Emanuel Pereira Peçanha, Outubro de 2075
Já
houve o tempo, anos atrás, quando fiz as seguintes perguntas pra mim
mesmo: “Como é que cheguei até esse ponto?” ou “Como posso
ter ido tão longe com isso tudo?”. Como quando coloquei aquela
tatuagem no peito e desapareci pelo mundo pela primeira vez. Naquele
momento, enquanto eu vestia camada sobre camada daquele traje
monstruoso, apenas uma pergunta me passou pela mente: “Como eu
posso ter esperado tanto pra chegar até aqui?”
Sim,
era completa loucura. Até monstruoso, dependendo da sua
sensibilidade moral. Mas não espero, é claro, que uma pessoa com
sensibilidade moral excessiva entenda esse tipo de permissividade. O
computador me dava instruções como se eu não tivesse praticado
dezenas de vezes tudo aquilo. Aquele Walter com todas as suas medidas
redundantes de segurança, querendo garantir que todos os seus planos
dessem certo. Mas eu segui os mandamentos e realizei todas as etapas
conforme o computador orientava até que, duas horas dempois, eu me
tornei um monstro. Aquele apartamento enorme continha apenas o
equipamento e a pasta nutritiva que eu deveria comer. Eles pensaram
em tudo.
O
traje só seria ativado sob comando remoto, é claro, porque
aparentemente tenho uma personalidade instável demais pra que esse
controle seja posto em minhas mãos, então decidi dar uma olhada nos
meus alvos antes do ataque. Aquilo abalaria a política do mundo
inteiro e só a ideia do caos que eu estava prestes a criar enchia
meu peito de fogo. As nuvens não carregariam meu nome, eu não teria
meu lugar na história, mas morreria sabendo que eu a fiz com as
minhas próprias mãos. Além disso, como todas as câmeras são
destruídas em hipertempo, eu seria a primeira e única pessoa a ver
o mundo em real slow-motion. Os líderes da américa do norte
começaram seu discurso e meu coração acelerou. Eu sabia que o
ataque deveria ser no meio daquele discurso: a qualquer momento eu
poderia entrar em hiper-tempo. O sinal estava muito fraco, então
liguei apenas o áudio do broadcasting:
“A
comunidade global está em alerta. Nós sabemos que a ciência,
quando feita sem ética, gera desastres. Mas os líderes que nos
precederam foram tímidos diante do avanço dessa liga de cientistas.
Hoje temos relatórios de que as alterações climáticas que eles
produziram no planeta podem ter causado danos irreversíveis ao
equilíbrio geológico do planeta, e sabemos também que inúmeras
espécies animais foram extintas devido às ações deles. A liga não
é sustentável!
A
plateia gritou com euforia. Tomaram as ruas em protestos quando
descobriram que estava sendo produzida a tecnologia de hipertempo e
alguns chimpanzés foram carbonizados junto com as instalações e os
robôs que as operavam. Começou um boato de que a liga brinca de
Deus e que o tempo não é de domínio do homem pra que ele alterar.
A histeria em massa, aparentemente, também acometeu esses líderes,
que quebraram acordos com a liga e tentaram dar passos maiores do que
as próprias pernas.
“Não
impedimos esse cientistas sociopatas e o que eles fizeram? Criaram a
neuralização, fizeram experimentos sem consentimento com seres
humanos e foram responsáveis por milhares de mortes! E agora, depois
da pretensão de controlar a vida e o planeta, querem também
controlar o tempo! Especialistas afirmam que, se eles conseguirem
aperfeiçoar esse tipo de tecnologia monstruosa, tudo o que
entendemos por física pode ser subvertido e toda a vida na terra
pode ser extinta! Nós viemos aqui dizer basta! Não vamos ser
intimidados por terroristas! Nós vamos...”
E o
hipertempo veio, estranhamente inesperado. Acabei entretido com o
discurso do político, que foi estranhamente coerente, embora tão
ingênuo.
Tudo
em minha volta mudou completamente e faltam palavras pra descrever a
experiência. Todos os meus aparatos de comunicação perderam seu
sinal e o apartamento escureceu consideravelmente, apesar de aquela
ser uma manhã ensolarada e todas as luzes estarem acesas. Quando me
ergui com o traje, pude sentir o chão de concreto esfarelando como
se fosse areia da praia sobre todas aquelas camadas. Olhei em volta e
descobri um homem com uma pistola na mão olhando pra mim com
espanto.
Ele
parecia uma daquelas fotografias holográficas de anúncios de filme
de terror, tamanho era o medo que ele mostrava. Não pude perceber
nenhum movimento. Uma estátua de carne que pretendia salvar o dia.
Mas esse dia não poderia ser salvo, aparentemente, porque aquela
arma não podia causar nenhum tipo de dano no traje, que é capaz de
resistir a condições extremas.
Encostei
na arma e ela soltou algo parecido com faíscas, mas que tinham um
brilho tão fraco que chegavam a ser macabras. Na realidade, pensando
bem, tudo estava sombrio. Até as lâmpadas acesas do lugar pareciam
ter passado por algum tipo de processamento de imagem que lhes
reduzia o brilho.
Pressionei
a arma com as duas mãos e ela se desfez como uma pedra entre duas
chapas de aço. Eu gostaria de ver a reação daquele super-herói
depois de ver aquele traje de três metros de altura simplesmente
desaparecer e sua arma virando pó. A mão dele provavelmente também
seria carbonizada no processo. Mas era óbvio que eu não podia
deixar ele vivo e que ainda muitas pessoas no mundo enlouqueceriam
com as minhas ações. Então eu apenas dei um tapa no rosto dele. Vi
aquelas faíscas sombrias paradas em pleno ar e aquele rosto
completamente desfeito. Alguns pedaços de ossos mantiveram tamanhos
consideráveis, mas a pele parecia areia em pleno ar. Eis aí o preço
do heroísmo!
Eu
tinha que quebrar aquela velha parede de tijolos, mas decidi fazer
uma loucura. Ao invés de usar as superfícies externa da luva e do
braços que foram projetada pra isso, pulei de costas.
O
traje tinha aqueles dispositivos de neuralização super resistentes
presos na parte traseira, então tive que removê-los, abraça-los e
pular. Foi a sensação mais inexplicável da minha vida. Pela
primeira vez eu ouvi algum som, mas sinceramente eu não consegui
identificar sua origem. Foi bem grave, até parecia com uma explosão,
mas eu sabia que som é um fenômeno dependente do tempo, como
praticamente tudo no mundo sensorial. Poderia ter sido o som do vidro
quebrando.
A
parede se quebrou como se fosse um daqueles velhos castelos de
cartas, que admiram pelo simples fato de se manterem de pé. Minha
concepção de matéria ficou abalada e tive um leve momento de
reflexão psicodélica. Tudo aquilo que consideramos “concreto”,
na verdade não passa de um castelinho de cartas pronto pra
esfarelar! Quando a parede era apenas pó em volta de mim, guardei um
dos neuralizadores, que mais parecia uma lança depois que foi solto
do traje, e coloquei os outros dois em cada mão. Fechei os olhos,
abri meus braços e fiquei ali por uns dois minutos flutuando. Se
alguma câmera minimamente eficiente estivesse filmando aquele local,
poderiam aplicar o slow-motion e me ver com minhas “lanças”. Não
havia gravidade no mundo que fosse capaz de ficar entre eu e a
glória! Esse pode ter sido o momento mais vaidoso de toda a minha
vida. Mas eu não pude resistir. Logo eu me vi em rota de colisão
com outro prédio e percebi que o aquecedor do meu traje estava
trabalhando dobrado. Isso tinha sido previsto: o calor é dependente
do tempo. O ar ali era extremamente frio, pois as moléculas mal
vibravam. Então abri meus olhos e vi o sol. Na realidade,
inicialmente eu não o reconheci!
Um
pontinho de luz tímido que mal dava conta de iluminar aquela manhã
escura. Depois que minha brincadeira estava concluída, me voltei pra
missão. Acendi aquele holofote absurdo que fica acima do capacete do
traje e vi a luz se movendo. Digam que é impossível o quanto
quiserem, mas eu vi a luz saindo, como se fosse um daqueles velhos
efeitos especiais. Foi rápido, é claro, mas ver aquilo me pôs em
um estado de euforia indescritível.
Liguei
as hélices traseiras pra reduzir a força do impacto com o outro
prédio, mas o que acabou acontecendo foi que eu flutuei de volta pro
prédio inicial. Parecia uma criança aprendendo a andar e
cambaleando!
Quando
estabilizei minha velocidade, desconsiderei a ordem do Walter, de que
os neuralizadores deveriam permanecer intactos, e usei a hastes deles
como ganchos pra me puxar pra baixo. Acabou que, novamente, perdi o
controle do meu movimento, pois comecei a cair rápido demais. Mesmo
as partes da parede que minhas lanças não tocavam começaram a
virar pó e percebi que eu estava me movendo rápido demais. Minha
hélice controlou a queda, mas causou uma linha de destruição no
prédio. Foi como um rastro sendo formado, só que ele aparecia antes
de eu passar pelo local. Mesmo achando que estava lento, quando eu
caí no chão, o asfalto afundou e por um momento pareceu que ele
estava prestes a me engolir como se fosse areia movediça. Mas
finalmente eu estava com o pé no chão.
Ao
invés de ir na direção dos meus alvos, não resisti e comecei a
brincar com a luz. Aquele era o melhor brinquedo que poderiam ter me
dado e eu não passo de uma criança grande. Dava pra perceber um
tímido atraso entre meu movimento e a luz do holofote. Passei quase
um minuto somente movendo o traje e no fim das contas isso foi bom,
porque diminuiu a carga do aquecedor, já que o ar em volta de mim
começou a esquentar por radiação.
A
multidão de estátuas era grande demais. Primeiro eu pensei em
saltar sobre ela, mas qual seria o drama disso? Eu não tinha
instruções sobre como proceder nessa situação, então decidi
brincar de boliche. E foi completamente fascinante.
Tentei
correr, mas perdi o equilíbrio por um instante. Mesmo com toda a
leitura e todo o treinamento em realidade virtual, é difícil se
acostumar com o fato de que o chão deixou de ser firme. Eu acelerei
devagar, fazendo buracos pela rua, até que consegui alcançar uma
velocidade considerável e comecei a desintegrar minhas primeiras
estátuas com os braços abertos. Comecei a contar e falar sozinho:
-
Minha nossa, ninguém para esse furacão! É um, é dois, cinco,
quinze, ele é incontrolável!
É
fácil esquecer que você está matando pessoas numa situação
dessas. Por um instante eu me senti como se estivesse ainda em
realidade virtual e que aquelas pessoas nem mesmo existiam. Mas a
verdade é que eu não me importava com o destino delas. Tudo o que
importava era meu brinquedo novo e toda a fantástica realidade que
ele me trazia. Todas as possibilidades de aprendizado, de destruição,
de prazer. Eu simplesmente precisava desativar todos os mecanismos de
controle remoto daquele máquina. Como aceitar que aquele idiota do
Walter controle essa máquina se ele nem é capaz de passar pelos
mais básicos testes em realidade virtual?
O
covarde viu que de dez voluntários eu fui o único que sobreviveu e
terminou o treinamento, e logo concluiu que o lugar dele era num
laboratório inventando coisas que ele nunca poderia usar. É a
diferença entre o astrônomo e o astronauta! Ou pelo menos era.
Quando eu cheguei no meio da multidão, minha velocidade era tanta
que eu nem sentia mais as colisões. Tudo o que pude perceber foi uma
dor excruciante que começou na altura do meu coração e logo se
espalhou pelo meu corpo inteiro. Era como se eu mesmo estivesse em
processo de desintegração, meu corpo se desfazendo de dentro pra
fora. Mas eu já tinha sentido pior em simulação e não parei. Com
o tempo, me acostumei com a dor, mas isso certamente tirou um pouco
da diversão da coisa toda. Bem antes de chegar até os líderes,
acionei a hélice, que deve ter matado mais gente que minha
brincadeira de boliche, e tive um insight pra aprimorar o traje. Ele
precisava de uma superfície elástica na região do torso e isso
possivelmente reduziria a fricção e, quem sabe, amenizaria aquela
dor. Já queria levar o brinquedo pra garagem e começar a fazer
alterações. Uma pena que eu não podia simplesmente levar tudo
embora! Parei diante do palanque que eles estavam usando. Estava bem
em frente de um imenso holograma deles mesmos que mostrava apenas o
tamanho da pretensão daqueles imbecis.
Subi
bem lentamente, pois a estrutura precisava se manter inteira, já que
a neuralização aconteceria em tempo real. Ativei as lanças e
posicionei o campo de neuralização sobre a cabeça de cada um
deles. De onde eu via, ficaram parecendo mulheres de antigamente em
um salão de beleza com aquela estufa estranha realizando algum tipo
de tratamento estético. A neuralização foi ativada, mas obviamente
demoraria tempo demais, então saí lentamente do palanque. Devo ter
passado uns 5 minutos fazendo apenas isso e notei que realmente a
estrutura sofreu poucos danos. Não que eu possa dizer o mesmo das
outras pessoas que estavam ali em cima, como os seguranças.
No
caminho pro mar eu já não queria sentir aquela dor insuportável,
que somente então estava começando a diminuir. Então, mesmo sem
saber ao certo a causa da dor, decidi saltar sobre a multidão em
direção à praia de Manhatan. Quebrei algumas estruturas no
caminho, mas percebi que impactos constantes me incomodavam mais do
que impactos mais intensos e rápidos. Rapidamente eu cheguei na
agua, pois já conseguia usar a hélice pra controlar o voo. Mas a
agua parecia não me tocar. Pousei lentamente e encostei o pé no
chão com todo o cuidado, mas consegui apenas afundar a areia e
afastar a agua em volta. Talvez os materiais mudem de propriedade
quando submetidos ao hipertempo, então as nano-fibras se tornaram
hidrofóbicas. Ou talvez eu só precisasse esperar. Mas eu já não
tinha tempo a perder. Meu limite era de 30 minutos e uns vinte e
poucos já tinham passado. Até quando você subverte as leis do
mundo físico, e desacelera o tempo, fazer algo fascinante o faz
passar depressa demais. Voei pro alto mar e mergulhei. Eu vi o mar se
abrindo na minha frente e a agua subindo. Senti o gosto da divindade,
como se eu fosse completamente indestrutível e nem mesmo a fúria
dos mares pudesse me engolir. Alguns minutos depois, percebi as
coisas em voltade mim acelerarem lentamente. Tudo foi ficando mais
claro e a dor foi diminuindo até não ser mais perceptível. Meu
rastro desapareceu e o mar fechouem volta de mim, mas passaram-se
alguns minutos até eu desacelerar completamente. Minha velocidade
era absurda e eu estava quase no meio do oceano atlântico em pouco
mais de 5 minutos. Foi sinceramente o melhor dia da minha vida e eu
não suportava a ideia de que eu poderia nunca mais vestir aquele
traje. Antes de entrar no submarino e começar toda a bateria de
exames eu já estava decidido decidido. Mesmo que aquilo fosse me
matar, o traje seria meu. Ativado quando eu quisesse, desativado
quando eu quisesse. Planos foram se formando na minha cabeça, mas
por algum motivo eu comecei a me sentir exausto como nunca me senti
antes. Dormi por quase 24 horas e não lembro de ter sonhado. Talvez
tenham me drogado durante os exames preliminares.
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