Luíza Gomes Pereira Peçanha, 2050
Eu nunca fui estúpida ao
ponto de pensar que guerras são coisa bonita ou que os participantes
de um dos lados são heróis. Mas não imaginava que a cobertura da
mídia estivesse sendo tão parcial. Mesmo com a sociedade se
organizando em rede, mesmo com a descentralização da produção de
discursos, ninguém sabia dos massacres da venezuela? Quando penso no
que tem sido dito a respeito dos “inimigos da democracia” e
lembro dos relatórios que recebi, meu estômago gira. No caminho pra
casa, o aparelhinho do Guto encontrou Emanuel em algum canto de
Bangladesh. Meu filho tão longe de mim me deixa com um aperto no
peito que nada parece aliviar. Mas é melhor que ele esteja lá, onde
não está acontecendo nenhuma guerra. Essa nova tribo dele pode ser
estranha, mas pelo menos não é violenta. Queria que fosse mais
fácil lidar com ele. Guto, que um dia foi Constantino, acabou
cedendo e aceitando o nome que ele tem em casa, mas Emanuel sempre me
pareceu selvagem demais pra aceitar meus conselhos. Era muita coisa
de uma vez só!
Quando cheguei no meu
apartamento, decidi tomar meu vinho na frente da lareira. Tem algo a
respeito da lareira high-tech, do vinho barato e do wallie dançando
que me ajuda a por as ideias no lugar. Mas eu e a tecnologia não nos
damos muito bem. Acho que é pessoal comigo, pois ela só falha
quando eu mais preciso. As músicas da lista do Wallie mudaram de
ordem novamente e ele parou de tropeçar nos passos. Mas eu gosto
quando ele tropeça, especialmente quando ele pede desculpa com
aqueles gestos desajeitados.
Alguns segundos depois
ele estava na sala, com aquele sorriso irônico que aprendi a amar.
Algum dia você vai
ter que se acostumar com o progresso, Luíza. Esse robô só foi
atualizado.
Eu não pedi pra ele
ser atualizado, guto. Tira essas atualizações dele pra mim, por
favor!
Que houve, Luíza?
Achou o Emanuel?
Ah, achei sim. Ele
foi pra bangladesh dessa vez, sabe-se lá o que anda fazendo.
Ele está morando
num prostíbulo, pelo que meu hacker pôde encontrar. Parece ser
algum tipo de rito de passagem desse grupo em que ele entrou.
Que coisa horrível!
Você precisa falar com ele, guto. Ele precisa voltar a estudar. Ele
era tão bom com nanomateriais...!
Ele ainda estuda,
pelo que meu hacker me diz. Deixa ele, deve ser só uma fase. Ele
está mais seguro lá do que aqui, com essa guerra.
Conserta o wallie,
por favor?
Tá bem, lulu.
Peraí. Deathcreed2020, está disponível?
Está falando com
quem?
Um amigo que vai
resolver esse problema de vez.
É da liga?
Não, ele é um...
digamos... profissional independente.
Ele olhou pra cima,
operando os óculos tecnológicos dele. Sinceramente não sei como
ele consegue andar por aí com imagens aparecendo pra todo lado na
frente das coisas. Aquilo é insuportável!Wallie parou de dançar.
Faça da matriz dele
a minha máquina pessoal, reverta o kernel pra versão beta e não
permita atualizações forçadas.
Os robôs podem ser
atualizados à força? Contra a vontade deles?
Robôs não têm
vontade, lulu. Eles são atualizados contra a Sua vontade, sem que
você solicite.
Mas que absurdo!
Porque isso?
Bem, porque são
amadores e colocam produtos feitos pela metade no mercado. Sabe como
é, investidores querem o dinheiro de volta e não há tempo pra se
fazer coisas decentes nos dias de hoje.
Bem, nem todo mundo
tem recursos ilimitados da liga pra ficar brincando de ciência e
tecnologia, né?
Ele ficou de pé olhando
pra mim, com aquela mesma casa de confuso de sempre, tentando
entender o que eu estava fazendo. Consigo até imaginar o que ele
estava pensando: que explicou a situação do Emanuel e consertou o
Wallie, então eu deveria estar tranquila.
Ele falou com o mesmo
sorriso que tinha quando éramos jovens. Em alguns momentos eu tinha
a impressão de que pouco dele tinha mudado nesse sentido. Mesmo
depois de velhos ele ainda fazia as mesmas bobeiras e, estranhamente,
eu ainda gostava de tudo aquilo. Nunca houve um dia em que eu
realmente cansei daquilo. Talvez em certas épocas do mês eu
gostasse menos, mas no geral eu gostava do fato de que ele sempre
conseguia quebrar minhas defesas. Ele foi o único que conseguia isso
por um longo tempo.
Eu recebi notícias
que me preocuparam, Guto. Eles cometeram genocídio numa aldeia ali
na venezuela sob o pretexto de que havia guerrilheiros escondidos
ali. Eu estou me sentindo muito estranha, sabe? Eu não sei...
Você quer fazer
algo a respeito? Eu posso conseguir mais informações pra você. O
Creed tem algoritmos que podem interceptar e filtrar mensagens do
local e gerar relatórios pra você.
E eu poderia
apresentar isso a um juiz?
Bem... Não. É uma
forma ilegal de aquisição de informação. Seria considerado
traição.
Traição! Filhos de
uma puta! Que merda! Como pode ser traição você querer salvar a
vida de inocentes? Como, guto?! Me diz!
Não aguentei e comecei a
chorar. Depois de todos aqueles anos tentando educar, tentando trazer
algo de positivo pro mundo, cheguei ao ponto em que me sentia
cansada. Apenas queria acreditar que fiz a diferença, queria me
manter ativa. Eu não ia me conformar, eu tinha que fazer alguma
coisa.
E se fizessemos algo
do tipo wikileaks? Lembra quando fizeram isso lá pro começo do
século?
Esses relatórios
não podem ser usados assim, Lu. Eles poderiam facilmente ter sido
forjados e serão tratados como mentira pela mídia. Hoje em dia a
evidência mesmo você tem que obter por holograma, que aí eles não
têm como negar. Dá pra você reunir fotografias de satélite do
local de produção do holograma e fazer a verificação dele.
Sim, mas essas
câmeras enormes são coisas de cientista, não dá pra usar numa
tribo.
Emanuel começou a
pesquisar nos óculos dele, andando de um lado pro outro enquanto
wallie se esforçava pra não esbarrar nele enquanto dançava a
macarena. Achei que estava muito estranho ele dançar aquelas músicas
agitadas, então pus a trilha de smooth jazz, mas ele não tinha
muitos passos. Na realidade ele só fazia os mesmos movimentos em
todas as músicas, mas era justamente isso que eu queria. Aqueles
mesmos movimentos familiares me ajudariam a sair dali, a entrar no
meu mundo particular onde eu poderia procurar uma solução pra isso
tudo. Mas antes eu teria que esperar o Guto terminar de procurar as
soluções tecnológicas dele pra me acalmar. Ele certamente
detestaria a ideia que eu estava começando a tramar. Euzinha, aos
plenos 63 anos de idade, mas parecendo ter 40, é claro, iria pro
famigerado monte Roraima, onde a Mônica adorava ir. E fotografaria
todos os crimes deles e mandaria tudo pra rede da universidade. Era
só encontrar uma forma de contar isso pro Guto sem ele surtar e
querer mandar um exército de robôs atrás de mim e pronto. Isso
poderia inspirar pessoas, quem sabe mais gente começaria a registrar
a verdade sobre essa “guerra contra a tirania”? Minha esperança
não podia morrer! Não sem eu morrer junto com ela.
Luíza, acho que tem
algo que vai te interessar...
Eu vou pra lá e
filmar tudo!
O quê? Mas lu, você
pode mandar robôs. Temos uns bem camuflados, é mais seguro e mais
eficiente.
Não, tem que ser eu
lá. Robôs não inspiram pessoas. São o recurso dos covardes.
Você sabe que eu
uso robôs extensivamente nas minhas pesquisas, certo?
Ah, mas é
diferente, guto. Você usas eles pra trabalhar em ambiente fechado,
não pra sair por aí vendo o mundo por você.
Não é bem assim...
Olha, não vou
mandar robô, tá bom? Para de querer questionar minhas decisões,
constantino!
Opa! Se me chamou de
constantino é porque estou com problemas.
Ele acabou conseguindo
arrancar um sorriso meu. Justo no momento em que eu estava mais forte
e ele se convenceria a me deixar ir. Com aquele sorriso, minha moral
acabou. Antes de eu conseguir me recompor e recuperar minha postura,
ele falou.
Pode me ouvir só um
pouquinho? Só ouve o que eu tenho pra dizer, Luíza.
Tá, mas eu vou...
Nós temos um
mecanismo de captura holográfica fracionada pronto pra uso.
Altamente experimental, mas muito poderoso.
Fala a minha língua,
guto! Para de graça!
É como uma câmera
de hologramas, só que ela é dividida em pequenos sensores que se
comunicam com um computador só. Daí elas podem captar um ambiente
de vários ângulos e as imagens delas se sobrepõem em vários
pontos e geram hologramas super detalhados.
Nós quem? A liga?
Sim, uns rapazes
terminaram esse projeto recentemente. Chamei eles pra me
apresentarem o aparelho aqui.
E eles vão
simplesmente trazer tudo pra você? Isso nem é a sua área!
Ele sorriu com aquele
sorriso que eu detesto. Aquele que ele diz que eu sou idiota, mesmo
que ele tenha negado um milhão de vezes que ele pensa o sente isso.
É isso que o sorriso diz: que eu sou uma criança ingênua e incapaz
de entender as coisas diante de mim.
Qual é a graça?
Uou, calma, lu. Eles
vão vir por causa daquele texto que eu escrevi, lembra? Aquele
manifesto? Então, eles se inspiraram com aquilo, por incrível que
pareça.
Ah sim, claro que eu
que revisei pra você, né? Mas então, me dá o aparelho que eu
coloco lá na tribo e pego eles no ato, transmissão ao vivo. Vou
pegar eles no ato.
Ah, mas não tem
como, lu. Só eles sabem ativar o sistema de hologramas fracionados.
Então porque você
chamou eles pra virem aqui, se não posso usar a câmera deles?
Não é uma câmera.
Ah, tanto faz! Você
só tá tentando me acalmar pra ver se eu fico em casa. Mas isso não
vai acontecer. Dessa vez serei eu a ir na montanha. Se fosse a
Mônica você não estaria reagindo assim
Foi só eu mencionar o
nome dela que o sorriso dele desapareceu. Até hoje eu não sei o que
ele viu nela. Não faço ideia de como ela conseguiu convencer aquele
sedentário de escalar aquela montanha enorme. Ela é uma heroína do
próprio mundo interno, não tem nenhum projeto social nem nada.
Eu não sabia o que
fazer. Não devia ter dito isso em voz alta. Afinal, fui eu que
apareci com aquele discurso de superar valores sociais ultrapassados
e mandei ele ir pra montanha com ela, onde eles ficaram “íntimos”
pela primeira vez. E eu encorajei ele, mas era pra ser um
experimento. Foi maluquice minha, mas eu queria saber se eu sentiria
ciúmes, se ele continuaria me amando como antes. Acho que eu só
esperava que ele percebesse que não deseja ninguém além de mim e
que sou a única mulher na vida dele. Isso não aconteceu, mas tudo
ficou por isso mesmo, porque ela foi embora do país mais uma vez.
Como ele não mudou comigo, acabei aceitando a situação. Mas acho
que se não tivéssemos nossos filhos, eu não teria me forçado a
“entender” isso.
Olha, eu não falo
com ela já há 5 anos... Até quando você vai ficar assim? - ele
perguntou num tom triste
Olha, guto, eu tenho
ciúmes dela, é só isso. Ela é toda livre e faz o que quer.
Parece que não tem mania nenhuma e superou vários problemas
difíceis na vida. Ela parece uma heroína, sabe? Eu fico insegura,
eu acho que se ela ficasse ao invés de sempre ir embora você me
largaria pra ficar com ela...
Eu nunca largaria
você, Luíza. Você é minha esposa, a mãe dos meus filhos. Você
é o meu refúgio e meu chão, sabe? Eu só queria que você
acreditasse nisso.
Eu sei, querido, eu
acredito em você.
Abracei ele e não
consegui segurar o choro novamente. No meio de todo aquele caos ele
ainda conseguia me arrancar sorrisos e até lágrimas de alegria. Eu
amava aquele talento que ele tinha.
Vou com você, Lu.
Era isso que eu estava tentando dizer antes de você me interromper.
Eu e os rapazes vamos com você pro local e instalaremos o
equipamento todo ali. Eles também querem expor crimes de guerra e
estão por dentro dos boatos que rolam nas redes de hackers. Eu vou
com você e vamos ver o que está acontecendo.
Posso te sacanear só
um pouco?
Ha, bem... pode, né?
Agora eu também vou
dormir com você na montanha! Só falta eu visitar o tibet e ficar
uns anos no meio dos ratos na índia e ela não pode mais comigo!
Haha!
Ele riu, mas eu percebi a
dor que ele sentiu ouvindo isso. Acho que, apesar de ele ter feito
exatamente o que queria e de não se arrepender do que sente por ela,
ainda se sente culpado por causa da minha reação. Também, depois
de todos esses anos comigo, ele ter voltado pra casa quando eu estava
na TPM foi bola fora dele...
Só que nós vamos
lá procurando uma forma de acabar com a guerra, procurando uma
forma de salvar vidas. Não vamos lá pra ter experiências
espirituais transformadoras. Vamos lá pra ter experiências sociais
e tentar transformar o mundo!
Nossa, guto! Quem
ouve até pensa que você tem consciência social!
Pelo menos dessa vez o
sorriso dele foi genuíno, sem dor no fundo.
Eu não podia acreditar,
mas ele conseguiu me deixar completamente relaxada. Nos beijamos
feito dois adolescentes e Wallie começou a reclamar que estava com
bateria fraca. Desliguei ele com o pé mesmo, mas não interromper
aquele beijo. Ele pegou a minha mão e me levou pro quarto, como ele
sempre fazia, andando devagarinho do jeito que ensinei ele a fazer
anos atrás.
Sabe, falando sério,
eu gosto disso em você, lu. Quando estou com você, me sinto uma
pessoa melhor. Você se importa tanto, você sente tanto, que não
consigo deixar de sentir. Eu sinto com você, através de você.
Já te disse milhões
de vezes, guto. Você sente porque é sensível. Meu wallie, o
robozinho sentimental!
Responde uma coisa?
Fala, querido
Você me chama de
Wallie por causa do robô ou chama ele de wallie por minha causa?
Ah, nenhum dos dois.
Eu chamo você assim porque você é o wallie e eu sou a eva! Lembra
desse filme?
Ah, eu lembro. Velho
pra caramba, em?
Mas eu amo esses
filminhos! Naquele tempo as crianças ainda gostavam de coisinhas
inocentes assim! Depois a gente vê, eu tenho na TV ali no quarto
Nós finalmente chegamos
no quarto, com a porta se fechando sozinha e o ambiente já ficando
com a iluminação certa. Guto começou com essa mania de querer
colocar tecnologias experimentais dentro de casa a uns anos atrás e
quando nós chegávamos no quarto querendo sexo essa luz deveria
ficar assim. Só que no começo não funcionava direito, então já
aconteceu de noites apaixonadas se transformarem em comédia e guerra
de travesseiro. Pelo menos ele era cavalheiro e me deixava ganhar!
Só que agora o negócio
funcionava perfeitamente e as velinhas acenderam e a música começou
a tocar bem baixinho no fundo. Aquela bossa nova que ele sabe que eu
gosto.
Ele me girou e me abraçou
pelas costas. Beijando minha nuca, minha orelha, meu pescoço, minha
bochecha. As mãos dele pairavam, e as minhas apenas seguravam a
cabeça dele. Queria que ele continuasse, queria que ele terminasse
de me amolecer. Minha tensão se foi e esqueci de tudo o que
aconteceu naquele dia. Só queria Mon Robot, meu Wallie, ali, naquele
momento.
Deitamos na cama e
passamos algum tempo no mesmo beijo. Não sei bem quanto tempo,
porque perdi a noção, mas antes que eu me desse conta ele já tinha
tirado minha roupa toda. Ele parecia que era literalmente treinado
pra fazer só as coisas que eu gosto. Mas naquela noite seria eu a
fazer o que ele gosta. Segurei as duas mãos dele e juntei os dois
pulsos na minha mão esquerda. Pela diferença de tamanho, minha mão
mal podia conter os braços dele, mas ele não reagia. Só sorria,
olhando pra mim e tentando roubar beijos que eu não iria dar até a
hora certa. Ele gostava de fazer as coisas com calma, no momento
certo, e só eu sabia que momento é esse. Fiquei em cima dele e
tirei aqueles óculos estranhos que ele tem mania de usar. Sei que
ele gosta disso, porque sem os óculos ele não consegue ver nada que
não esteja próximo. Ele diz que adora que eu seja a única coisa no
mundo que ele pode ver. E é bom mesmo, porque eu sou linda!
Beijei o pescoço dele e
puxei aquele cabelo grisalho com força o bastante pra mover a cabeça
pra cima. Ele ria e se contorcia. Dava pra sentir a barriga dele se
contraindo involuntariamente, como se ele nunca tivesse sentido
aquilo antes. De certa forma eu invejava essa sensibilidade que ele
tinha
Neguei com um gesto com a
mão e ele tentou pegar meu dedo com a boca, mas não alcançou.
Parte do jogo era não falar nada com ele, porque responder era
deixar ele ter algum controle e no fundo o que ele gostava era de
estar totalmente à deriva, sob meu controle. Ele era meu escravinho
e faria tudo o que eu quisesse. Com o tempo eu aprendi a gostar
disso. Principalmente a parte em que ele perde o controle, me vira e
me olha com aquele olhar de desejo que ele tem. Como se nada mais no
mundo importasse além de mim e daquele momento.
Mas dessa vez, quando ele
me virou, não deixei ele tomar o controle. Não, dessa vez eu levei
a coisa pro próximo nível e simplesmente peguei a cabeça dele e
levei pelomeu corpo. Ele foi beijando meu peito, minha costela, minha
barriga. Sempre lembrando de beijar em todos os cantinhos que ele
sabe que eu gosto. Engraçado que percebi que ele sempre beija os
lugares na mesma ordem!
E quando ele chegou lá
embaixo, me surpreendeu! Por um momento eu saí daquele quarto e me
perdi em devaneios. Pensei que ele poderia ter aprendido isso com
ela, mas eles já não se veem há cinco anos e ele nunca tinha feito
aquilo. Ele não mentiria pra mim. Preferi acreditar que era apenas a
inspiração do momento e me entreguei. Não que eu possa dizer que
foi o melhor orgasmo de toda a minha vida, mas foi pelo menos o
melhor que já tive desse jeito. Arranquei vários fios de cabelo
dele no processo. Meu corpo amoleceu, e começou a tocar aquela
música que eu amo tanto Duda, da Julieta Venegas, versão clássica
de estúdio. E o mundo girou enquando ele voltava, beijando meu corpo
todo até chegar no meu pescoço e ir direto pra minha orelha
direita, que eu gostava mais do que a esquerda. A tela da TV começou
a exibir mensagens, e consegui reunir a concentração pra desligar a
tela.
Ativar proteção de
tela – disse em voz alta
Então é nisso que
você pensa quando estamos na cama, é? Tudo bem, eu sempre soube,
não se sinta culpada
Dei uma risada, mas ele
não me deu tempo de terminar. Antes que eu entendesse o que estava
acontecendo, ele já estava dentro de mim, e a contração no meu
ventre que era de risada passou a ser de prazer. Então o tempo
deixou de existir. Fomos de um lado a outro, de uma posição a
outra, do êxtase ao total relaxamento e de volta ao êxtase. Foi
como na nossa lua-de-mel, quando eramos um casal jovem e cheio de
paixão e de planos. E talvez fosse isso mesmo. Com essa viagem que
faríamos, tínhamos algo maior nos unindo além do amor e do
casamento. Unidos por um ideal, nos tornamos uma pessoa só. Talvez
seja esse o segredo do sexo bom!
O que foi isso,
Guto?!
Isso foi amor!
Ah, mas teve alguma
coisa a mais, que eu sei. Você estava louco!
Acho que foi aquela
cara que você fez. Cara de teimosa discutindo que iria pra
Venezuela de qualquer maneira. Eu sentia falta disso em você. Você
ficou madura demais com todo o trabalho, e alunos, e orientandos
comendo aqui. Tudo era trabalho, sei lá. Não que eu esteja
diferente, sabe? Mas sei lá, eu gostei.
Posso te sacanear? -
perguntei com aquela minha risada de quem vai falar bobagem que ele
conhece
Haha! Manda!
Se eu soubesse que
seria necessário uma guerra continental pra isso acontecer, já
tinha comedito alguns atentados!
Ele teve um ataque de
risos como costumava ter antigamente. Se contorceu tanto na cama que
acabei rindo junto com ele. E rimos até cansar, até acabarmos
abraçados e sussurrando coisas que nenhum dos dois ouvia com
clareza. Pegamos no sono, mas ele foi bem curto. Aparentemente,
passamos tanto tempo na cama que já era manhã, os rapazes já
tinham chegado do meio do continente africano. Era hora da nossa
viagem e tínhamos que sair.
Nossa, mas não tem
como adiar a viagem só um pouquinho, guto?
A viagem vai durar 7
horas, Lu. A gente dorme no avião
Como assim 7 horas?
Porque?
Nós vamos entrar
numa zona de guerra. Se formos rápido demais, seremos localizados
pelos radares. Esse avião é praticamente invisível na velocidade
em que viajaremos, então é mais seguro assim.
Praticamente? E se
eles nos avistarem?
Ah, não tem como.
Só a liga consegue detectar aviões feitos desse nanomaterial. E
ainda vamos estar cobertos de resíduos anti-chama e a blindagem é
boa. Estamos seguros pra chegar lá.
Entendi. Mas onde
nós vamos pousar?
Nós não vamos, lu.
Vamos ter que saltar de paraquedas
Você enlouqueceu,
por acaso? Esqueceu que eu tenho medo de alturas?
Claro que não,
lulu! Sua lululu!
Para de graça, eu
não vou pular, deixa de ser maluco!
Olha, eu vou aplicar
uma técnica em você que vai te deixar grogue e você vai perder o
medo. Se não funcionar você grita que nós voltamos e pousamos em
algum lugar. Tudo bem?
Você vai me drogar?
Não, o negócio não
precisa de drogas não. Fica tranquila que vai dar tudo certo.
Se tinha uma coisa que eu
detestava era quando o Guto aparecia com essas soluções
experimentais e ainda queria que eu fosse cobaia. Mas realmente não
teríamos como pousar sem passar por inspeção de militares. Acabei
torcendo pra essa maluquice dele dar certo e tirar meu medo de
altura.
Você sabe qual é a
tribo, onde temos que descer?
Peguei com o Creed
uma tribo que é provável alvo de ataque. Vamos instalar o sistema
e produzir um holograma que será imediatamente transmitido pra
nossa base e postado na nuvem em tempo real.
Então vão poder
assistir ao vivo?
Bem, se tiver alguém
naquela nuvem naquele instante, sim. Mas não fala pra ninguém, lu,
senão vai comprometer nossa operação. Depois que estiver tudo
gravado nós espalhamos esses dados pelo mundo. Até lá, precisamos
de sigilo.
Tudo bem, eu
entendo. Agora para de falar tanta coisa técnica que senão eu vou
dormir, mon robot.
Ele começou a juntar as
tralhas tecnológicas dele, e percebi que se eu não fizesse nada,
ele viajaria sem levar roupa direito e teria que pedir emprestado.
Anos e anos trabalhando com mentes brilhantes em projetos inovadores
e ele ainda não aprendeu a fazer a própria mala! Talvez seja
culpaminha por sempre arrumar pra ele...
Não se preocupa com
roupas, lu. Tem uma base subterrânea da liga ali perto onde vamos
ficar. Daí eu uso os uniformes mesmo, é mais prático.
Ah não, guto, você
não andar atrás de mim vestido assim! Nem adianta!
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Constantino Augusto Peçanha, 2050
Nos atrasamos um pouco
por causa daquela mala meticulosamente organizada e porque o Wallie
parece ser um dos poucos robôs incapazes de lidar com peso. Levei um
susto com alguma coisa no corredor em direção ao elevador e,por um
instante, tive a impressão de que estava sonhando. Foi como quando
levo aqueles sustos na cama, parecendo que estou caindo. A partir
desse momento, fiquei com um nó na garganta e a horrível sensação
de que algo muito ruim estava prestes a acontecer. Como de costume,
comecei a pensar no que poderia dar errado, pois aí eu poderia
encontrar soluções pra esses riscos e diminuir minha ansiedade.
Poderíamos ser avistados
por tropas terrestres bem treinadas e munidas de detectores
contrabandeados. Mas a maioria da liga nem sabe que esses detectores
existem, já que sua existência ainda não foi publicada no jornal
mensal. Também poderíamos ter nossa comunicação interceptada, mas
Creed já tratou de tornar nossa rota digital impossível de ser
rastreada.
Talvez existissem espiões
nas tribos, talvez câmeras. Bem, câmeras enviando sinais à
distância podem ser encontradas pelo creed!
Creed, na escuta?
Guto, você por
acaso tem um amor platônico por esse Creed aí? - disse Luíza
rindo de mim
O que? Ele é meu
hacker, ué.
Você estava aí
todo pensativo. Pensei que você iria falar alguma coisa comigo, sei
lá, compartilhar um sentimento, daí você vai e chama o Creed!
Pode isso, envolvimento emocional com seu hacker? Romance secreto
em!
Hahaha! Sinto te
desapontar, mas não. Só percebi que eu não tinha verificado se a
tribo está sendo monitorada pelo exército.
Peçanha, na escuta?
- ouvi pelos meus óculos
Me engana que eu
gosto! - disse luíza
Pera só um minuto,
lu. Fala, Creed.
Você perguntou
sobre a monitoração ontem. Inclusive também solicitou que eu
desabilitasse as câmeras no caminho como precaução, caso eles
tenham algum software novo pra detectar padrões de difração de
luz achar seu avião “invisível”. Está feito, as câmeras vão
ser adulteradas diretamente pelo seu avião.
Peraí, você tava
ouvindo minha conversa e alterou meu avião? Cara, as vezes eu me
pergunto se é possível confiar em hackers!
Bem, você reparou
meu sistema nervoso e me deu esse overclock porque quis, não é?
É, mas se você
abusar eu te neuralizo de volta pro seio da sua mãe!
Ele enviou aquela velha
imagem do Grumpy cat e se desconectou
Que é isso de
neuralizar? Pesquisei e só achei referências sobre homens de preto
na nuvem. Tem como apagar as memórias das pessoas?
É... É só uma
brincadeira que temos entre nós.
Sei... Já estão
com brincadeirinhas próprias, não é? Preciso ver esse cara
pessoalmente pra ver se seriam um belo casal!
Depois de falar isso,
Luíza acabou pegando no sono e eu me perdi em pensamentos. Lembrei
de como conheci creed e de como tudo aquilo mudou minha carreira. E o
tempo voou, como sempre acontece quando faço isso. Ele era uma das
poucas pessoas que conheci na vida com disposição pra experimentar
e quebrar barreiras.
E estávamos fazendo
justamente isso: desafiando estados e entrando numa zona de guerra.
Aquilo era crime de tantas formas diferentes, mesmo sendo justo, que
nós simplesmente precisávamos levar a termo. Sim, eu estava fazendo
aquilo pela Luíza, talvez pra salvar nosso casamento, mas aquela
aventura era espetacular por causa das fronteiras. Era um sistema
experimental de proteção do avião e outro ainda mais experimental
de produção de hologramas em ambiente aberto. Isso sem falar que
poderíamos simplesmente ser encontrados por soldados e nenhum
sistema de reparo de tecidos nos salvaria dos tiros deles. Muita
coisa poderia dar errado porque eram muitos militares e nem todas as
atividades deles podiam ser monitoradas pelo Creed sozinho. Mas, pela
primeira vez em anos, eu quis a aventura.
Quando finalmente peguei
no sono, faltava pouco pra chegarmos, então apenas dei um cochilo e
fui o primeiro a acordar, apesar de o o pouso do avião não fazer praticamente nenhum barulho. Estávamos perto da base da liga e eu
reconhecia o lugar. Era perto de uma pequena aldeia que visitei com a
Mônica. Quais eram as chances de eu ir parar naquele lugar mais uma
vez? É difícil não acreditar nas loucuras que fiz naquelas duas
semanas. Aquela mulher tem o poder de me tirar do sério!
Acabei saindo sozinho do
avião e fui andando na direção da tribo. As lembranças inundavam
minha mente, trazendo de volta aquela adrenalina, aquela sensação
de estar vivo e poder tudo. Cada passo ainda me dava aquele medo de
não conseguir dar meia volta e retomar minha vida, meu
trabalho,minha família! Minha esposa que queria me transformar em
alguma coisa que não entendo, meus filhos que são dessa nova
geração que não entendo. Tudo aquilo que eu repetia pra mim mesmo
que deveria ser o único centro das minhas atenções, mas que nunca
tomou toda a minha atenção. Sempre houve uma ruptura dentro de mim,
alguma parte de mim que estava viajando pelo mundo e fazendo loucuras
inaceitáveis pra um pai de família. Eu queria que aquilo fosse
diferente e que eu fosse uma pessoa melhor. E também queria a
aventura. A ambiguidade do meu interior se refletia em cada passo que
eu dava.
Quando cheguei perto da
tribo, algo atingiu meu pescoço. Um dardo contendo alguma coisa que
meu sangue começou a filtrar foi lançado contra mim. Meus óculos
mostraram a estrutura molecular do principal componente injetado em
mim. Cianureto. Alguém estava tentando realizar um assassinato limpo
e silencioso. Um que Creed não detectou.
Peçanha, tem uma
escolta na sua localidade. Cortei as comunicações dele, mas tome
cuidado andando por aí. É melhor esperar... Porra, porque você
saiu sozinho?!
Achei ele. Vou lidar
com o problema. - respondi
Não desliga a porra
do audio! Espera que eu...
Cortei nossa comunicação
tirando meus óculos e andei na direção do homem, que me olhava com
um tom de espanto. Enquanto eu andava, pensei que aquilo poderia ter
atingido a Luíza e senti um tipo de fúria que nunca havia sentido
antes. A presença dele colocava a vida dela em risco e eu o odiava
por isso. O Cianureto se acumulou na minha mão, pronto pra ser
eliminado mediante meu comando. Por algum motivo, o homem ficou
paralisado por uns instantes, até puxar uma pistola de disparar um
tiro no meu ombro. A bala atravessou minha pele e eu senti a dor, mas
não parei de andar. Senti a ferida se fechando, por causa daquele
maldito efeito de coceira. E ele largou a arma e começou a falar.
Não sei que tipo de
droga estão dando pra esses soldados, mas na hora nem me importei.
Coloquei minha mão na boca dele e deixei o cianureto sair. E ele
ainda engoliu! Deitou com calma no chão, como se estivesse tudo bem:
Ele ficou inconsciente e
pus de volta meus óculos.
Esse soldado foi
considerado desertor. Ele estava com transtorno de estresse
pós-traumático e não estava nessa vila em missão. A zona está
tranquila.
E você sabe o que
aconteceu?
Sim. Seus pupilos
filmaram tudo.
Só aí percebi que eles
estavam me olhando, com expressões que pareciam misturar espanto com
confusão.
Você invadiu os
óculos deles?
Só do primeiro que
acordou. Esses hackers da liga são amadores, cara, numa boa.
Conheço meia dúzia de anonymous que conseguiriam quebrar a defesas
desses óculos em minutos!
Luíza veio logo atrás,
limpando os olhos e bocejando com aquela cara inchada que ela tem
quando acorda. Acho que ela é a única pessoa que fica bem assim que
acorda. Ou talvez eu seja a única pessoa que pensa isso.
O que aconteceu com
esse homem? - ela perguntou
Tentou me envenenar.
Neuralizei ele.
O que? -
neutralizei, digo.
Você matou ele?
Você enlouqueceu?
Ele estava armado e
poderia ter te machucado. Eu não podia correr o risco.
Mas você não podia
só deixá-lo inconsciente?
Não. Às duras
penas, lá na base principal na áfrica central, aprendemos que não
vale a pena tomar meias medidas. Se você vê um problema e o
resolve apenas pela metade, ele volta pior. Não cabe colocar
vírgulas onde é necessário um ponto final.
Você ficou louco?
Agora acha matar pessoas uma coisa comum?
Ele era um soldado.
Eu não ia deixar ele te ferir. O risco era grande demais.
E você podia se
colocar em risco? Ou será que não havia risco, porque esse
departamento de defesa que você sempre menciona está te treinando
pra ter o instinto assassino? - Ela gritou
Eu realmente detestava
quando ela gritava. Não que fosse uma coisa comum, mas também não
havia necessidade. Os rapazes começaram a organizar o equipamento e
tentar fingir que não estavam ouvindo nada, mas o desconforto estava
em seus rostos.
Não havia riscos
porque as armas mais comuns em guerrilha são dardos de veneno. E eu
tenho um sistema de nanofiltros no meu sangue que elimina venenos.
E esse sangue no
chão? Seu sangue também filtra balas?
Não, mas ele fecha
feridas. E esta cicatrizando agora enquanto falamos. Daqui a uma
semana, estará quase como se o tiro não tivesse acontecido.
O que é isso,
Constantino? Sangue artificial, cérebro artificial, pele
artificial! Você quer o que, viver pra sempre?
Não acho que isso
será possível, mas, se for, porque não?
Não acredito nisso.
E ela lançou aquele
olhar de raiva, mas que mostrava um pouco de tristeza e desgosto no
fundo. Não sei que tipo de louco eu fui ao pensar que uma viagem
filantrópica pro meio do nada nos traria de volta. Tudo estava se
desfazendo diante de mim e meus esforços eram vãos. Eu sabia que
estava fadado ao fracasso, mas amava ela demais pra simplesmente
desistir. Eu tinha que ir até o fim, eu tinha que dar tudo de mim. E
sentia que meu limite estava chegando.
Com licensa, senhor
peçanha. Senhor? - falou um dos rapazes
Hey, oi. Desculpe,
eu estava distraído. Algum problema?
Não, é que estamos
pré-calibrando o equipamento e temos que esperar. Posso te fazer
uma pergunta?
Sim, claro. Contanto
que não seja pessoal...
Não, de maneira
alguma. É sobre seu sistema de interface neural.
Bem, se você
conseguir aturar o bla bla bla técnico...
Não precisa ser
técnico não. É sobre a participação dos programadores. Ouvi
falar que esse sistema só está em fase de teste por causa dos
programadores, mas não consigo achar nenhum programa que tenha
servido de base pra tecnologia.
Ah, entendo. Bem,
acontece que os programadores ajudaram como cobaias e não como
autores.
Há! Eu te falei que
esse código não existia! 50 na minha mão agora – outro deles
falou
Desculpem, mas quais
são seus nomes?
Bem, eu sou o Ronald
- respondeu o ganhador da aposta
Eu sou Mark –
respondeu o perdedor
E eu sou o Patrick –
falou outro que estava prestando atenção na conversa sentado na
frente de um computador.
Bem, Ronal, Mark e
Patrick, também não é o caso de vocês subestimarem a importância
dos programadores nesse processo. Especialmente porque eles estão
sendo essenciais na criação da interface entre computadores
eletrônicos e os endocomputadores. É coisa bem complicada.
Sim, mas não foi um
código de algum programador que tornou isso possível. - disse
ronald
Mas foram códigos,
de certa forma. Vou tentar ser sucinto sobre isso.
Desculpe, mas o que
é sucinto? - Disse mark
É dizer coisas de
maneira resumida, clara.
Ah sim, entendi.
Então, eu fiz uma
pesquisa pra descobrir se o ato de programar era um evento
linguístico que era controlado pela região de broca no cérebro e
descobri que não. Na realidade, quando um programador começa a
escrever seu código, ele está produzindo uma forma de linguagem
não natural. Agora, até hoje os sistemas de interface
cérebro-máquina não funcionaram porque a linguagem humana tem
estruturas universais que são inerentemente ambíguas e confusas e
que não conseguem se comunicar com códigos, que são objetivos
demais. Mas os programadores mostraram que nosso cérebro é
plástico o bastante pra formar uma forma completamente nova de
linguagem, que é mais lógica e precisa, embora muito mais restrita
pra comunicação entre pessoas. Nosso cérebro, em suma, é capaz
de se comunicar diretamente com computadores através do lobo
pré-frontal. E os programadores já estavam falando essas
linguagens não naturais há quase um século! Então começamos a
desenvolver um sistema que não interage com regiões envolvidas com
a linguagem natural, mas diretamente com esse tipo de pensamento. E
funcionou!
Há! Então os
programadores são um novo passo na evolução humana! - disse
Patrick
Eu diria que
propiciaram essa evolução, mas...
Ok, feito. Agora
basta colocarmos o equipamento na tribo.
Luíza apareceu novamente
e eu não sabia o que dizer, então fiquei em silêncio. Ela chegou
com dois dos nativos.
Porque eu fui falar
aquilo não sei. Mas a tentativa de encerrar o conflito que ela
mostrava nos olhos desapareceu. O passado lança sombras longas...
Ele era um homem jovem,
de no máximo uns trinta anos. Era bem pequeno e magro, mas parecia
saudável. Estava bem adaptado ao local.
Essas são as luzes
que vão proteger a aldeia.
Mas que ser luces
que no brillan? Donde está lo brillo?
Ele fica escondido,
olha só. Você ve a luz, mas ela não te toca porque você está
protegido. - ela falou
Estedes são de
brasil, certo? Que quieren aqui? No quieremos guerra.
Nós também não.
Nos disseram que as aldeias daqui estão correndo perigo, então
viemos ajudar. Vamos colocar um escudo protetor na aldeia – ela
disse.
E enton se vão
embora?
Sim, depois vamos
embora.
Entonces pongan logo
o escudo e se vão.
O homem obviamente não
acreditou na versão que ela passou, mas sabia do risco de ter
estrangeiros vagando perto da tribo. Poderíamos atrair atenção
militar. Acabamos passando o dia inteiro por lá, porque os membros
da aldeia não deixam robôs entrarem. Então foi uma jornada de
subir em árvores e colocar receptores holográficos no topo de
cabanas que parecia não terminar.
Você está louco,
mark. Não pode ser essa a tangente. A imagem nesse canto vai
borrar. - disse Patrick
Ah, cara, para com
isso na boa. Vamos logo embora, eu quero tomar um banho e você fica
vendo cada mísero detalhe!
Well, if at least we
could get some robots to check this out... – Reclamou Ronald
Hey, sem falar
inglês por aqui. Olhem o respeito. - disse Luiza
Desculpe senhora. -
Respondeu mark. - Está tudo pronto então, já podemos ir.
O chefe da tribo pareceu
aliviado com a nossa partida. Embora eu e Luíza tenhamos andado lado
a lado, não falamos nada. Estávamos tristes, não bravos. Tudo
parecia se encaminhar para um desfecho trágico. Só que eu nunca
imaginei o quão trágico ele seria...
Certo, os sistemas
estão ligados. O holograma está sendo captado processado e
armazenado. Cadê o borrão naquele canto, Patrick – disse Mark em
tom sarcástico
Gira a imagem,
gênio. A nitidez está vindo do detector a 109 graus do centro. Aí,
viu? Borrão! - apontou Patrick
Mas a imagem ainda
pode ser vista. Quando foi que já conseguimos uma imagem 100%
nítida de todos os ângulos fora do estúdio? - reclamou mark
Ok, guys, Essa
discussão não vai chegar a lugar nenhum. Temos um problema com um
dos roteadores no backbone e nossa conexão está lenta demais pra
transmissão direta pra nuvem. Suponho que isso seja mais urgente,
não? - falou Ronald
Ah, não não. Eu
sei qual é o problema nesse roteador. Eu danifiquei um cabo por
acidente. Alternem ele pra Wi-fi que a conexão fica rápida o
bastante – Falei sem medir as consequências
Certo, está tudo no
ar. Estamos transmitindo!
Como você danificou
esse cabo, guto? - Luíza perguntou num tom de quem não quer ouvir
a resposta
Ah, foi só um
acidente, não foi nada demais.
Você estava fazendo
o que com ela? Arrastou a cama pra cima dos cabos, foi? - ela
perguntou com um tom de ressentimento que eu nunca tinha ouvido
O silêncio tomou conta
do lugar e os rapazes se concentraram em corrigir erros de
processamento de imagem pequenos pra se ausentarem daquele conflito.
Eles pareciam querer ir embora e houve momentos em que eu também
quis isso.
E consegui. Ela sentou na
poltrona com uma taça de vinho e começou a assistir ao holograma.
Não sei se ela percebeu que eu deixei aquela garrafa aqui anos
antes. Compramos, mas nunca chegamos a abrir. Deitei na cama ali
perto dela. Estávamos numa base subterrânea e não tinha muito pra
onde ir e ficar longe dela. Estávamos no campo de visão um do
outro, mas evitando o cansaço. Ela tentando se acalmar e eu tentando
encontrar alguma solução pro problema. Mas não importa o quão
grande seja seu esforço pra reparar os problemas do presente, o
passado não volta e não muda. Se eu soubesse que as coisas seriam
assim, talvez nunca tivesse vindo pra esse canto remoto. Talvez essa
base nunca nem fosse construída! Mas a vida sempre toma rumos
inesperados, quase sempre trágicômicos, e lá estavamos nós! Todo
aquele aparato tecnológico passava uma sensação de ordem e
controle, mas por dentro estávamos todos perdidos. E se eu pensava
que até ali tudo estava perdido, o que veio em seguida terminou de
destruir as últimas esperanças:
Olha, olha. Ala
oeste! - afirmou Mark
Caralho, são
soldados! Um monte deles! Estão indo na direção da tribo!
Um membro da aldeia
estava voltando pra casa com peixes numa cesta e foi atingindo com um
tiro na cabeça assim que entrou na zona holográfica. Os peixes
caíram pelo chão e um comentário foi gravado logo em seguida:
“Boa, garoto!”. Subi tão rápido levantando na cama que bati a
cabeça na cama de cima e fiquei tonto por alguns instantes, sem
acreditar no que estava acontecendo
Não! Porque eles
fizeram isso?! Caralho, Guto, manda algum robô pra lá agora! -
Luíza gritou com os olhos cheios d'agua
Cadê os robôs? -
eu gritei
Diz o registro que
eles foram confiscados pelo exército pra operações tática –
disse Patrick
Porra, isso é
roubo. Aqueles robôs são meus!
Minhas palavras
convidaram o silêncio. Foi um protesto que nada fez do que
demonstrar nossa impotência. E assistimos enquanto todos aqueles
soldados entravam na zona holográfica, aparentemente sem perceber
que estavam sendo gravados. Eram mais numerosos do que toda a aldeia
junta. Não fazia sentido terem mandado tantos homens assim. Eles
carregavam o homem que matei em uma maca.
Um dos soldados se
aproximou e sussurrou no ouvido do comandante. Mark rapidamente pôs
em foco o som abafado: “Senhor, a causa de morte foi envenenamento
por cianureto. Ele se matou”.
O senhor está me
questionando, cabo? O senhor não sabe que esse índios têm
zarabatanas com dardos venenosos?
Mas senhos, ele
estava com proteção de fibra de carbono. Eles...
O comandante deu um tapa
na cara do subordinado.
Você sabe que eles
estão escondendo guerrilheiros aqui, cabo! Você ouviu o tiro. E o
Messias era louco, mas ele nunca disparou uma arma sem precisar! Tem
guerrilheiro aqui nessa merda e eu vou achar esse filho da puta!
O que aconteceu depois
disso é difícil descrever em palavras. Eu estava assistindo de pé
e caí no chão em terror. Ronald colocou um fone que cancela ruídos
externos, fechou os olhos e abraçou as pernas enquanto todos os
outros não conseguiam se mover. Mas ninguém pode descrever aquela
cena em todos os seus detalhes. Apenas Luíza conseguiu captar
ângulso certos pra formar uma espécie de curta-metragem
bidimensional. Deixo, portanto, que as palavras dela falem por si
só...
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Luiza Gomes Pereira Peçanha, 2050
Você já ouviu falar do
termo neuralização, caro leitor? Pois é, somente aos que têm
estômago forte recomendo assistir ao vídeo anexado a essa mensagem.
E aos que não se importam de vomitar algumas vezes, como eu, podem
acessar o holograma inteiro clicando aqui.
Pois então, vamos à
definições teóricas: A neuralização é um processe de
degeneração cerebral super-rápida por meio de um equipamento. Sim,
existe uma arma que causa a degeneração da mente de um ser humano,
o nosso exército tem essa arma e a usa indiscriminadamente. O que
esse equipamento faz é induzir a morte das células cerebrais em um
padrão parecido com a doença de alzheimer, causando demência
irreversível e finalmente a morte. E é isso que é a guerra, caro
leitor. É demência, é abominação, miséria, sofrimento...! Então
se você tem estômago, continue lendo a saga do Juanito, apenas mais
uma vítima da nossa “guerra pela liberdade”!
Ele estava indo na
direção de seu pai até ver os soldados se aproximando. Estava
feliz pelo peixe que comeria em breve. Mas ele se escondeu atrás de
uma árvore, presumivelmente por perceber os soldados camuflados se
aproximando. E antes que seu pai pudesse se virar pra ver os
soldados, uma bala atravessou sua cabeça. O único pecado daquele
homem foi pescar, aparentemente.
E Juanito correu,
provavelmente como nunca correu em sua vida. Ouviu soldados gritando
atrás dele e as pessoas gritando à sua frente, na direção de sua
casa. Foi apenas então que ele se deu conta de que a vila estava
totalmente cercada. Sem ter pra onde fugir, ele encontrou sua mãe no
centro da tribo com outras mulheres e tentou chegar até ela, mas foi
segurado por um soldado.
Ele era um menino de uns
nove anos e bem magro, como quase todos naquela aldeia. O Soldado,
com sua monstruosa armadura corporal, parecia um gigante segurando o
menino enquanto ele se debatia inutilmente. Quando perceberam sua mãe
gritando por ele, tiraram ela do meio das mulheres.
Donde está lo
gerrillero!? - gritou um deles
No lo se, señor!
Por favor, dá-me mi niño. Por dios! - a mulher gritou aos prantos
Deus? Vocẽ acha
que Deus vai te salvar!? Não é na mãe natureza que você confia?
Pois bem, vou mostrar o que um homem faz com a mãe natureza!
Ele rasgou a roupa da
mulher como se fosse feita de papel enquanto ela lutava inutilmente
pra chegar em seu filho. Trouxeram outra mulher diante dela e aí
aconteceu a primeira neuralização.
O homem tinha um sorriso
doentio no rosto e não tirou os olhos da mulher sendo neuralizada
por um instante. É uma das cenas mais chocantes de se ver. Olhos
virando pra cima, saliva escorrendo com espuma pela boca e um rouco
som sendo emitido, como uma tentativa de gritar por socorro. Naquele
momento, todos os membros da tribo começaram a gritar e três deles
tentaram correr, apenas pra serem atingidos por tiros na nuca.
Mas ele não terminou a
neuralização, que deveria levar a vítima à morte. Ele deixou a
mulher se debatendo no chão, já completamente demente. Quem já viu
uma vítima da doença da vaca louca em estava avançado sabe como é
uma visão horroroza. Um ser humano reduzido a espasmos, uma alma
presa a um corpo de que vegeta.
Começaram a bater no
menino e matar os homens da tribo. Alguns por neuralização, outros
por fuzilamento e alguns poucos por espancamento. Assistindo aquilo,
o terror nos olhos da mulher começaram a se transformar em algo como
tristeza e desespero. Ela já não conseguia gritar e desistiu de
tentar se soltar. No momento em que começaram a estruprá-la, todas
as outras já estavam na mesma situação. E os homens sorriam
enquanto seguravam as mulheres pros seus colegas terem sua
“diversão”. E juanito viu sua mãe ser estuprada por mais de
doze soldados até que o comandante se aproximou. Os olhos dela já
estavam quase totalmente fechados pelos golpes que ela recebeu
durante os estupros e ela mal conseguia respirar.
E quando um homem veio
neuralizar a mulher, aquele mesmo cabo chegou atirando contra seus
companheiros. Nenhum deles se feriu, por causa das armaduras, e ele
foi derrubado no chão.
traidor filho da
puta! - gritou o comandante – Eu vou arrancar a porra do seu coro!
Foda-se, eu não
aguento mais! Eu não vou mais assistir de camarote enquanto vocês
fazem isso! Isso não é diversão, isso não é justiça e nem
liberdade! Eu não me alistei pra isso, eu vou falar com...
E a bala atravessou o
olho dele antes que mais uma palavra pudesse ser proferida. Os outros
militares pararam por alguns instantes e então começaram a fuzilar
as mulheres restantes, até que só Juanito, sua mãe e outra mulher
escondida debaixo de um monte de folhas sobraram. E o comandante
começou a estuprar a mulher enquanto um soldado a neuralizava. Não
tenho palavras pra descrever o horror daquela cena. Parece que no
começo você está assistindo um filme de terror que é tão
horrível que você só quer mudar de canal. E eu assisti àquilo
impotente, assim como todos nós cidadãos assistimos a essa guerra
que não autorizamos impotentes até agora!
O homem ainda neuralizou
Juanito, mas não o deixou vegetando. Deixou ele semi-consciente pra
assistir sua mãe terminar de ser estuprada e degolada. O menino foi
deixado apenas meio-vivo, vagando de um lado pro outro e sendo
empurrado por soldados que o empurravam de um lado pro outro como se
aquilo fosse tudo uma brincadeira. Até que o derrubaram e ele não
conseguia mais se levantar. Ouvindo sons de helicópteros, os homens
rapidamente entraram em formação. Um deles desenhou o símbolo dos
alegados guerrilheiros no chão com spray vermelhor. Não sei até
agora se aquilo foi uma mensagem pra mídia, tentando responsabilizar
outras pessoas por seus atos, ou se apenas fizeram aquilo pra atingir
os homens que se escondem pela mata e lutam contra essa invasão.
E depois que foram
embora, a mulher saiu debaixo das folhas. Era uma senhora já idosa.
Andou pelo vilarejo como se um pouco de sua alma também tivesse sido
neuralizada pra fora dela. Ela olhava de um lado ao outro sem
expressar nenhuma emoção. Chegou no menino, que se debatia
aparentemente tentando se levantar, com toda aquela saliva saindo de
sua boca. Pegou a pistola no bolso do cabo e atirou na cabeça dele.
Então sentou-se no chão e ficou ali por horas e horas. Anoiteceu, o
dia amanheceu e ela ainda estava lá. Até que chegou um fotógrafo,
que tirou a última foto dela viva. E é aquela foto que espalharam
pela internet, de uma indígena idosa dando um tiro na própria boca.
Isso tudo me pôs pra
refletir sobre o que é a guerra, meus caros leitores. E vocês não
sabem quantas vezes eu parei de escrever esse pequeno texto, não
sabem que eu destrui dois computadores tentando escrever isso. Porque
os dementes não são aqueles inocentes que foram neuralizados. O
dementes somos nós, que ouvimos alguém falar que guerra pode trazer
algo bom e nos calamos. Não temos alzheimer nem pakinson! Nós temos
é demência de guerra!