apenas a ternura. Nosso bom e velho transe, tudo o que eu precisava. Não há momento mais seguro. Beijei todo seu corpo e ela largou a sua “murder weapon”, como ela chamava. Era completamente inconcebível que eu realizasse sexo oral em alguma mulher além dela. Talvez fosse só uma questão de gratidão, talvez eu só estivesse tentando convencê-la de ficar um pouquinho mais. Quando ela empurrava minha cabeça pra baixo como fez, não havia como resistir. Seus comandos eram ordens e ela sempre encontrava um jeito de comandar que eu fizesse tudo o que eu mais queria. O ritmo consistente, o movimento suave com a língua, tudo como lapidamos no decorrer dos anos, demonstrava como, no decorrer do tempo, eu me moldei pra satisfazer apenas ela. Tão monógamo que soa doentio! Ela puxava meu cabelo e se contorcia violentamente até o último momento. Não sou nenhum indulger, claro, mas me orgulhava daquele pequeno poder que ela tinha me dado. Quando gozou, quase esmagou minha cabeça entre suas pernas. Também trocou seus músculos pelos aprimorados e se meu crânio não estivesse reforçado, aquilo poderia mesmo ter me matado. A ideia de que ela podia não saber se eu sobreviveria me fascinou completamente.

- Mensagem de “Anonymous 9957” - disse meu computador

Somente meu hacker sabia desabilitar meu sistema de privacidade, então previ que seria importante a mensagem.

- Leia a mensagem em formato de áudio - respondi

“Chefe,
Essa mensagem é um resumo do arquivo em anexo, que é um relatório automático detalhado que foi realizado sobre as ações do traidor. Como você indicou ontem a noite em sua mensagem deixada dentro da câmara, alguém sabotou nossas defesas. Nossos sistemas mecânicos e biológicos de detecção e contenção de ameaças foram seriamente sabotados. De fato, todos os nossos radares de paradigma antigo foram desalinhados de maneira precisa e inutilizados e nossas armas biológicas em treinamento foram soltas enquanto as treinadas ficaram presas, também por sabotagem mecânica. Esse ataque não foi planejado pra falhar e encontramos o sabotador. É o Raime. Sinto muito. Dentro do relatório seguem todas as provas necessárias”

- Caralho, Raime!? Ele trabalha pra você a mais de 30 anos e você tirou ele da miséria pra fazer dele um milionário!

Lembrei de todos os nossos momentos e de toda a lealdade que eu esperava dele. Sua traição era imperdoável. Decidi, naquele momento, que era o momento de eu mostrar meu mais novo brinquedo aos meus associados.

- Convocar assembleia geral de altos executivos. Auditório principal, dentro de duas horas. Abrir caixa de mensagem para segurança Rio 1. Mensagem segue: “busquem capturem e transportem Raime pro auditório imediatamente.” Mensagem terminada, enviar.

Deitei olhei pro teto. Eu não queria ter que fazer aquilo. Se ao menos Raime soubesse do meu verdadeiro poder, nada disso teria acontecido. Era minha obrigação fazer dele um exemplo, e foi o que decidi fazer. Era difícil, no entanto, encontrar forças pra fazer o necessário.

- Show them your hatred, my prince. - Disse isabela com olhar consternado, porém raivoso.

As duas horas se passaram rapidamente mal percebi os minutos esvaindo enquanto preparava tudo com ela ao meu lado. Antigamente ela falava mais e fazia perguntas, mas com o tempo foi ficando cada vez mais silenciosa. Ela me acompanhou, deu algumas dicas que me pouparam tempo e não fez nenhuma pergunta. Cada dia mais engenheira! Sentou-se na primeira fila e assistiu o espetáculo.
O auditório tinha várias cadeiras vazias e nele reinava absoluto silêncio. Cada um sabia seu lugar e todos estavam bem informados sobre o recente ataque, mesmo que só pela mídia mainstream. Estavam me esperando.
Fiz o upload das provas contra Raime enquanto ele era amarrado na cadeira especial. Todos leram em silêncio por algum tempo até alguns começarem a protestar e amaldiçoar Raime.

- Seu filho da puta, você matou o meu pai!
- Você é um homem morto...!
- Voce vai sofrer!
- Antes de mais nada, passo a palavra pro nosso condenado. Que ele tenha suas últimas palavras.

A cadeira de raime se moveu e se fez maca, permitindo a ele a dignidade de falar de pé.

- Passei anos e mais ano nessa escravidão e não há futuro. Eu não tinha como ir embora. Se isso aqui acabasse, eu ganharia dinheiro suficiente pra comprar minha estadia em Marte. Esse planeta sobrevive com a ajuda de aparelhos e eu sabia dos riscos quando vendi vocês. Alguma coisa deu errado, não sei o que foi, mas isso não me importa de qualquer forma. Eu prefiro a morte a seguir vivendo a vida que eu levava, que já não fazia mais nenhum sentido sem minha família.

A plateia berrava com ódio. Era o momento de saciar a todos. Ordenei o silêncio erguendo a mão direita com punhos cerrados.

- Tudo aquilo porque lutamos, tudo aquilo que construímos, foi posto em risco por Raime e seus aliados do Leste Europeu. Essa crise diplomática acaba de se fazer guerra. Mas antes, temos que lidar com esse cão traidor. Seus cicatrizadores já foram removidos e ele não pode evitar a dor. Cada um de vocês que desejar pode vir aqui e bater nele como quiser.

Um a um, os homens foram se levantando e vindo para o palco. Cada um expressava sua raiva. A maioria se queixava das mortes que ele causou, mas alguns ainda mencionavam a irracionalidade, a loucura do que ele fez. A cada vez que um homem terminava, cicatrizavamos a pele dele por fora, pra ele não perder a consciência ou a sensibilidade. 180 executivos das quatro cidades o espancaram, mas um deles se recusou a bater e me pediu o direito de falar, que concedi.

- Socos e chutes não bastam. Neuralizem ele! - o homem gritou com os olhos arregalados
A plateia gritou como um ser só. Levantei o punho e criei o silêncio.

- Pra esse verme eu tenho algo pior do que a neuralização. Produzir demência nele é um ato de misericórdia, porque em um minuto ele já não teria nenhuma consciência. Vejam esse capacete na cabeça dele! É o Mind Flayer... - falei com orgulho

Todos começaram a pesquisar, mas não encontraram nada correspondente à peça de tecnologia ali apresentada, que era exclusiva da família Peçanha, cortesia do meu pai, que nunca desconfiou que eu tive acesso à arma.

- Esse nome fui eu quem dei, então não tentem encontrá-lo na nuvem, porque não conseguirão. É tecnologia exclusiva nossa. Por um sistema de deslocação espaço-temporal, campos magnéticos induzem a atividade cerebral em áreas do cérebro envolvidas nas sensações de dor e medo, provocando as duas sensações rapidamente e sem a necessidade de incisão no tecido cerebral. Mas isso não é a melhor parte. Esse capacete aumenta dramaticamente a atividade imaginativa do alvo. Em suma, ele produz alucinações que, comprovadamente, estão diretamente associadas à dor e medo e que são vividas o bastante pra que a pessoa siga sentindo as duas coisas como fruto de sua própria mente mesmo depois de desligado o aparelho. Então o aparelho torna a ampliar a dor e o medo por ressonância, que se soma à dor causada pela alucinação. Isso forma ciclos em que a dor e o medo vão aumentando. O aparelho ainda está associado à cadeira, que é na verdade uma antiga maca com dispositivos pra controle de pressão arterial, impedindo que o alvo morra por enfarte ou acidente cardiovascular. Essa ferramenta, literalmente, mata o alvo quebrando seu espírito. Não estou sugerindo nada sobrenatural, mas apenas usando uma forma econômica de descrever fatos: com o organismo intacto, o alvo simplesmente morre sem que se possa encontrar nada em seu corpo que justifique sua morte. Uma morte, literalmente, psicológica. E é o que tenho a oferecer a esse cão imundo.

Raime fechou os olhos e a plateia parecia não piscar. Eu tinha todos exatamente como queria. Uma tela do acima de mim mostrava os sinais vitais dele. Liguei o aparelho e Raime começou a gritar um segundo depois. Seus berros se faziam mais altos pelo silêncio no auditório.

- Não, Pai. Eu to queimando, para! - Raime gritava, já fora de si.

Suas cordas vocais começaram a ceder, mas ele não parou de gritar pelos 15 minutos que o processo durou. Por causa da aparência aterrorizada de algumas pessoas da plateia, decidi desligar o aparelho e soltá-lo da cadeira. Ele caiu da cadeira e ficou se contorcendo e rolando no chão por mais uns 10 minutos até que cedeu e morreu. Depois de um minuto, me voltei à plateia.

- Alguém tem alguma sugestão sobre o que fazer com o corpo?

O executio de Marketing de Curutiba 1, que ficou ali mesmo no palco comigo e havia sugerido a neuralização, se pronunciou.

- Devemos exibir o corpo dele em público pra deixar nossos inimigos saberem que estão desmascarados e que vamos atrás de cada um daqueles miseráveis!

A plateia gritou e tomei a mão esquerda do executivo e a ergui.

- É unanimidade! Reunião encerrada. Se preparem pra guerra!

- Caralho, como você arrumou isso? Liga? Eu não vi isso no catálogo deles! - isabela falou depois que todos saíram.
- Não, isso é relíquia de família. Walter puxou uma jogada política e forçou meu pai a produzir uma arma com base nas pesquisas do meu pai. Ele produziu essa arma, disse que nunca a fez e deixou guardada. Eu mesmo tomei a liberdade de testar e monitorar o efeito dela, que era um protótipo conceitual. A tecnologia por trás dela é coisa que já existe a mais de 100 anos, mas a forma como as ondas são lançadas, os ângulos, o tempo em que se alternam, tornam o negócio brilhante. Eu não sabia que meu pai tinha tanto talento pro Terror. Ele rapidamente saiu da liga depois desse projeto, Agora vaga por aí, provavelmente se lamentando e se culpando por todas as mazelas do mundo em busca de um passado que nunca retornará. Mas ele deixou um legado...
- Mas não seria conveniente manter essa arma escondida?
- Nunca. Perdi boa parte dos meus menores de idade e agora o percentual de membros que não foram endoutrinados desde os 4 anos de idade aumentou consideravelmente. A lealdade desses membros é mais condicionada pelo medo do que pela fé e Raime poderia dar ideias a outros. O relatório mostra comunicações que Raime fez, mas também mostra como ele nos sabotou. Eles precisam saber que nossas cidades têm fraquezas, mas que se me trairem, vão sofrer o que Raime sofreu.
- Porque dar esse poder a eles?
- Eu não dei poder nenhum, Isa. Pelo que Raime fez e pelo que eles sabem sobre nossas defesas, nós deveríamos ter sido aniquilados ontem a noite. Quando estudarem o relatório e perceberem que não deveríamos ter sobrevivido, entenderão porque é uma má ideia me trair.

Isabela ficou em silêncio por um tempo e vestiu seu casaco.

- Que isso, sério que você já vai embora? - protestei
- Sem sexo dessa vez. Mas saiba disso. Minhas 5 cidades estão à sua disposição e essa guerra também é minha.
- Que isso, isa! Você vai perder muito recurso assim!
- Deixa eu me preocupar com os meus recursos. Você sempre esteve presente pra mim. Mesmo em ausência, se certificava de que eu estava bem. É uma questão de orgulho.

Ela beijou meu pescoço e foi embora. Fiquei olhando pro corpo de Raime. Eu nunca deveria ter dado a ele tanto poder. Quanto do antigo Fred morreu junto com esse cara? No fim do dia, sua morte me fez triste. Agora os momentos que vivi com ele e Liana estavam entregues ao esquecimento, porque eu seguiria distorcendo as lembranças sem ter ninguém que me corrigisse. A morte dele acabou sendo também a morte de parte de mim.

8 - Recordações da casa dos monstros

Flyn Pinkman - 2075

- Flyn, você tem visita! - o guarda anunciou pela porta da cela
- Diz pra ele que só falo com ele quando ele me tirar daqui. - Flyn respondeu
- É uma mulher te procurando. - guarda respondeu meio confuso
- Você é novo aqui? Diz pra ela que falo com ela quando ele me tirar daqui. E que já estou ficando impaciente.

O guarda não falou mais nada e saiu. Eram todos instruídos a não falar comigo desde o incidente em que convenci um guarda a abrir minha cela e o matei a mordidas. Fui o único Indulger efetivamente expulso do grupo por suas ações. Era brutal demais, intenso demais. Pelo menos essa foi a explicação que me forneceram.
A cela tocava a música erudita que sempre amei e a luz podia ser controlada, mas fora isso era só eu e minha mente. Era um presídio de segurança máxima com poucas pessoas trabalhando. A robótica só não substituiu tudo nas prisões por causa de um filme sobre a fuga em massa de criminosos causada por hackers de uma organização criminosa. Mas a comida era sempre a mesma e o cheiro também. Lembrete da artificialidade que o mundo tinha se tornado. Eu sonhava com a Ópera e com orquestras que nunca poderiam ser mimicados por caixas de som. Um dia jurei que nada me faria perder o fôlego e passei por torturas suficientes pra chegar a acreditar nessas próprias palavras, mas aí descobri a prisão e mudei de ideia. Perder a liberdade num mundo em que você pode trocar de continentes em minutos ou até mesmo pegar uma nave pra lua ou pra marte é como uma ferida pequena, mas inflamada. Ela vai piorando, vai te consumindo. Nem mesmo o mais forte dos homens resiste dentro de uma prisão: não é natural, ele precisa quebrar suas correntes e fugir dali. “Humanos são animais selvagens”, falei sozinho, “Não suportam coleiras e jaulas como cães”. E mesmo se animais selvagens se acostumam com suas jaulas, eu nunca se acostumaria com a minha. Aquele lugar era claustrofóbico e a cada dia eu sentia mais medo. Quanto mais o medo tomava meu coração, maior se tornava sua raiva. Ainda mais: quanto mais apertavam a camisa de força e quanto mais mm drogavam, maior se tornava seu ódio. Depois de todos os anos de existência, a psiquiatria ainda não tinha encontrado meios de “curar” monstros, então retornaram ao paradigma de prendê-los e fazer todo tipo de experimento. Que meu pai tenha permitido que eu ficasse num lugar daqueles me revoltava ainda mais.
Apesar de que eu já tinha perdido a noção do tempo e até da realidade, aquele dia de visitas era meu único alívio. Eu saia da cela assim uma vez por mês e via os outros internos, que costumavam dar shows e tentar homicídios de tempo em tempo. Ficavam, em sua maioria, presos em camisas de força, mas podiam andar por um pátio e até entrar em uma realidade virtual limitada quando bem-comportados. Os meus benefícios eram dados ao acaso como era a minha violência: eu quase sempre me comportava bem, como se espera de um doutor abastado, mas de tempos em tempos apresentava comportamento violento premeditado e sem aviso. Todos os meus ataques resultavam em morte, então a administração do “asylum” não sabia muito bem como lidar comigo. Afinal, minh última vítima foi morta enquanto eu usava a camisa de forças, de maneira que a única forma de me impedir de matar era me isolando do mundo por completo. Mas isso era uma prática ilegal, então cada vez tomavam uma decisão diferente. A ideia, segundo consta, era impedir ele de usar a constância de uma rotina pra premeditar mais um crime. Eles não sabiam como suas estratégias eram óbvias pra ele e nem interpretavam meus comentários.

- Ah, então dessa vez eu tenho minhas mãos? Senhores, senhores! Por acaso vocês realmente não sabem o que eu sou? Lobos não podem ser adestrados!!
- A frase de efeito de hoje foi fraca, em, Flyn? - comentou o diretor pelo alto-falante – a do mês passado eu até publiquei na nuvem!
- Ah, diretor, que gentileza sua se juntar a mim! Como vai sua esposa? Confio que o caroço no seio esquerdo dela já foi removido?
- Ora, precisamos mesmo começar o dia assim? Bem, é uma pena! Samuel...

Um guarda veio pelo corredor com um cassetete e me acertou inúmeras vezes na cabeça e no corpo, mas eu ria enquanto me contorcia pelo chão.

- Confio que você vai se comportar agora? - disse o diretor
- Sim, claro. Sem problemas – respondi sorrindo com gosto de sangue na boca

O guarda me guiou com empurrões pelo corredor e prisioneiros gritavam meu nome, ainda presos em suas celas. Se eu era o único solto, provavelmente seria o único no pátio. Então essa mulher que me procurava realmente fazia questão de me ver. Quem sabe ela não seria mais uma das pessoas obcecadas que poderia sair perturbada dali, rendendo algumas risadas?

- Essa aí transou o mês inteiro com o diretor por essa visita. Nem tem como você mandá-la embora – o guarda comentou
- Então ele finalmente se divorciou da esposa? Mas tudo o que eu precisava era deixar de ser preguiçoso e ela iria gozar!
- Está casado ainda, pelo que sei.
- Pelo seu tom e pelo excesso de informação, ela também transou contigo, não foi?
- Ah sim. Transou. E cara, como transou. Você quando transa com uma mulher que não é artificial acaba mudando de perspectiva sobre o que é ter prazer. Definitivamente ela sabe o que faz!
- E ela pediu pra você dizer isso?
- Sim, pediu.
- Bem, tenho que reconhecer que ela se esforçou. O diretor é um sujeitinho bem repulsivo.
- E ela é uma obra de arte, cara, puta que o pariu. Parece até que é indulger!
- haha! Você por acaso já conheceu algum indulger?
- Só você mesmo. O psicopata renegado deles.
- Bem, cadê a vadia então?
- Ta no pátio com uma mesa e duas cadeiras. Cuidado com o que falar que ela tá com um gravador.
- Ah, uma repórter! Magnífico, vou emputecer meu pai hoje! É um belo dia!

O homem deu uma risada e me deixou no pátio, ainda vazio e escuro. Eu não podia nem mesmo saber se era dia ou noite naquela cela. Ver o céu escuro me causou raiva, mas a mulher acabou mudando minha perspectiva. Sim, era uma mulher formidável, linda. E você podia perceber pelas pequenas imperfeições que era a “versão original”. Mas o que chamou a atenção mesmo foram aqueles peitos. O tamanho, o formato, o decote. Sempre fui era muito exigente nesse quesito. Lembrou da música Rex tremendae, do Jenkins: e com ela os descreveu! E ela percebeu a apreciação.

- Sim, são naturais – ela falou começando o diálogo – te mostro se você me deixar contente
- Bem, o indulgers me ensinaram uma coisa ou outra sobre deixar pessoas contentes. O que você quer?
- Informação...
- ah, sim, todo mundo quer isso hoje em dia! Bem, por onde começo? Primeiro meu pai me deixou em uma jaula com os outros chimpanzés, depois me torturou com choques elétricos...
- Não sou psiquiatra nem nada, cara. Eu quero informação relevante, não palhaçada.
- Bem direta, então? Pensei que faria mais rodeio com toda essa expressão sedutora.
- Não espero te seduzir. Eu sei com quem estou lidando!
- Ah, sim, sim! Mas dessa forma você vai acabar me seduzindo, senhorita? Sabe como adoro prostitutas?
- bem, em tese você já viveu como se fosse um, não foi?
- Tolices, tolices! De certo que você não pensa que indulgers são prostitutos...!
- Eu estava falando de você, não deles. Você não é nem nunca foi um deles, segundo declarações espalhada por aí.
- Cães filhos da puta! Querem agora negar minhas conquistas do passado!

A raiva voltou a tomar conta de mim. Depois de tudo o que eu fiz por essa civilização, por esse mundo, fui abandonado num cubículo pra apodrecer por tempo indeterminado até um lacaio da indústria da saúde mental decidir que conseguiu me curar. E agora até os indulgers, que me anunciaram como um ex-membro, negavam que eu havia sido um deles. Provavelmente com argumentos do tipo: “se fosse um de nós, nunca teria feito isso ou aquilo”. “Filhos da puta vão pagar por isso!” pensei.

- Te irritei?
- Você me condenou a essa vida? A esse maldito lugar!?
- Ah, agora sim! Bem vindo, Flyn! Estive esperando por esse momento por um bom tempo!
- E agora está no seu climáx. O que você quer de mim, rameira?
- Como eu disse, quero informação. Que porra foi aquela em New York?
- Minha cela não tem vista pra porra de uma cidade que fica a centenas de quilômetros.
- Foi um vulto, algo se movendo em velocidade supersônica muito elevada que causou severos estragos na cidade e resultou na morte de muitas pessoas.
- Ah, então finalmente funcionou?! Nunca pensei que alguém conseguiria vestir a porra do traje. Sabe, parece que pra entrar ali você precisa ser bem instável. Alguma coisa gira e se contorce dentro de você de um jeito que os caras não suportam.
- Sim, sim, as fotografias parecem indicar que se tratava de um traje. O que você sabe dele?
- Eu sei que você devia parar de falar nele se tem amor à vida. Seria uma pena que peitos tão naturalmente perfeitos fossem arrancados de você!
- Eu luto pelo que acredito, Flyn, e morro se for necessário.
- Palavras ousadas. Mas quando começam a remover seus órgãos internos sem deixar você desmaiar as coisas mudam de perspectiva!
- E esse traje faz isso?
- Ah não, impossível. Ele te torna pó, mesmo. É a arma mais perigosa que esse mundo já viu.
- E você já pilotou essa máquina?
- Sim e não.
- Como assim?
- Eu pilotei um protótipo que basicamente arrancou meu braço esquerdo por não suportar a pressão da velocidade. Mas sim, eu já entrei em hipertempo e, como pode ver, ganhei um braço novinho antes de ser internado aqui pra deixar ele quase sempre amarrado em camisa de força.
- Entendo que você é doutor em física teórica. Pode me explicar o que é o hipertempo?
- Em termos que uma jornalista entenderia? Complicado!
- Entendo mais do que você imagina!
- Bem, vou desenhar pra você, mas precisa me fazer uma promessa.
- O que quer, ver meus peitos?
- Não seja ridícula, mulher. Eu quero que você propague essa informação pelo mundo inteiro. E que responsabilize o meu pai.
- Um pedido perigoso. Que eu realizaria de qualquer maneira!
- Ah, então você não tem amor à vida mesmo! Mataram todo mundo ou algo assim?
- Não sei. Sou orfã. Provavelmente meus pais eram viciados.
- Nossa, que triste! Eu pegaria um lenço pra você se eu me importasse! Então, você precisa incluir e todas as suas publicações a seguinte frase: “K 13, agora você precisa de mim”
- Fechado. Como funciona o traje?
- Ele aproveita a propriedade do marsídio de suportar pressão temporal pra basicamente colocar um espaço entre duas camadas desse material em um estado em que o tempo passa mais devagar. Em termos simples, tudo o que o traje faz acontece milhares de vezes mais rápido pra você e tudo o que você faz acontece milhares de vezes mais pra quem está no traje. Você basicamente muda a própria fábrica da realidade dentro de um ambiente controlado e torna quem o veste virtualmente indestrutível, já que arma alguma consegue acertá-lo. É mais rápido do que qualquer jato super-sônico. Seja quem for que controla esse traje, é atualmente o dono do mundo.
- Não mesmo! Quando isso cair na mídia o seu pai já era!
- hahahaha! Que mídia, moça? Você realmente não sabe com quem está lidando, né? Acha tetas e buceta vão te salvar? Você já está morta.
- Morro mas salvo vidas, seu psicopata de merda!

O computador detectou a mudança no tom de voz dela e soou o alarme pro diretor. Supostamente as pessoas com doença mental do tipo que eu tinha têm comportamentos que causam perturbações em terceiros. Ou talvez o diretor tenha percebido a merda que fez e só queria preservar a própria vida. Fosse como fosse, rapidamente ela tinha ido embora e eu fui deixado ali no pátio. O efeito das medicações causou mais um daqueles brancos na minha memória e, quando me dei conta, o sol já brilhava no céu. Talvez alguém tenha me dado uma dose sem que eu percebesse. Mas de certo que não foi um sonho, porque despertei no pátio jogado no chão exatamente ao lado da cadeira onde estava sentado. Toda vez que isso acontecia eu se enchia de mais ódio. Contra o destino, contra a natureza, contra Deus. Contra qualquer coisa abstrata o suficiente pra ser incapaz de se justificar...
Eu não podia culpar os médicos, já que eu tinha esses apagões desde pequeno, então o problema foi que eu já nasci defeituoso e nenhuma inteligência foi capaz de me salvar. A tecnologia do Peçanha fez apenas reduzir alguns sintomas, mas foi como se, em resposta, meu cérebro tivesse amplificado meus problemas. Vivendo naquela casa de monstros, sem noção de tempo ou espaço, eu ia ficando cada vez mais insano. A verdade é que ninguém procurava mais a cura pros problemas dos “loucos violentos”. A busca ali era de duas faces: a primeira, e mais óbvia, era a busca por informações extravagantes com o objetivo de escrever livros e ganhar dinheiro; a segunda era pra fazer testes e aumentar a capacidade de identificar pessoas como nós que ainda estão soltas. Basicamente, é como se fossemos animais selvagens: nos capturam, estudam nossos instintos e usam esse conhecimento pra conseguir capturar outros. E aí preparam apresentações audio-visuais em seus livrinhos de horrores e vendem o espetáculo! Eramos animais enjaulados num circo e nosso ódio só fazia aumentar, por mais que o nosso crescente silêncio parecesse indicar o contrário.
O período fora da jaula acolchoada estava próximo, então decidi buscar na nuvem se algo do que eu falei foi publicado – se, aliás, aquela entrevista sequer aconteceu! Acessei o computador no centro da sala e busquei notícias sobre a jornalista ordenando por data. Como eu não sabia o nome dela, procurei pelo meu próprio nome e encontrei apenas uma página. Nela, encontrei uma foto da mulher e seu nome, mas não precisei deles. A notícia era definitiva: a pobre jovem morreu de um ataque no coração. O autor especulava sobre o fato de que ela queria ter contato com um psicopata famoso: teriam seus admiradores matado ela com algum veneno?
“quantos especuladores que desconfiaram do meu pai chegaram a surgir? Quanta gente ele matou?” pensei comigo mesmo

- Está se sacudindo aí no computador porque? Se apaixonou pela jornalista? - me perguntou Ernst, o diretor da prisão
- Eu to me sacudindo porque eu sou um doente mental, não soube?
- Sim, mas o que passa na sua cabeça?
- Uma pergunta.
- E qual seria essa pergunta?
- Será que meu pai recebeu meu recado?
- foi o “k 13, agora você precisa de mim?”
- Exato.
- Sim, eu o entreguei pessoalmente.
- Então você que matou a mulher?
- Ela era... Uma complicação na minha vida pessoal. Além disso, se ela saísse daqui com a informação que você deu, eu estaria morto.
- Porra, você trabalha pro meu pai?
- Não, eu trabalho pra um amigo do seu pai.
- E ninguém vai te matar por você saber o que sabe?
- Parece que não. Eu sei o meu lugar, não tenho a pretensão de entrar em conflito com os grandes. Além disso, seu pai já fez a demonstração pública do traje e já há especulações bem precisas na mídia. O dano que eu poderia causar não seria grande e eu morreria em uma questão de minutos depois de publicar a notícia. Quero comer a buceta seca da minha mulher, sabe?
- Cara, sabe que eu sempre quis saber como é que você consegue se manter casado? Porra, você droga ela ou o que? Não é possível, vocês já estão a 20 anos juntos!
- Da mesma maneira que se segurava relacionamentos no passado. Medo.
- Hahahaha! Não me surpreende que você tenha sido escalado pra tomar conta de nós! Não é muito diferente da gente, né?
- Completamente diferente, caro Flyn. Daqui a 20 minutos eu vou estar em casa bebendo vinho, ouvindo Bach e recebendo um boquete de um robô com a aparência de uma adolescente asiática enquanto você vai estar preso numa cela acolchoada, amarrado numa camisa de força e sozinho.
- Bem, nem todo mundo tem a sua sorte, né? Mas diga: algum recado do meu pai
- Ah sim, sim. Veja aqui.

Era uma equação mostrando um cálculo de energia cinética molecular na situação hipótetica do hipertempo. Mostrava o que acontecia com moléculos a 13 ºK dentro do hiper-tempo, basicamente. Mostrava a razão pela qual o Marsídio era perfeito pro hiper-tempo e, mais ainda, tinha um recado pra mim. Que tudo ali naquele lugar queimaria. E 10.000 vezes mais rápido do que eu imaginava! Só pela empolgação de ler aquela equação eu já rompo ligamentos do peitoral e dos ombros, dando lugar à minha musculatura artificial novamente. Naquela noite eu destruiria o circo dos horrores! E todas as bestas seriam libertas!
O corredor do asylum até a minha sala era longo e a minha cela era a última. Enquanto eu andava, me senti como se fosse o próprio Jesus Cristo montado em seu burro e sendo recebido com toda honra e toda a glória. Os loucos me chamavam, eles perceberam que era a primeira vez que eu sorria dentro daquele inferno em 5 anos. Sabiam que eu tinha um plano. Mesmo com toda a importância daquele momento eu ainda não ouvia música nenhuma na minha mente. Se instaurou um silêncio sombrio e pacífico na minha mente e passavam imagens da destruição que eu iria causar, me dando calafrios.
Entrei na cela, as luzes se apagaram e eu ativei todos os meus músculos. A dos excruciante parecia ter se transformado em prazer. Eu nem precisava ampliar minha força muscular: ela não seria suficiente pra abrir minha cela e não seria necessária pra pilotar o traje. Mas de, alguma maneira, ativar aquela força dentro de mim era como liberar a besta adormecida. A luz forte bateu na minha janela 15 minutos depois e eu já sabia o que estava acontecendo: era a salvação!
Senti o cheiro de queimado enquanto o robô abria um buraco diretamente na parede da minha cela e quis derrubar aquela placa de titânio com as próprias mãos, mas me controlei imaginando que meu traje usual poderia ser derrubado no mar. Aliás, pra quem não sabe, essa prisão fica numa enorme e inóspita ilha no meio do oceano pacífico.
Quando a placa caiu, no entanto meu traje usual não estava ali. O que ele enviou foi o traje de hipertempo. Ele tinha a mesma aparência do primeiro protótipo que vesti, mas tinha modificações reforçando os braços. Ele colocou uma placa bem na cabeça do traje. “prove que preciso de você. Prove que é sangue do meu sangue”.
E eu simplesmente pulei pra dentro do traje. Saltei de costas, contra a possibilidade de despencar naquele abismo e vi o traje se fechando automaticamente em volta de mim. Ele estava pré-montado e os robôs começaram a selar as camadas mais externas enquanto o sistema operacional se iniciava e se coordenava com meu endocomputador. Eu não senti medo, mas adrenalina. Naquele momento eu finalmente entendi o que meu pai pretendia me internando. Ele não estava de fato me punindo por ser vergonhoso pra família. Há centenas de anos a nossa família carrega um legado de poder e morte e nunca nos envergonhamos disso. Ele só queria que eu parasse pra lembrar o que eu sou, o que eu sempre fui. Que eu nunca poderia ter sido indulger, que eu nunca aprenderia a amar. Em 5 anos preso nesse buraco eu tive ampla oportunidade pra lembrar desse fato crucial. De certo ele soube que eu estava matando pessoas desde o começo, mas me assistiu e pensou em como lidar com a situação. Ele projetou o futuro, decidiu que eu precisava me recuperar e que essa tortura era o que eu precisava. Naquele momento, eu mostraria pra ele que era poderoso, que era um verdadeiro Pinkman!

O traje se fechou a os robôs voaram pra longe imediatamente. O hipertempo se ativou e eu assisti de olhos abertos enquanto o tempo desacelerava, as cores mudaram, o mundo escurecia de medo do meu poder! Alguém deixou o cão sair e ele pretendia soltar toda a matilha! Uma lança de marsídio nano-afiada estava agregada nas costas do traje e não foi difícil romper o lacre de tungstênio pra soltá-la e começar a brincadeira. Liguei as hélices e fui voando e cortando todo o teto do prédio. Naquela noite, a razão e a ordem artificial da sociedade não estariam protegidos da tempestade. Voltei pra minha cela com todo o cuidado pra não destruir o lugar todo. Andei até a porta e a arrombei. Quantas vezes eu não sonhei com ter aquele poder! O guarda estava parado diante da porta, assombrado com o que via. Ele provavelmente pensava que estava enlouquecendo e que aquilo não era real. O novo sistema operacional conseguia falar em hiper-tempo.

- Senhor Pinkman, temos agora a funcionalidade do pulso hiper-sônico. Deseja testá-la?
- Sim, prossiga.
- para ativá-lo, basta o senhor gritar. Seu grito será projetado adiante.

E como eu queria comemorar! Meu pai de fato queria ver minha fúria liberta. Esse pulso já estava projetado em termos teóricos e era genial. Obre de um Pinkman, evidentemente! Que ele fosse ativado por grito, no entanto, era apenas um presente do meu pai. E eu fiz questão de lançar o grito mais gutural de que eu era capaz.

- Giiiaaarrgh!!

Pude ver a vibração do som se propagando lentamente, mesmo que não pudesse ouvir mais do que um leve zumbido grave. A parede se rompeu a porta voou na direção do guarda, o esmagando contra a porta da frente. A loucura finalmente teve voz! Era hora do mundo testemunhas aquilo!
Removi minha porta e a outra, abrindo a cela do louco que ficava de frente pra mim. E andei pelo meu corredor do triunfo, libertando todos aqueles que viviam sob o impetuoso julgo da razão. Minha adrenalina fez com que eu rompesse algumas portas rápido demais, provocando pequenos incêndios que tive que rapidamente apagar. Depois de algum tempo, alguns já tinham entendido que a liberdade estava vindo e sorriam. Pareciam parados, vivendo na dimensão normal de tempo e espaço, mas sabiam que eu estava lá e me agradeceram com seus olhos. Rompi todas as celas, quebrei todas as portas e a minha presença foi como um grande terremoto. Naquele momento, eu era Deus libertando Paulos! Matei todos os funcionários do lugar, destrui todos os robôs. Deixei apenas o diretor viver, já que ele poderia se tornar um homem leal ao meu pai por esse gesto. Foi a minha forma de agradecer por aquele grandioso presente.
Saí da prisão com outro grito pra abrir as enormes portas de madeira. Ainda se podia ver pássaros fugindo em pânico. Qual não foi minha surpresa quando vi aquele enorme navio no cais. Tripulado apenas por robôs! Gritei pro céu e vi as próprias nuvens saírem do caminha da minha fúria.
Pra orientar os que ainda estariam drogados, enfiei minha lança naquele chão rochoso e desenhei uma trilha até o cair. Lá, escrevi no chão. “Fucking freedom!”


E voei, e girei, deixando minha trilha de gotas de chuva evaporadas. Naquele momento, a música voltou pro meu coração. “the world's on fire!” Abri meus braços, fechei meus olhos. Finalmente meu momento chegou.