Constantino
Augusto Peçanha - 2049
Aquela
oportunidade caiu no meu colo numa manhã de domingo. Obter dados
experimentais de programadores profissionais! Liguei meu computadores
e comecei a revisar meus esquemas de modulação. Eu não teria mais
material empírico sem chamar atenção, então sem sucesso nessa
empreitada eu não poderia ser o único autor dessa invenção. Mas
eu precisava, ou pelo menos achava que precisava, dos créditos dessa
pesquisa.
Nessa
metade de século já aprendemos que qualquer organização que se
preze precisa de hackers trabalhando no jogo de informações.
Precisamos proteger nossa informação e obter a informação do
outro se pretendemos ter exito em qualquer coisa que seja. Uma
espécie de balança informacional que só pude evitar usando velhos
computadores desconectados da internet (ou nuvem, como parecem
preferir chamar hoje em dia). E nós estavamos precisando
urgentemente recrutar mais hackers. Há algum tempo eu escrevi um
manifesto que inspirou muitos pesquisadores, mas aparentemente os
hackers não se impressionaram. E nós não conseguiriamos realmene
encontrar os melhores hackers do mundo. Afinal, se podem ser
encontrados, não são bons hackers!
Então
a proposta foi anunciar essa pesquisa de “como funciona a mente de
gênios da computação”. Publicamos em milhares de canais
midiáticos o concurso: hackers que conseguirem quebrar nossas
defesas receberão um milhão de dólares para participar da pesquisa
que pretendia avaliar a possibilidade de “padrões nervosos da
genialidade”. Sim, a pesquisa era idiota, mas a estratégia era
genial: se tem uma coisa que hackers costumam ser é vaidosos.
Quebrar defesas do maior grupo de cientistas do mundo, ganhar um
milhão de dólares e ainda ser objeto de estudo numa pesquisa sobre
gênios! Eu sinceramente não consegui pensar em nenhum meio tão
eficiente pra atrair hackers pelo mundo! Afinal, ficou estabelecido
que eles conseguem seu próprio dinheiro e que isso não pode ser a
“isca” deles.
As
estratégia, então, foi desativar uma camada mais complexa de defesa
que o chefe do departamento de defesa virtual estabeleceu e ver
quantos hackers conseguem quebrar as outras defesas, que ainda assim
eram formidáveis. Tendo acesso ao sistema, o hacker deve tirar uma
foto de um “hi five” e acessar um arquivo contendo informações
sobre como proceder pra participar do concurso. O objetivo, então,
seria conseguir uns 500 hackers e fazer de tudo pra convencê-los a
se juntarem à liga. A defesa, então, deveria ficar baixa apenas até
500 “hi fives” serem registrados. Não teríamos como treinar
mais do que isso com a infra-estrutura atual.
Pelo
que eu soube, esse foi um plano envolvendo diversos interesses dentro
da liga, inclusive os do departamento de defesa. Não o virtual, o de
defesa mesmo. Sabiam que jornalistas começariam a especular a
respeito de segundas intenções. Com os novos algoritmos de
interpretação textual, opiniões excessivamente negativas ou
verdadeiras seriam filtradas pra que os jornalistas pudessem ser
monitorados. Pensar no caminho que trilhamos desde a morte de X, traz
um certo calafrio, mas não tenho tempo pra questionar esses
caminhos. Afinal, eu mesmo votei a favor da criação desse
departamento, que espero que não acabe se tornando mais uma CIA.
Mas
eu não sabia que também estávamos recrutando cientistas de todas
as áreas. A oferta do prêmio poderia, sim, indicar a quantidade de
recursos que acumulamos, mas sabemos que os tempos estão mudando e
que dinheiro já não é tão vital quanto conhecimento. Apenas no
dia dos experimentos que entendi a jogada.
Por
ironia, tivemos 501 candidatos aprovados, porque depois que as
defesas subiram um hacker ainda assim conseguiu invadir o sistema e
deixar seu “hi five”. Na palma da mão dele estava escrito “sorry
i'm late”.
Cheguei
com meus planos de pesquisa e pronto pra comunicar aos técnicos do
laboratório a exata sequência de procedimentos experimentais, mas
percebi que estava sendo ingênuo demais quando encontrei o Doutor
Pinkman com sua prancheta esperando dentro da minha sala. O
pragmatismo daquele homem frequentemente ajuda a liga, é verdade,
mas há momentos em que me pergunto se ele tem o mínimo de
imaginação. Enquanto não posso negar as contribuições dele, que
são incluvive melhores do que as minhas, não consigo me forçar a
gostar do sujeito.
- Doutor peçanha, sentimos sua falta na última reunião. Mais problemas domésticos, imagino. - ele começou com um tom ácido
- Desculpe, o que? - respondi atônito
- Sugiro que você controle o que sua filha anda publicando nas redes sociais. Sabe como é, poucos de nós conseguem ter uma vida doméstica saudável e é por isso que tantos optam por não ter nenhuma. Mas é importante que os membros da alta cúpula não sejam capa de revistas de fofoca pela nuvem.
- Entendo, entendo. Mas imagino que o doutor não veio até aqui pra me aconselhar sobre como lidar com a minha família. - respondi tentando esconder minha indignação
- De forma alguma. Vim aqui apresentar instruções pra nossa pequena pesquisa publicitárias. Estão aqui listadas.
Tomei
a prancheta e precisei aumentar o zoom da duração do procedimento
pra acreditar. Uma semana inteira! Com todos aqueles robôs e
assistentes qualificados, era difícil justificar uma coleta de dados
tão longa. Não para os padrões da liga, pelo menos.
- Certamente isso está incorreto. Apenas com meus recursos particulares eu já disponho de 15 robôs especializados nesse tipo de pesquisa e manejo de dados. Temos amplo equipamento pra realizar uma coleta robusta de dados em dois dias!
- Não com os procedimentos indicados. A ideia aqui não é coletar dados, Doutor peçanha. A ideia é fazer uso de todos os equipamentos e de todas as modalidades de pesquisa. O tempo de uma semana vai exigir a mobilização de um número maior de robôs e podemos garantir que os seus podem seguir realizando experimentos de suas pesquisas particulares. O comitê disponibilizará 30 robôs pra realização do processo em suas diversas etapas.
- Desculpe, eu sei que deveria ter participado da reunião, mas posso saber a razão disso?
- Concordamos em discussão que o segundo laboratório mais eficiente levaria 10 vezes mais tempo do que levamos pra realizar essas análises de dados. Vamos mostrar pra outros cientistas que não oferecemos apenas liberdade dos ignorantes com seus comitês. Nós também dispomos de amplos recursos e tecnologia superior pra execução de experimentos. A ideia é instigar pesquisadores que aceitam o peso das burocracias de suas instituições, mas não a constante indisponibilidade de equipamentos e a lentidão de coletas de dados. Queremos mostrar pra eles que não há necessidade abandonar linhas de pesquisa por circunstâncias tecnicas, porque a liga faz suas próprias circunstâncias.
- E suponho que também usaremos o tempo pra convencer os hackers a ficarem.
- Afirmativo.Alguma dúvida?
- Não, nada. Vou realizar experimentos com modulação minha, se você não se importar. Já que os recursos são tão abundantes, vou tentar coletar dados que me deixaram curioso há décadas atrás.
- Apenas se certifique de fazer um relato inflado do uso dos equipamento no texto produzido. Não precisamos de curiosidades sendo publicadas, então guarde seus dados para outro momento.
- Certo, estamos entendidos então.
- Estamos entendidos! Essa língua portuguesa nunca deixa de me parecer estranha! Um bom dia, doutor Peçanha...
Ele
saiu antes que eu tivesse a oportunidade de responder. Pra ser
honesto, isso me deixou contente.
Não
que eu esperasse que ele fosse ter interesse na minha pesquisa, mas
no fundo eu me sentia apreensivo por ter esse projeto sendo realizado
fora da liga. Claro que muitos pesquisadores fazem isso e que eu
pretendo registrar a patente na base de dados central, mas se
descobrirem a ideia é bem possível que roubem a ideia. E aí eu
perderia meu prêmio e adeus segunda chance. Um risco grande demais.
Os
hackers foram chegando e eu vi a quantidade de malas que eles
traziam. Praticamente todos já estavam recrutados, mas os
procedimentos precisavam continuar. Como se algum deles fosse ter
doenças comuns em idosos, todos os tipos de testes precisavam ser
realizados. Mesmo assim, eu me senti como um amante, escondendo suas
emoções e ações bem antes de ter seu enconro secreto.
Comecei
pelo último hacker a quebrar nossas defesas. Ele era potencialmente
um dos melhores hackers do mundo, embora ele estivesse tristemente
sem nenhuma mala.
E
os resultados dele me intrigaram. A atividade proposta era o
desenvolvimento de um pequeno aplicativo que automatizaria sequências
de procedimentos complexos. Em poucas palavras, o aplicativo deveria
produzir uma espécie de “rota mais curta” pra realização de
procedimentos de análise química dos diversos componentes de
amostras de sangue artificial. Era como o algoritmo do caixeiro
viajante utilizado pra traçar rotas em mapas, mas com rotas de
experimentos, comprometimento de equipamentos e tudo o que envolve a
análise. A atividade do cérebro dele apresentou picos quase
epilético por alguns segundos em quase todo o cortex cerebral, mas
depois se concentrou na região pré-frontal. Eu estava originalmente
me focando nas atividades da região de Broca, responsável pela
linguagem, mas ficou bem claro que a linguagem de programação não
é codificada como uma linguagem natural na mente dele. Então talvez
a chave pra realizar a interface comunicativa entre uma máquina não
era adaptar a máquina aos padrões complexos e ambíguos da
linguagem. O que eu precisava era do bom e velho treinamento! Depois
que decodificamos a modulação de informações nos neurônios, a
moda se tornou abandonar o treinamento. Mas a linguagem provou ser um
fenômeno absurdo. Quando mais eu estudava a estrutura do discurso
falado, mais me parecia que duas pessoas em diálogo só entendem uma
a outra por milagre! E eu simplesmente não conseguia fazer um
computador receber comandos de maneira consistente. Aparentemente,
milagres são coisa analógica...
Mas
aquele homem, identificado como “dc”, mostrou que é possível
que um ser humano fale fluentemente uma linguagem que não é natural
e, portanto, não é inerentemente ambígua. Pra um sistema de
comunicação direta entre cérebro e máquina funcionar, seria
necessário uma espécie de treinamento de lógica. Seria necessário
transcender Chomsky, ir além das fronteiras. E os programadores já
estavam fazendo isso a mais de 100 anos. Tentei conter minha euforia
e seguir com os procedimentos com outros participantes. Enquanto os
tempos de resposta e a intensidade da atividade naquela região
variou, a produção do código foi consistentemente independente da
região de broca na maioria deles. Minha mente foi longe, imaginando
como seria um ser humano que domina esse tipo de linguagem
“não-natural”, até que vi uma notícia péssima. Dc era um caso
grave de comorbidade. Creutzfeldt-jakob e Alzheimer ao mesmo tempo.
Ele estava a ponto de ter o cérebro totalmente degenerado por um
hipocampo ruim e prions assassinos. Um cérebro daquele ser perdido
era um absurdo, mas eu nós não tinhamos nenhum tratamento
definitivo pro Alzheimer. Eu poderia pelo menos substituir o líquido
cefaloraquidiano dele e curar a “vaca louca”, mas o homem
eventualmente se tornaria um cidadão qualquer com seu alzheimer que
não mata, mas também não deixa viver.
Sentei
na minha cadeira enquanto os dados eram coletados e armazenados nas
bases de dados pelos robôs. Fiquei rodando lentamente, considerando
se devia correr o risco de interferir com aquele estranho, até que
ele entrou na minha sala.
- Então é assim, seus robôs pesquisam por você enquanto você gira em uma cadeira como criança?
- Erm, desculpe, os sujeitos de pesquisa devem permanecer na sala de espera.
- Sim, sim, pra dar um passeio e ver os seus brinquedos. Cara, seus brinquedos não me impressionam. Eu quero saber qual é o problema comigo.
- Como? O que te faz pensar que há algum problema?
- Eu faço um controle do meu desempenho em produção de códigos e ele tem tido eventos de drástica diminuição de qualidade além de eu ter parado de melhorar. Tem algo errado com o meu cérebro.
- Bem, você deveria estar num estágio assintomático agora, mas receio ter más notícias pra você. Você tem duas doenças degenerativas diferentes. Enquanto dispomos de técnicas pra substituis seu líquor cerebral, o alzheimer ainda vai degenerar seu cérebro lentamente.
- Eu decodifiquei seu algoritmo de pesquisa, sabia? Eu sei que você está tramando algo. Os diários da luíza fazem menção direta às suas pesquisas paralelas.
Saltei
da cadeira e quase caí no chão. Aquele homem estava espionando a
minha vida. Quanto ele poderia saber sobre o que eu estava fazendo?
Eu não sabia o que sentir, na verdade. No fundo, parecia um alívio
que alguém pudesse saber do meu progresso, que eu pudesse não
esconder meu projeto de todos. Talvez ele soubesse, talvez ali
naquele momento, naquela sala, não houvesse segredos. Afinal, ele
não hesitou em revelar que sabia meus segredos logo de cara. Sem
rodeios, sem inserção das ambiguidades da linguagem. Mas no fundo
eu sentia como se minha casa tivesse sido invadida e queria esmurrar
aquele moleque. Sim, ele já devia ter uns 30 anos, mas hoje em dia
isso ainda é um estágio de infância, segundo nossos queridos
especialistas. Quem ele pensava que era pra acessar os diários da
Luiza? E eu, ousaria ler? Dc estalou os dedos.
- Você costuma parar assim do nada e fiquei pensando enquanto conversa? - ele perguntou
- Você espionou minha vida e achou uma boa ideia simplesmente dizer isso pra mim?
- Bem, espionei o bastante pra saber que você não se importa tanto com sua privacidade quando quer fazer parecer. O que você fez a respeito do seu alzheimer?
- Não posso falar disso aqui. Há... complicações éticas nesse caso.
- Bem, deve haver algum lugar com problemas de conexão por aqui, não?
- Sim, claro, mas eu tenho trabalho a fazer.
- Olha, se você quer mentir pra mim, pelo menos crie algo mais íntimo, alguma indisposição. Eu li o planejamento da sua pesquisa a caminho daqui, a partir de agora você tem quase 5 horas livres. E eu preciso confessar, eu já estou sem opções. Programar, hackear, é tudo o que me restou. As pessoas da minha família que restaram só fazem me irritar e eu já consegui me isolar até dos outros hackers. Eu escrevo coisas que ninguém lê, faço coisas que ninguém faz. Porra, nada me restou a não ser o meu cérebro. Não quero degenerar e sei que você me entende.
- Bem, eu pelo menos tenho uma família.
- O, grande família. Um filho viciado em dinheiro, outro em depressão e uma filha que tem medo de você. Isso sem falar na esposa que não aceita seus hábitos, não aceita seu trabalho ou sua personalidade e que só está com você por comodismo, mas no fundo deseja conhecer alguém “maduro” que a faça sentir a paixão que você nunca deu. Ela quer estar com alguém sem o peso de obrigação de casamento e filhos.
Eu
esqueci a sensação de ter verdades dolorosas jogadas no ar como se
não fossem nada. Como um membro do comitê de administradores da
liga, parece que as pessoas têm medo da honestidade, como se eu
fosse mentir. E minha vida pessoal, onde isso deveria acontecer, é
uma bagunça total. Metade das minhas interações com minha esposa
são conflitos, minha filha se tranca no quarto quando chego e
Emanuel! Desde que a namorada dele foi assassinada ele não fala uma
palavra. Se está fora da realidade virtual, está chorando e eu não
tenho nada pra dizer a ele a não ser que a vida não passa de uma
sequência de perdas e que nossos períodos alegres não passam
momentos em que esquecemos esse pequeno fato. Mas que tipo de pai eu
seria dizendo isso pra ele? E o que eu poderia dizer? Que a sociedade
está progressivamente vencendo a morte, mas que ninguém conseguiu
uma cura pro tiro na cabeça? Frederico fica cada vez mais rico e
cada vez mais distante. Aquele menino que veio de surpresa pra virar
nossa vida pelo avesso correndo pela casa e quebrando tudo cresceu de
repente. E começou a viajar pelo mundo, comprar, vender. Até
escreveu um desses livros que contam o segredo do sucesso. Ele teve
sucesso vendendo o livro, embora eu não saiba que benefícios os
leitores realmente tiveram. A úlima vez que o vi, ele estava na base
da liga fechando um acordo pra fornecimento de urânio pros reatores
suplementares. Ele tinha um sorriso estranho, um sorriso que não
conheço. E a verdade é essa. Perdi minha conexão com meus filhos e
eles flutuam à deriva pra longe de mim enquanto a tempestade ameaça
destruir meu casamento.
- Tem um bar aqui perto. Podemos ir lá e conversar em uma das salas. São bem isoladas. - falei com tom triste
- Surpreendente! - ele respondeu
- O que?
- Imaginei que você iria me expulsar daqui ou algo assim. Mas você ouviu todas as minhas ofensas, engoliu e ainda assim quer conversar comigo e me salvar.
- Não se engane, eu não tenho nenhum interesse especial em te salvar. Acontece que a verdade pode ser dolorosa, mas nunca é uma ofensa pra mim. E verdades, meu caro, estão me fazendo falta recentemente. Criamos uma liga em nome da ciência, do saber honesto. Mas estamos virando uma instituição com suas burocracias e hierarquias, onde pesquisadores medíocres chegam a cargos importantes por manobras sociais conseguindo favores. Tentei construir meu sonho aqui, tentei fazer a mágica da ciência. Isso somente pra ter uma porra de advogado que pensa que direito é ciência vir pra minha sala me dizer o que eu tenho que pesquisar!
- Para o bar então! - disse ele num tom de zombaria
Fomos
andando e ele foi na minha frente. De alguma maneira ele mapeou o
local e sabia onde era o bar simplesmente porque eu mencionei que ele
era isolado. E deduziu que o isolamento era tecnológico, porque foi
exatamente pro meio da cidade. Acho que ele pensou que teria bebidas
alcoolicas no lugar, especialmente quando percebeu que não se
tratava realmente de um bar.
- O que é isso? Onde é o bar? - ele perguntou visivelmente confuso
- É aqui. Você veio pro lugar certo. É só seguir o corredor.
Era
um prédio de dois andares e longo, cheio de salas apropriadamente
equipadas com as bebidas mais comuns e cilindros pra controle de
concentração de oxigênio. O que chamávamos de bar não passava de
um conjunto de salas de reunião onde alteravamos nossos cérebros
sistematicamente. A confusão dele era clara.
- Se você sabe tanto sobre as coisas, como é que nunca ouviu falar dos nossos bares? - perguntei
- Esse tipo de detalhe é filtrado pra fora dos relatórios. Não dá pra ficar prestando atenção em tudo, não há cérebro que aguente. E o meu já está fodido, então...
Chegamos
no meu cubículo preferido. Uma mesinha de madeira no centro com
cadeiras velhas faziam o lugar parecer menos high tech. Eu me sentia
jovem ali dentro, não se pelo fato de que tudo ali dentro foi
trazido por mim há quase duas décadas ou só por causa do oxigênio.
- Tá, que bebidas são aquelas no refrigerador? Vodka? - ele perguntou
- Aquilo ali é agua cafeinada. Tem diferentes concentrações. - respondi
- O quê? Eu pensei que essa porra tinha sido proibida!
- Não aqui. Não ligamos muito pra pressões coorporativas ou de ativistas. Se temos problemas de saúde, nós resolvemos e pronto. Não temos interesse em diminuir o desempenho do nosso trabalho eliminando a cafeína assim.
- E todo mundo concorda com isso por aqui?
- Bem, não. Mas quem não concorda apenas não bebe e pronto. Somos todos livres pra escolher que substâncias administrar em nossos corpos. Pessoalmente, acho que a maior contribuição que eu fiz até agora, além de uma velha patente que rendeu bastante dinheiro, foram esses cubículos, que se espalharam por quase todas as nossas bases pelo mundo.
- Então isso não é um bar, mas um lugar onde viciados se juntam pra consumir suas drogas preferidas e conversar?
- Bem, com essa definição formal que você deu, qual é mesmo a diferença? E não é qualquer droga que você acha aqui. São basicamente cafeína, oxigênio e alguns alicinógenos. Mas na minha só tem oxigênio e cafeína, que são minhas drogas preferidas.
- Sou só eu que acho que chamar oxigênio de droga é uma coisa estranha?
Sentamos
nas cadeiras e senti aquele velho desconforto de usar cadeiras mal
feitas. Um desconforto nostálgico. Ajustei o oxigênio dele pra 50%
e entreguei o respirador pra ele. Abri minha agua cafeinada com gás
e dei um gole enquanto ele respirava. Os olhos arregalados mostravam
claramente o efeito do oxigênio.
- What the fuck! - ele exclamou – cara eu me sinto bem demais! Como eu nunca tentei isso antes?
- E essa prática já é comum há uns 50 anos, cara. Antes da virada do milênio já tinha gente consumindo oxigênio. Aliás, não sei se mencionei, mas temos aqui barras hiper-calóricas que aumentam o efeito do oxigênio.
- Quero uma, por favor. E me dá a cafeína também!
Ele
levantou e foi deitar numa poltrona que fica bem ao lado da saída de
oxigênio. O sorriso dele me lembrou da primeira vez que testei essa
combinação química, depois de ler um artigo sobre crescimento de
insetos em ambientes ricos em oxigênio.
- Como você apareceu com essa ideia? Cara, isso é simples, mas é brilhante. To imaginando que isso ajuda muito no trabalho. Deve ser por isso que a tecnologia da liga é tão superior à do resto do mundo. Cara, isso é muito bom!
- Um dia eu encontrei um orientando meu, estudante de medicina, consumindo ritalina durante seu período como interno do hospital. Então pensei: preciso encontrar um jeito de melhorar o desempenho dele sem que ele fique viciado em remédios. Primeiro dei a ele a agua cafeinada, mas ele continuou consumindo ritalina. No último ano, dei um cilindro com oxigênio pra ele respirar toda manhã. Ele acabou trazendo o cilindro pro hostpital e criando o hábito de respirar oxigênio concentrado várias vezes durante o dia. Mas ele parou com os remédios. Então um dia eu estava com preguiça na cama e vi um cilindro de reserva. Decidi respirar e senti o efeito. Acho que eu nunca mais fui o mesmo depois dessa manhã.
- E isso ajuda com minhas doenças?
- Bem, os prions do seu liquor nós removemos com um nano filtro. Demora algumas horas e dói bastante, mas funciona. Então da doença da vaca louca nós podemos te livrar isso. Agora, com relação ao alzheimer, receio que isso possa até piorar sua situação.
- O que? Como? - ele perguntou removendo o respirador
- Bem, sabe os radicais livres? Então, eles são resultado da combustão de nutrientes dentro das suas células. Combustão, oxigênio, acho que você entende o que estou falando.
- Sim, mais combustão, mais radicais, mais danos às celulas.
- E alzheimer, por definição, é uma doença relacionada com os mecanismos moleculares de reparo dos seus neurônios. Ou seja esse oxigênio provavelmente vai acabar acelerando sua demência.
- Mas isso não parece ter te impedido. E você tinha alzheimer. O que você fez?
- Bem, é uma coisa bem experimental, talvez você fique confuso
- Eu sou grandinho, velho. Te garanto que consigo entender se você explicar.
- Bem, já ouviu falar das mitocôndrias?
- Aquelas que são transmitidas apenas da mãe pros filhos?
- Sim, que é usada em testes de maternidade e tudo. Então, elas são basicamente as “usinas” das células.
- Sim, já abri um esquema delas aqui nos meus óculos. O que elas têm a ver com a doença?
- Bem, elas têm DNA próprio e são “usinas” das células. Há quem diga que eles são hospedeiros nas células.
- E elas são danificadas pelo oxigênio excessivo, então?
- Algo assim. Mas pra resolver isso nós acabamos desenvolvendo uma técnica pra acrescentar mitocôndrias nas células. Com esse aumento, a carga de oxigênio de cada uma não fica tão alta.
- Então isso te protege do excesso de oxigênio, estou correto? Mas como pode te ajudar com o alzheimer.
- Pois bem, nós temos controle sobre o material genético das mitocôndrias. E graças aos nossos nanotecnólogos, temos controle dos tecidos em que as mitocôndrias serão “entregues”.
- Então você manda mitocôndrias mutantes direto pros seus neurônios?
- Não, mando pros astrócitos e elas entram nos neurônios através deles.
- Cara, isso é perigoso. Mesmo eu sabendo pouco sobre esse tema, sei que pode detonar os neurônios e isso não tem volta.
- Eu sei. E é por isso que eu não podia falar sobre o assunto em público. Você confirma que não tem ninguém interceptando nossa conversa?
- Tem um cara tentando, mas não deixei. O que você fez?
- Bem, eu passei por cima do comitê de ética e testei isso em ratos.
- E funcionou?
- Bem, acabou funcionando...
- Entendo. E você matou os pobres ratinhos. Bem, pelo que entendo, a liga não se importa muito com isso. Ja mataram até pessoas em pesquisas!
- O que? Pessoas? De onde você tirou isso?
- Adivinha, gênio?
- Isso não pode estar correto. Quem fez isso?
- Eu não dou informações desse tipo de graça, sabia? E você ainda não respondeu minha pergunta.
- Minha filha. Ela é defensora dos animais, trabalha com ecologia marinha.
- Bem, sinto de informar, mas ela sabe que vocêmatou alguns ratos. Alguém já passou essa informação pra ela.
- O que? Quem?
- Essa informação não é gratuita.
- Eu posso te pagar por ela.
- E porque eu iria querer seu dinheiro se já estou demenciando e vou morrer?
- Minha técnica funcionou e eu resolvi meu alzheimer com as micro-mitocôndrias
- Porque micro?
- Porque são menores do que as normais. Precisam ser pra entrar nos neurônios.
- Você... Você usou isso em si mesmo! - ele afirmou depois de alguns segundos de silêncio.
- Há alguns meses.
- Alguma coisa mudou?
- Sim. Os sintomas foram reduzindo e senti meu desempenho cognitivo ser restaurado. Na realidade, há momentos em que me sinto mais inteligente do que era anteriormente. Possivelmente uma combinação entre o elevado número de mitocôndrias e o uso constante de oxigênio concentrado. Porque elas foram postas ali pra fornecer dna para a síntese de proteínas de reparo, mas ainda desempenham a função de produzir ATP.
- Cara, você tá sentado numa mina de ouro! Puta merda, você vai ficar muito rico!
- Rico? Não, eu não quero mais dinheiro. E você mesmo já deve saber que hoje em dia o dinheiro não vale tanto quando um dia valeu. Afinal, você nem me perguntou quanto eu pagaria e já rejeitou minha proposta de comprar a informação sobre a minha filha.
- Sim, sim. Mas me diz, como você teve coragem de aplicar isso em si mesmo? Certamente entende o risco que correu, certo?
- Entendo sim. Por isso que conduzi tudo em segredo. Todos recomendariam que eu nunca fizesse isso. Recomendariam “prudência”, como se a premissa da liga fosse essa! Nós viemos aqui pela mágica, pela empreitada de realizar uma ciência livre. Estamos aqui nesse lugar outrora inóspito justamente porque ousamos quando outros se conformaram.
- E eu pensando que nunca encontraria ninguém remotamente parecido comigo nesse mundo!
- Você fez algo parecido? Conte como você se tornou um hacker solitário, quero saber um pouco da sua história. O que significa dc?
- Deathcreed. Meu nome é Deathcreed2020.
- Deathcreed? Pensei que era porque você é de Washington dc! Porque escolheu esse nome, afinal?
Ele
começou a operar seus óculos e alguns segundo depois o meu foi
desligado automaticamente, como se não tivesse mais bateria. Algum
tipo de precaução, imagino.
- Meu nome de batismo é Dwain Conrad Castro
- Entendo. E porque DeathCreed?
- Porque a morte é meu único credo. Inevitável e inexorável.
- E ainda assim você vem até aqui pedir que eu salve sua vida. Mas você valoriza ela a esse ponto?
- Tenho medo de demenciar, não de morrer. Até porque, eu poderia viver bem uns trinta anos com essa doença. Mas viver sem ser capaz de pensar, de criar, é viver uma vida miserável. Isso é tudo o que eu tenho, afinal.
- Você não tem família, colegas de faculdade, nada?
- Bem, minha família já está toda morta. Fui filho único e meus pais morreram em um acidente de carro. Na faculdade, não consegui nada além de problemas. Eu me recusava a usar os sistemas operacionais exigidos pela universidade e, mesmo com desempenho máximo em provas, as vezes ficava reprovado por isso. Certa vez, como vingança contra um professor, eu publiquei um vídeo que ele guardou muito mal criptografado em seu computador de casa. O imbecil gravou o sexo dele com uma professora casada do campus. E ele tinha fetiche por dominação, estava usando coleira e mordaça enquanto levava chicotadas. Fiz o vídeo rodas nos telões do prédio principal de Princeton com o cabeamento adulterado pra não conseguirem tirar o vídeo antes da gemida bizarra que ele deu com uma chicotada que levou. Isso combinado com o fato de que vazei todas as provas dele acabou me rendendo uma expulsão do curso de ciência da computação. E pra falar a verdade eu não tinha lá muitos amigos por causa da minha procrastinação. Quem começou comigo já estava formado e as pessoas pareciam ter um misto de pena e nojo de mim. Mas depois dessa eu acabei sendo contratado pra trabalhar como hacker e percebi como as pessoas que fazem isso são imbecis. Por algum motivo eu realmente pensava que pessoas criam sistemas operacionais personalizados, mas acabei descobrindo que não é bem assim.
- E o que tem de tão melhor nesse seu sistema?
- Bem, primeiro que meus algoritmos são todos caóticos, não lineares. Segundo que meu sistema operacional não tem nome e é identificado aleaoriamente como algum dos mais populares. Agora, quem entende que o nome do meu algoritmo é falso e tem acesso ao meu código, ainda tem que colocar meus blocos em ordem e entender o que eu pensei. A chave é usar sequências contra-intuitivas pra modular os processos e aí os outros vão seguir os caminhos comuns e cair nas armadilhas. Em poucas palavras, o segredo de ser um bom hacker é entender a computação de baixo pra cima, como e o que um computador pode fazer e trabalhar nesse nível mais fundamental. E também mudo meu código constantemente, de maneira que se alguém interpreta meu labirinto, até terminarem o sistema já foi atualizado. A minha heurística é toda estocástica.
- Não sou muito bom com computação. Mas se entendi bem, você literalmente codificou a loucura, fez um código contra-intuitivo, caótico, em meio digital, que é modelo de ordem e lógica.
- Sim. Tentei resumir, mas você condensou ainda mais. Ficou meio poético demais pra mim, mas acho que você entendeu a essência da coisa.
Minha
intuição disparou. O que aquele homem estava falando não era
claro, eu não entendia bem. Nunca entendi, pra falar a verdade. Mas
minha intuição me dizia que ele poderia criar uma ferramenta quase
tão estocástica quanto o próprio sistema de modulação do
cérebro. O código dele poderia ser maleável o bastante pra fazer
algo que eu não tinha pensado.
- Você já leu alguma coisa sobre neuro-interface? - perguntei
- Ah, eu estava esperando você fazer essa pergunta! - ele respondeu
- E eu estou esperando sua resposta
- Sim, eu já li – ele falou num tom meio desapontado – esperava que você ficasse mais surpreso.
- Bem, você parece ter planejado sua vinda até aqui bem o bastante. Já estou presumindo que você se informou sobre várias coisas e não vou entrar em detalhes. Quero sua ajuda pra tornar real um projeto meu. O projeto bem megalomaníaco, diga-se de passagem.
- Mais megalomaníaco do que essa “eternidade nervosa” que vocẽ está produzindo com as mitocôndrias?
- Eternidade? Eu só tratei o alzheimer!
- Bem, qual é o projeto megalomaníaco?
- Eu quero criar um sistema de interface homem-máquina que seja independente de input sensorial. Comunicação direta entre cérebro e máquina.
- O que? Isso é loucura! - ele protestou levantando da poltrona
- Exatamente!
Minha
mente estava acelerada, não sei se pela cafeína ou se pela euforia
da possibilidade. Se eu conseguisse colocar um sistema dessas
funcionando, ganharia todo o prestígio necessário pra resolver
todos os problemas. Eu seria um herói da liga!
- Isso vai dar errado – disse ele – mas não vejo porque não participar. Posso aproveitar e proteger suas informações, que estão bem expostas
- Quer ser meu hacker pessoal, então? E qual é o seu preço? Quer que eu use as mitocôndrias em você?
- Quero. Mas se algo der errado, me neuralize e ponto final.
- Neuralizar?! Como você sabe o que é isso?
- Você ainda faz essa pergunta? Enfim, eu tenho mais uma exigência. Você vai disponibilizar um cirurgião pra fazer o meu penis crescer em 4 centímetros.
- O que? Você está louco?
- Eu sei que os melhores cirurgiões do mundo estão aqui. Estique, troque, faça o que quiser. Eu saí com um cara há algum tempo e não me conformo com o fato de que o dele é maior que o meu. Quero um pau maior e meu cérebro reparado. Essas são minhas condições.
- Você é um cara estranho, sabia? Difícil saber quais são suas motivações maiores, ou se você tem alguma.
- Nem eu sei. E você, que motivação tem pra isso tudo. Quer deixar um legado ou algo assim?
- Eu só estou procurando uma segunda chance...
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