Constantino Augusto
Peçanha - 2075
Os detalhes eram
excruciantes e não paravam de chegar. A inexpressividade robótica
dos jornalistas foi desconstruída e o horror em seus olhos mostravam
o horror daquela situação. Tudo queimado, calcinado, despedaçado.
Fumaça pra todo lado. O medo já tinha acabado e as imagens naquele
momento mostravam outra coisa: apatia. Pessoas sentadas no meio fio,
envolvidas em cobertores e com copos nas mãos olhando pro chão, de
alguma maneira ausentes daquilo tudo. O tráfego de informações
estava sobre o controle da liga há alguns anos e ninguém
conseguiria provas do envolvimento de nenhum membro, mesmo que seja
óbvio que esse tipo de tecnologia só é produzido por lá. Mas como
me disseram certa vez, não importa o que você faça, se pro bem ou
pro mal, o que determina as consequências é o seu poder e nada
mais. E quem tem poder pra se erguer e punir a liga agora? Por acaso
existe algum magnata poderoso que ainda não tenha relações
comerciais intensas com a liga? Por acaso existe governo com
inteligência e tecnologia pra enfrentar esse grupo de cientistas
que, no fim das contas, já se tornou uma nação? Se foi a época em
que o número de soldados faz a diferença em uma guerra. Temos robôs
de guerra. E está indo embora o tempo em que você pode usar
dinheiro pra destruir seu inimigo. Não um inimigo como a liga, pelo
menos, que é irritantemente autossuficiente. Não existe bloqueio
econômico que possa entravar o progresso desse monstro que ajudei a
criar, não há mais nada que pare a ciência feita titã.
Conhecimento, nos dias de hoje, é a única forma de poder que
restou. E é praticamente apenas na liga que ele é produzido com
infra-estrutura que viabilize o avanço tecnológico rápido. Até o
Marsídio, esse mineral aberrante conseguido em marte, temos em
abundância pra pesquisa. Qualquer cientista que queira ver seu
trabalho valorizado e realizado sem as limitações econômicas e
burocráticas comuns acaba cedendo e indo pra liga. E já morreu a
geração dos reacionários.
Não sei se o embrulho no
meu estômago era porque ajudei a criar a liga, se porque no fundo
ainda me sinto como parte dela, ou se era por saber que foi meu filho
a usar essa arma. Vendo aquelas pessoas atônitas, nada passava pela
minha cabeça a não ser “Isso é tudo culpa minha”. Culpa minha
por ter dado mais valor a ideais idiotas do que à minha família e
deixado meu filho se perder pelo mundo. Culpa minha por ter tido
ideais radicais demais, que por algum milagre as pessoas decidiram
seguir, e que resultou nessa abominação.
Normalmente eu deitaria
minha cama, ligaria meu concentrador de oxigênio colocaria minha
emoções sob controle. Em último caso, usaria um dos diversos
métodos pra supressão de respostas emocionais. Mas, paradoxalmente,
minha segunda infância me tornou totalmente artificial e ainda assim
muito mais espontâneo. Minhas emoções ficaram fortes, como se na
reconstrução alguma coisa que faltava em mim tivesse sido
reconstruída de maneira apropriada. Finalmente eu estava me tornando
mais parecido com aquele arquétipo que a Luíza queria!
- Já te disseram que
você é um chorão? Cara, você parece que saiu de algum filme! - Luíza disse
- Tá todo mundo morto,
Luíza. - falei inconfortavelmente – Olha só aquilo!
- Sim, sim, mais uma
atrocidade da liga. Todo mundo sabe que eles estão criando essas
armas absurdas e destruidoras. Mas isso me deixa revoltada, não com
vontade de chorar.
- Bem... É complicado...
- respondi limpando o rosto
O menino voltou com o
traje cuspindo fogo. Dessa vez o fogo não ia na mesma direção que
ele, mas para trás. Ele estava sendo perseguido por um homem,
possivelmente um viciado que tomaria a roupa dele. Eu não podia
deixar aquilo acontecer. Não, aquele menino não podia acabar
virando mais um monstro ou viciado sem esperança. Não quero que ele
seja mais uma criança abandonada à própria sorte, se forjando por
valores violentos e degradantes pra se adaptar a esse mundo doente.
Não, esse menino é esperto! E ele parece tanto com o Frederico!
Esse meu filho foi um
acidente mágico. Nascido em 2014, ele foi o acidente que acabou
salvando o namoro meio disfuncional que eu e Luíza tínhamos. Quando
ele era pequeno nós ainda estavamos nos formando, ela terminando o
mestrado e eu no meio da minha graduação. Tudo conturbado, tudo
limitado, mas nós conseguimos. E passar tempo com ele, brincar com
ele, lutar pra comprar um brinquedo, era um propósito que unia a
todos nós. Eu sinceramente não sei o que aconteceu com ele. Nós
dois éramos presentes na época de infância dele, fizemos o nosso
melhor. Éramos jovens e inexperientes, mas fizemos melhor com ele do
que com os outros dois que vieram apenas mais tarde, quando já
estávamos envolvidos como trabalho até o pescoço. No momento
socialmente aceitável, quando todos diziam que estávamos prontos
por termos dinheiro, aquele apartamento enorme, foi precisamente onde
mais falhamos. No ímpeto de prover bens materiais, acabamos
esquecendo o mais importante: presença, atenção, segurança. Luíza
percebeu isso muito antes de mim, mas já era tarde demais. Letícia,
minha menininha, já não falava comigo ou com Luíza e não dizia os
motivos e Emanuel já tinha saído naquela jornada estranha pelo
mundo. Pensávamos que era bom, porque ele saiu da depressão em que
estava antes, mas ele nunca mais voltou, fez absurdos e acabou se
tornando um genocida. Mas e com o Frederico, o que fizemos de errado?
Quando nos tornamos ausentes, ele já tinha seus 18 anos, já tinha
ido embora pra faculdade. Mas ele também foi se afastando lentamente
e mais ou menos na época em que Emanuel ficou deprimido ele foi
embora do país e continuou se comunicando apenas com Letícia.
Talvez tenha sido justamente esse senso de impotência e fracasso que
tenha desgastado o casamento. Ou talvez tudo tenha sido um enorme
equívoco, uma união de pessoas que nunca foram compatíveis de
verdade, mas que se cruzaram ao acaso pela estocasticidade da vida.
Mas eu queria uma segunda
chance, já que tudo na minha vida estava recomeçando. Eu queria
tomar coragem e falar com meus filhos, e dizer que os amo. Dizer que
fiz tudo errado, que nunca passei de uma criança grande, mas que
isso não significa que nunca os amei. Que quero compensar tudo, que
quero desfazer todos os meus erros e finalmente ser um pai. Mas
naquele momento tudo o que passava pela minha cabeça que aquele
menino também não teria pais. Mais uma criança desamparada, mais
uma criança aprendendo que a vida não é gentil. E justo eu, que
prometi que lutaria bem das humanidade com especial ênfase nas
crianças, acabei esquecendo todos os meus ideais com o passar dos
anos. Mas eu já era jovem demais pra ficar inerte, então levantei e
fui em direção à saída. A porta tinha trava eletrônica, então
não tive que me preocupar com abrir a porta.
- Espera Tino, onde você
tá indo? Ficou chateado com o que eu falei? Olha, desculpa, eu faço
de tudo pra tentar entender as pessoas da sua época, mas a verdade é
que eu não entendo como as coisas eram e só sonho com um passado
mágico. É fácil sonhar, sabe? Quando você nunca vai de fato
voltar no tempo pra verificar que suas crenças não se aplicam.
Olhei pra ela e vi mais
uma criança perdida. Onde estariam os pais dela? No fim das contas,
eles não eram tão diferentes de mim. Trabalharam e trabalharam pro
bem dos seus filhos apenas pra descobrir que estavam fazendo tudo
errado tarde demais.
- Eu vou salvar aquele
menino. Ele não vai ficar largado na rua, crianças não podem ficar
largadas assim
- O quê? Você está
chateado comigo ou não?
- Você me falou a
verdade, Luíza, estou chorão como uma menininha. Não pense que
você pode me ofender falando a verdade. Eu não sou assim. Mas
aquele menino, ele vai perder a roupa que acabei de dar pra ele de
presente. E se ele também perder a esperança?
- Tino, é sério, não
se mete com esse menino. O pessoal que é dono dele é barra
pesada...
- Dono? O menino por
acaso é um escravo? Eu não tenho medo de bandidos, eu tenho meus
contatos também!
- Que contatos? Polícia?
Eu não iria falar com eles sem pelo menos alguma proteção
robótica, tem que tomar cuidado com esses traficantes.
- Como você sabe essas
coisas?
- Todo mundo que mora
nesse lado da cidade acaba sabendo, ué. Aqui a lei quem dita é essa
quadrilha e não tem polícia que ponha rédeas nisso, porque eles
são inteligentes.
Pensei em chamar o Creed,
mas não consegui. No fundo eu queria culpar ele pela morte da Luíza,
como se as ações dele não fizessem total sentido na época em que
vivemos. Os argumentos dela estavam corretos, ele espionar a vida
dela pra encontrar um momento ótimo pra eu conversar faz sentido.
Tudo é filmado, interpretado e registrado, a vida se tornou um
enorme reality show. Tudo o que ele fez foi agir naturalmente e lidar
com as informações da forma que fazem hoje em. Ele não tinha como
adivinhar que ela olharia na minha cara e conseguiria extrair
informações com aquele sexto sentido que ela tinha e também não
tinha como prever que ela reagiria como reagiu. E certamente não
poderia prever que ela interromperia tratamentos pra morrer por
causas naturais depois desse choque. Mas se não fosse ele, seria
outro. Ela era uma celebridade, a vida dela era sempre monitorada e
mais cedo ou mais tarde ela perceberia isso.
Mas nada tirava da minha
mente que ele poderia não ter monitorado a vida dela. Até porque,
eu nunca pedi isso pra ele. E no fundo eu sentia que se ela não
tivesse passado por isso eu teria tempo pra conversar com ela e
convencê-la, mesmo que apelando pros nossos filhos, a aceitar o
procedimento e lutar pela nossa família. Ficou enraizada em mim a
idéia de que tudo poderia ter sido como eu sonhava. Até porque,
Emanuel e Frederico aceitaram a reconstrução e Letícia conseguiu a
reconstrução dela por conta própria, então, de um ponto de vista
biológico, tudo estava reconstruído. Só faltava nossa matriarca
voltar e acolher todo mundo em seus braços. Mas Creed apareceu e me
falou a verdade. E ela viu essa verdade nos meus olhos e se sentiu
violada. Como chamar ele agora pra pedir informação depois de todas
as atrocidades que falei pra ele e depois de reduzir nossa relação
a manutenção no endocomputador e na renovação dinâmica das
mitocôndrias?
Tentei levantar, mas meu
corpo não respondeu como eu esperava. Perdi o equilíbrio e logo
recebi o viso nos meus óculos. Meus níveis calóricos estava
perigosamente baixos e meus bloqueios de notificações metabólicas
foram quebrados pela emergência. Sem perceber, eu estava sem comer a
três dias. Deixei todas as minhas barras calóricas em casa. Depois
de todo esse avanço e transhumanização, depois de vencer a
velhice, o que me parou foi a fome!
- Tudo bem contigo, Tino?
- Sim, só estou com
fome, aparentemente.
- Aparentemente? Você
bloqueia sua sensação de fome?
- Atrapalhava meu
trabalho, essa urgência diminui minha concentração.
- E você nunca ficou
doente?
- Não. Temos barras
calóricas que fornecem basicamente tudo o que o nosso organismo
precisa nas proporções mais eficientes.
- mais saudáveis, você
diz?
- Não, a eficiência é
cognitiva. Comemos pra melhorar o desempenho cognitivo e isso nem
sempre significa o mais saudável. E se algum dano ocorre, basta
revertermos ou substituirmos o órgão em questão. Geralmente
fígados e estômagos são descartáveis. Mas não tenho nenhuma
barra aqui.
- Quer dizer que você
vive comendo tipo uma comida de astronauta?! Que deprimente, tino!
Vou te fazer alguma coisa de verdade pra comer.
Eu não tinha muita
escolha, então reativei meus sinais sensoriais e logo caí no sofá
cama dela. Eu estava com tão poucas calorias que meu cérebro
simplesmente me derrubou. Fiquei tonto, desorientado e extremamente
ávido. Reagi como um cão de rua quando senti o cheiro do bife que
ela estava fritando com curry e pimenta, mas me controlei até ele
ficar pronto. Ela serviu basicamente dois pães com carne pra mim,
como bastante gordura, proteína e carboidratos. E eu senti, depois
de anos, aquela alegria de comer quando com fome. Uma que eu esqueci
primeiro quando Luiza me fez criar um plano de alimentação que não
em deixava sentir esse nível de fome. E que, ainda por cima, apaguei
do meu repertório ao ativar o bloqueio a “anestesia focada
permanente”. Com o tempo você vai esquecendo que não passa de um
animal como qualquer outro.
- Eu amo exatamente esse
tempero. É o meu preferido – falei depois de dar um belo gole na
agua cafeinada que encontrei ao lado do sofá-cama.
- Eu sei, eu li a sua
biografia
- O quê? - perguntei
atônito
- Tudo bem, na verdade a
biografia é da Luíza, mas ela menciona que fazia isso pra você. E
eu comecei a fazer igual algum tempo atrás depois de ler.
- Nossa, seria estranho
se fizessem uma biografia minha sem eu saber e comigo vivo, não?
- É, eu acho. Mas tem
tanto livro saindo pro aí que é seria bem capaz de você nunca
saber desse.
- Não, eu saberia. Se
estivesse nas nuvens eu saberia.
- Ah, esqueci, a liga vê
tudo! Mas você não está aposentado?
- Deixa isso pra lá.
Você já estava pra fazer isso ou fez só porque eu gosto?
- Fiz porque você estava
falando da sua fome como é descrito no livro. “De súbito, como se
no instante anterior tudo estivesse perfeitamente bem, a fome dele
chegava, e ele parava tudo o que estivesse fazendo pra comer, como se
tivesse um botão de fome que só era acionado quando ele estava com
muita fome” - ela disse lendo a citação em seus óculos.
Meu estômago embrulhou.
Eu já estava terminando o último pão e continuei comendo com a
mesma teimosia da minha juventude. Mas mastiguei devagar e engoli com
esforço, porque minha garganta parecia mais estreita. Lembrei
daquele cheiro que se espalhava pelo nosso apartamento minúsculo
quando ela cozinhava pra mim. De uma vez que ela fez lasanha
bolonhesa com esse mesmo tempero que eu sempre amei, mas decidiu
colocar maçã no meio pra não desperdiçar e ainda assim ficou uma
delícia. O aperto no peito era pelo passado perdido, pelos momentos
bons que não voltariam mais. Quando tínhamos menos coisas e mais
problemas foi o período mais feliz. Conforme fomos vencendo as
limitações do começo, ironicamente, tudo foi piorando. Eu queria
fazer como alguns e pedir uma realidade virtual feita sobre medida,
entrar nela e viver eternamente o sonho de voltar no tempo. Mas
sempre que eu sonhava com ela nas minhas noites desconectadas eu
acordava em desespero. Algo dentro de mim quebrou e voltar no tempo
não seria suficiente pra me fazer sentir aquela felicidade
novamente. Algumas coisas, descobri, quando quebradas não têm mais
conserto.
- Más lembranças? - ela
perguntou
- Não, pelo contrário.
Ótimas lembranças. Eu que dei um jeito de torná-las um tormento. É
o preço que você paga por pensar demais.
- Acho que sei como é.
Aquele trem onde nos encontramos era onde nos escondíamos juntos, eu
e o Fernando.
- Seu ex?
- É. Só passei bons
momentos lá, mas lembrar deles hoje em dia é doloroso. Quando eu
vou ali eu fico pensando se ainda é possível você ter uma relação
nesse mundo. Com todo mundo querendo receber tudo, toda a atenção,
todo o amor, quase não restou quem seja capaz de dar essas coisas.
Só tem os indulgers mesmo, eu acho.
- O que? O que é isso?
- É tipo um grupo de
prostitutos, algo assim. Pessoas que, mesmo nesse mundo louco em que
vivemos, saem por aí satisfazendo anseios dos outros. Eles nem
cobram nada, sabe? Simplesmente chegam até a pessoa, fazem todas as
vontades dela e daí vão embora. Já li vários relatos de encontros
com eles. Fazem todo tipo de loucura e fantasias que as pessoas têm,
mas o que eles oferecem que todo mundo quer mesmo é atenção
incondicional. Eles se desconectam da nuvem, tiram os óculos e se
fecham num quarto com você como se nada importasse além de você.
Geralmente eles frequentam os plasmas, sabe onde nos conhecemos?
- Engraçado, eu lembro
de uma entrevista muito antiga, coisa da década de 50, sobre algo
parecido.
- Não é tão antiga
assim, então!
- É sim. 125 anos!
- Do século passado! É
escrita, então?
- Não, é um vídeo
mesmo. Com um autor que eu amava. O jornalista perguntou pra ele
sobre uma preocupação que tinha na época, de que o ser humano se
transformaria em algo como só mais um tijolo na parede, sem vontade,
sem voz. Eles não imaginavam que o que aconteceria seria justamente
o contrário: que o muro cairia e que cada tijolo iria querer ser um
muro inteiro. Eles viviam ditaduras e centralização porque os meios
de comunicação eram centralizados.
- Mas o que isso tem a
ver com o que eu disse?
- É que não terminei. A
resposta dele foi espetacular. Ele disse que se surgir uma sociedade
com esse nível de deturpação, surgiria uma reação. Que isso não
é natural à psiquê humana, então surgiria algum movimento na
sociedade pra se contrapor violentamente. Esses indulgers que você
menciona parecem uma reação contra uma cultura em que todo mundo
quer ser a estrela, o especial, o centro das atenções. Um fenômeno
previsto de maneira indireta a tanto tempo atrás! Ah, que saudade da
minha época filosófica...
- Mas ele previu o
contrário. Ele errou!
- Não, ele não previu
isso. Quem previu foi o repórter. Ele apenas respondeu o que
aconteceria se a previsão do repórter se concretizasse. É um
mecanismo de equilíbrio a lógica dele. Que funciona pra ambos os
lados.
- Nossa, você parece
melhor. Passaram as lembranças ruins?
- Ah sim, estou lembrando
de um período bem conturbado da minha vida e ele também se
inverteu. Lembro de tudo com carinho agora. Enfim, preciso ir. A
energia já está suficientemente metabolizada e eu preciso ir.
- Mas porque, onde você
vai, Tino?
- Eu vou salvar aquele
menino.
- O que? Só vai se eu
for contigo! - ela levantou o tom de voz – você vai falar bobagem
e acabar envenenado. O veneno deles acaba até com sangue artificial,
sabe?
Gostei do fato de que ela
quis se fazer de guardiã. E mesmo que eu estivesse equipado com o
sistema de defesa mais avançado de defesa, quis ter meu momento
“indulger” e deixar ela ser minha heroína. E fomos descendo por
aquela escadaria estreita, íngreme e escura até chegarmos na rua,
com aquele cheiro estranho. Ele ficou muito mais incômodo com minhas
respostas sensoriais reativadas. Como se o lugar fosse realmente
imundo, apesar de parecer perfeitamente limpo. Uma sensação
realmente estranha.
- Você tem certeza
disso? - ela perguntou mais uma vez
- Tenho toda a certeza
que eu jurei nunca ter sobre nada nessa vida.
Ela fez um sorriso
diferente, como se estivesse achando minha fala estranha. E, pensando
bem, foi bem estranha mesmo. Antes que eu pudesse pensar sobre
qualquer coisa, o menino chegou sendo arrastado pelo homem que o
perseguia. Era tão pequeno que toda a sua luta não era suficiente
pra ajudá-lo a se livrar de apenas um braço de seu captor, mas ele
não parecia disposto a desistir.
- O moleque roubou isso
de você? - perguntou o homem parecendo não se importar com quem eu
era
- Não. Eu comprei e dei
de presente ele.
- Viu? Hablei pra tu que
foi de presente!
- Cala a boca, pivete,
que não to com paciência. E você, moleque, é algum tipo de
playboy bom samaritano ou o quê?
- Sou um cidadão
preocupado. Quero que você me leve até o seu chefe.
- Meu chefe? Moleque, meu
chefe é minha nove milímetros!
O homem puxou uma pistola
bem ali no meio da rua. Apontou pro meu peito e ideias de combate
começaram a tomar conta da minha mente. Lembrei de todas as técnicas
de desarme que aprendi em realidade virtual enquanto aprendia swahili
e trocava de corpo. Mas decidi usar intimidação invés de agressão.
Em um movimento bem calculado que mal consigo descerver, movi a
pistola dele na direção do meu braço direito e ele disparou. A
pistola não fez som algum e senti a bala atravessando meu braço
porque, brilhantemente, eu tinha deixado esse tipo de resposta
sensorial ligada. Em segundos o sangramento já estava estancado e
meus óculos mostravam a barrinha de progresso dos reparos no meu
tecido. O homem olhava pro meu braço expressando assombro enquanto
se comunicava com alguém usando os óculos. Se eu ainda falasse com
o Creed, talvez optasse por interceptar a ligação, mas dessa vez
decidi me arriscar e agir por puro instinto. Ele largou o moleque e
guardou a pistola. Vi o menino correr e se embrenhar em algum tipo de
tubulação em poucos segundos como se fosse sua rota usual de fuga.
- Então você não é
bem um moleque, não é? Venham comigo, os dois.
- Não, Tino, vamos
embora. Esse cara é perigoso, é sério, vamos embora – dizia
Luíza por mensagens que não paravam de chegar nos meus óculos
- Constantino, aqui é
Creed. Desculpe te contatar, mas receio concordar com sua nova
companheira de jornada. Você está numa rota muito perigosa.
- Que foi, está me
espionando agora? - falei em voz alta
- O que? - perguntou o
homem
- Quer que eu me mate
também, é isso? Quer me lembrar de como sou uma criatura analógica
num mundo digital? - gritei
- Você nunca foi uma
criatura digital, cara. Fica aí repetindo os ideais da Luiza como se
fosse seus, mas não são. Você endeusou ela desde o momento em que
ela faleceu, mas não esqueça de como ela te fazia se sentir
miserável e insuficiente!
Meu sangue ferveu e eu
senti uma vontade estranha de destruir alguma coisa. Especialmente
porque o que ele disse era verdade, mas, ainda assim, eu sentia raiva
a cada palavra que chegava dele. Talvez minha raiva fosse de mim
mesmo, ou talvez do fato de que o mundo mudou e não acomodava mais
ela. Difícil discernir, porque eu parecia sentir aquela raiva
adolescente fundamental que, no fim do dia, não tem nenhuma causa.
Ela é canalizada à posteriori. E eu estava com cada vez mais
clareza da direção pra onde a minha seria direcionada.
- Nos falamos mais tarde,
Creed. Se você estiver errado, nos falamos mais tarde.
- Quem é Creed? - Luíza
perguntou
- Não se preocupe com
ele.
O homem parecia não se
importar com a nossa conversa. Ele passava a sensação de ter tido
uma vida bem difícil que o deixou daquele jeito, parecendo incapaz
de esboçar um sorriso ou ser amigável. Só pela reação da Luíza,
era possível deduzir que ele tinha fama ali na região. De alguma
maneira, um homem armado e perigoso não era detectado por toda a
tecnologia da informação. Eu costumava pensar que com todo o
monitoramento o crime seria progressivamente erradicado, mas ao que
tudo indica ele ficou apenas mais sofisticado. Atividades ilegais, eu
descobri, sempre se mantêm um pouco mais sofisticadas do que
sistemas de vigilância e punição e os seres humanos sempre
encontram uma saída pra continuar seguindo suas tendências
destrutivas. Andamos por corredores que mais pareciam labirintos e
Luíza parecia cada vez mais assustada com a situação. Pra falar a
verdade, não entendi muito bem porque ela continuou me seguindo se
ela poderia dar meia volta e ir embora a qualquer momento. Bem,
talvez não pudesse. Que pessoa que vive fora desse mundo do crime
realmente entende como ele funciona, afinal?
- Miguel está pronto
para recebê-los, por aqui – disse o homem
A parede se abriu, numa
daquelas antigas portas escondidas, revelando uma sala que parecia um
show de aberrações. Partes de animais a pessoas penduradas pela
parede e artefatos tecnológicos barbáricos em amostra. Tinha até
um neuralizador dos primeiros modelos de uso individualizado idêntico
aos utilizados na Grande Guerra. Tudo ali dentro parecia
especificamente planejado para intimidar pessoas, mas no fim das
contas apenas me deixou com mais raiva. Era esse tipo de psicopata
que tomava contas das crianças por ali.
- Bem vindo à minha
humilde residência – disse Miguel, sorrindo com seus dentes de
ouro – pro favor, sente-se
Luíza congelou com as
costas na porta. Parecia estar em pânico e reconhecer o homem, mas
eu já estava desligado demais da sociedade pra entender a situação.
Felizmente, ele também não entendia a situação em que estava,
então estávamos todos dando tiros no escuro.
- Vou me sentir em casa,
então – falei pra mostrar que o lugar não me intimidava.
Quando dei meu segundo
passo, meus óculos detectaram um braço robótico apontando uma arma
na minha direção e imediatamente meu endocumputador passou a
informação pro meu cérebro. Foi tudo muito rápido e bem diferente
do que eu previa com base nas simulações. Fiz uma acrobacia e me
apoiei todo o meu peso no braço esquerdo sem muito esforço pra me
esquivar da mira da arma, mas Miguel se aproveitou disso pra me
acertar com um dardo poli-venenoso e eu caí no chão. Me levantei
com dificuldade enquanto meu sangue era filtrado e o veneno ia
pingando pra fora de mim pela minha mão sem que eu pudesse controlar
o fluxo. A mistura de venenos era tão poderosa que meu sistema
estava trabalhando em eficiência máxima e ainda assim eu precisei
me sentar e esperar dois minutos pra todo o veneno sair. E mesmo sem
o veneno, continuei me sentindo mal, porque acabei desidratando meu
corpo no processo de eliminar as toxinas. O homem me ofereceu agua,
mas eu não estava mal o bastante pra aceitar agua de uma pessoa que
acabou de tentar me envenenar.
- O senhor desculpe as
minhas medidas de precaução. Acontece que eu precisava descobrir se
você realmente é quem meu sistema de identificação facial disse.
Soube que você tinha saído pelo mundo pra curtir a vida, mas não
imaginei que isso significaria vir pra esse buraco comer uma versão
refeita da sua esposa. Mas devo reconhecer, é um brinquedo tentador,
essa aí. Mas vamos direto ao assunto, o que você quer no meu
território?
- Seu território?
- Sim, meu território,
minhas leis, minha gente.
- Eu estava passando por
aí e esbarrei em um menino que me lembrou meu filho quando operava
uma dessas camisetas públicas. Esperto, o moleque.
- Ah, já entendi. Você
é mais um daqueles velhos pervertidos e quer levar uma criança pra
abusar. Más notícias, cara. Nós aqui protegemos os nossos e isso
inclui não deixar que nossas crianças sofram esse tipo de abuso.
Compra uma porra de robô, seu doente!
- Você me acusa de ser
um pervertido, mas treina crianças para serem traficantes e morrerem
aos seus trinta anos de idade por overdose. Entendo que pessoas como
você só consigam ver perversão no mundo, porque imundice é tudo o
que você tem pra projetar, mas minhas motivações são bem
diferentes do que você disse. Eu fiz muita merda na minha vida,
cruzei muitas linhas e não posso mais desfazer os erros do passado.
Mas quando vi essa criança abandonada pelas ruas, pensei que poderia
tentar mais uma vez. Adotar o menino e providenciar pra que ele viva
em um lar e que receba educação adequada.
- Caralho, então é
verdade que você é viadinho assim? Eu li naquela biografia e não
quis acreditar. Seja como for, o moleque não está à venda. Quer
fazer caridade, adote uma criança lá pro norte do país, onde elas
nascem como filhotes de coelho. Minhas crianças são minha família
e não vendo elas pra nenhum velho tirar seu peso na consciência.
- Tudo está a venda,
caro Miguel. A questão é o preço.
- Bem, como você pode
ver, dinheiro não é um problema pra mim. Essas crianças são
lucrativas.
Senti ódio, queria matar
ele ali mesmo, mas meu corpo não responderia bem com aquele nível
de hidratação. Acabei decidindo comprar o homem e deixar o conflito
pra outro momento, talvez mais planejado.
- Com essa reconstrução
barata, me surpreende que você venha me dizer que não tem problemas
com dinheiro. Você me parece um homem ambicioso e já deve entender
que os eixos do poder estão mudando, não é?
- Sim, não há como
negar que a liga mudou tudo o que entendíamos sobre poder. Hoje nós
sabemos que ciência é poder em sua essência, poder sobre a
natureza e sobre todas as pessoas sem conhecimento. Mas não estou
muito interessado e receber aulinhas e adquirir o poder do
conhecimento, velho. Eu tenho outros planos.
- Não tenho tempo pra
discutir demais. Ofereço uma reconstrução completa, com sangue
decente e uma vaga de segunda infância no departamento de defesa da
liga.
- O que? Você
enlouqueceu? Tudo isso por causa de uma porra de um moleque? Os pais
dele eram só dois drogados, não tem nada de especial nele!
- A oferta não vai ficar
de pé por muito tempo.
- Eu não confio em você.
Se você pode me oferecer tudo isso só por uma criança, porque você
não simplesmente leva o moleque embora a força pra África central?
- O menino só conhece
esse lugar e só respeita as regras daqui. Se eu pretendo educar esse
menino, pelo menos no começo vou precisar exercer a sua autoridade
sobre ele, porque também não sou nenhum educador exemplar. E eu
também quero essa sua lança aí pra analisar o DNA dela.
- O que? Cara, é melhor
você não estar de sacanagem comigo?! Eu tenho contatos!
- Faço contato com a
liga agora pra passar sua identificação. Eu recebi esses recursos e
já não preciso deles. Só você trazer o moleque e explicar que ele
tem que me obedecer senão ele vai se ver contigo. Eu mesmo lido com
questões legais e adoção.
- Cara, você está
falando sério mesmo? Vai adotar essa criança?
- Sim, é sério.
- Você é estranho, já
te disseram isso? - disse ele enquanto se movia desconfortavelmente
em sua cadeira
- Sim. É o que me faz
eficiente. Mas então, temos um acordo?
- Olha, é melhor o meu
hacker estar certo sobre você. Mato aquele moleque se isso der
merda. Temos um acordo sim, mas vou ter que encontrar o Juan. O
menino tem o hábito de se esconder em buracos e sumir por aí.
Esperem na minha boate. Soube que tem dois indulgers por lá, libero
seu brinquedinho pra entrar lá também. O nível á plasma azul e
imagino que vocês nem vão sentir o tempo passar.
Olhei pra trás e vi que
a Luíza já não demonstrava mais medo. Parecia surpresa, talvez um
pouco confusa, mas o que realmente saltava aos olhos era a vontade.
Ela queria ir naquele bar e eu tinha que esperar de qualquer maneira.
Fiquei pensando sobre o que o hacker dele teria falado. Talvez ele
tenha recebido informação falsa do Creed ou talvez só tenha tomado
tempo pra interpretar as informações sobre minhas aparições
públicas pra entender o que os jornalistas queriam dizer quando
escreveram que “Para alguns danos causados pelo tempo, não há
ciência que os desfaça”. As pessoas esperam que eu seja só mais
um velho enlouquecido tomando decisões aleatórias como essa, como
se eu já tivesse perdido toda a minha capacidade de planejar e
executar planos de ação. Minha má reputação, imagino, foi o que
me ajudou naquela situação.
- Entro em contato com
vocês por lá. Hugo vai levar vocês até o bar e dar a entrada da
menina – ele disse obviamente querendo tomar tempo pra considerar
aquela situação
- Mark, na escuta?
Mark?
-
Senhor Constantino, na escuta. Como posso te ajudar?
- Quero código
laranja/marrom 2050 pra esse homem. Está vendo os dados dele?
-
Sim, estou vendo. Confirma que é 2050?
- Sim, mantenha o
transporte em prontidão. Quando eu der a autorização, o código já
pode ser executado.
- Comandos secretos e
encriptados, é? - perguntou Miguel
- Estou certo de que você
entende a necessidade disso. - respondi – quando concluirmos nosso
acordo o seu transporte será enviado.
- É provável que só
seja possível finalizar essa troca amanhã pela manhã, porque o
moleque sai pra comer com os outros. Esse aí tem talento, mas quero
ver como você vai por ele na linha.
O homem estendeu as mãos
e nos cumprimentamos. Naquele momento eu me perguntei se não estava
indo longe demais com aquilo tudo, mas eu fiz um plano e comecei,
então decidi levar até o final. Pro momento, no entanto, restava
aquele tal de plasma azul. Saímos da sala e Miguel estava a nossa
espera. Sem pronunciar nenhuma palavra, ele nos levou até a entrada
e autorizou a entrada de Luíza. Só nesse momento que eu me
perguntei como eu posso entrar nesses locais se não tenho nenhum
tipo de vínculo com eles.
- Luíza, você pode me
explicar o que são esses “plasmas”?
- Ah, eles são redes de
bares com acesso bem restrito. Na verdade são meio que mansões
cheia de quartos, como o plasma verde que você viu, e cada um tem
meio que uma especialidade. No começo, cada um deles tinha um nome
próprio e eram conhecidos como bares de plasma porque era aquela
época em que sangrar passou a ser seguro, então as pessoas
começaram a se cortar durante o sexo. Daí um magnata anônimo aí
comprou todos eles e deu nomes especiais que os antigos donos viam
pessoas usando. As cores representam basicamente o nível do bar. E é
muito caro pra você entrar sem ter conexões. Acho que é isso.
- Como assim nível do
bar? Azul é melhor dor que o verde?
- Bares de nível mais
alto tem melhores drogas, mais chances de você cruzar com indulgers
e têm regras mais soltas, então você pode fazer coisas mais
extremas de maneira discreta aí.
- Engraçado que eu nem
sabia da existência desses bares e entro neles automaticamente.
- Ah, mas deve ser por
causa dos seus óculos.
- Como?
- Eles são
personalizados, o cara que fez deve ter colocado sua casta como
identificação. Você era influente na liga como fundador, daí...
- Casta? Que porra é
essa?
- Ah, é tipo um ranking
de influência das pessoas. Os plasmas e outros lugares trabalham com
castas pra não deixar qualquer um entrar. É uma droga, porque eu
não uso a casta dos meus pais e tenho que pagar super caro pra poder
entrar. Mas agora foi de graça! Quer uma bebida?
- Porque não? - respondi
– quero uma caipirinha!
- Ha! Tu é velho mesmo,
cara. Caipirinha? Bem, tem gosto pra tudo, né!
O lugar tocava uma
espécie de música sertaneja eletrônica com vários sons que eu não
conseguia reconhecer. Efeitos que eu nunca tinha ouvido. Luíza foi
pra pista e começou a dançar, mas eu decidi seguir bebendo e, como
não estava cancelando sensações ou filtrando alcool, logo fiquei
bêbado.
As luzes brilhavam
aparentemente no ritmo da música, minha pele estava dormente e
comecei a dançar. Eu pulava, gritava e fazia movimentos aleatórios
pelo local, mas volta e meia eu via Luíza, pra me certificar de que
eu não tinha me perdido. Alguém colocou uma máscara na minha cara
e pessoas vinham dançar comigo naquele canto onde eu me enfiei.
Acharam graça nas minhas ações e provavelmente imaginavam que usei
muito mais do que só alcool. Pelo que parece, jovem ou não, eu
ainda era estranho. Mesmo em um ambiente estranho.
Minha visão ficou
embaçada, mas ainda encontrei uma última vez com Luíza.
- Tino, Tino, caralho,
encontrei um Indulger e ele me escolheu!
- ha! Vai levar ele pra
cama, é?
- é claro!
- Vê se não arruma
bebê, em? Bebê dá trabalho!
- Claro que não, eu nem
tenho como ter filho, deixa de doideira! Cê tá muito chapado, cara!
- A natureza faz truques,
minha cara. Faz truques!
Ela sumiu e não consegui
mais encontrá-la por ali. Dancei um pouco mais, girei e caí no
chão. Algum robô me levou pra um quarto e passei ali uma noite sem
sonhos.
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