Família Peçanha, 2040
Tudo começou numa tarde
de sábado na praia de Copacabana. Um homem apareceu e começou a
atirar nas pessoas com uma submetralhadora. Pânico e correria, mas
no jornal a notícia foi “incrivelmente apenas uma pessoa foi
atingida pela rajada de tiros que teve trinta disparos”. E
tragicamente a pessoa atingida morreu, chocando a cidade que já há
algum tempo tinha se acostumado com a segurança melhorada. Sistemas
de monitoramento e identificação facial tinham resolvido boa parte
dos sintomas crônicos da criminalidade carioca, mas esse não foi
nenhum crime qualquer. O homem não parecia querer nada além de
matar pessoas e teria conseguido mais se não tivesse sido derrubado
por um tido nas costas. E a pessoa atingida foi Liana. De toda aquela
multidão, foi justamente ela. A família inteira ficou em choque.
Pôde-se ouvir gritos e choro, mas ninguém falou nada. Ela era a
namorada de Emanuel, mas era amada por todos na família. Por algum
motivo, aquele tiro na cabeça instaurou um silêncio na casa que
ninguém mais conseguia quebrar. No luto os membros se separaram e
efetivamente a unidade da família se desfez naquele dia. Num mundo
em que as pessoas vivem tanto, a morte passou a ser ainda mais
estranha e inaceitável do que outrora. Especialmente com a
perspectiva de eternidade, que tornava juramentos de amor eterno mais
do que mera poesia. Mas ela morreu, 18 anos de idade e inocente...
Emanuel – 2041
Eu lutei, eu insisti, mas
não adianta. Há coisas quebradas demais pra serem consertadas e
nada resta além do descarte. Era esse meu caso. Fui naquele ponto
memorável a ponta Rio-Niterói onde meus pais se conheceram. Ele
estava pensando em se matar e ela apareceu por ali. Parou o carro e
foi conversar com ele e “bam”, se apaixonaram! Bem romântico,
coisa de filme mesmo. Tudo bem, filme piegas. Lembro que o Fred
sempre disse que nossos pais são o casal clichê, embora indiferença
não me pareça tanto um lugar comum. Mas Liana não viria pra mim
pra falar palavras bonitas. Um ano depois do incidente e eu ainda
acordava acreditando que ela estava viva de vez em quando. E a dor
foi se transformando e apatia com o tempo. Abandonei a faculdade e
meu projeto de pesquisa, mal falava com meus amigos e eu vivia só
pra comer e dormir. Crueldades da vida: você recebe um motivo pra
ver, uma coisa sublime e espontânea, apenas pra tudo ser tirado dos
seus braços num instante. A lua estava cheia e o mar parecia mais
limpo do que ele é por ali. Decidi ficar sentado admirando aquela
que seria minha última noite, quando um velho quis dar uma de herói
e estragar meus últimos momentos. Ele ficou ali falando coisas, mas
confesso que não ouvi. Mas o barulho estava me incomodando, então
decidi resolver o problema:
- Escuta, eu não sei
quem você é, não sei porque está aí falando. Mas se você
continuar me incomodando ou encostar em mim eu vou te derrubar dessa
porra de ponte. Aí o mundo vai ficar com menos um herói, não é?
Eu nem me preocupei em
olhar pra trás. Ele suspirou e ficou ali por uns instantes, mas
finalmente desistiu e foi embora. Um carro velho e barulhento, mas
que logo teve seus sons suprimidos pelos outros que passavam, todos
indiferentes ao vulto sentado do lado do poste estragado. Meu celular
tocou, mas nem me preocupei em atender. Logo quando eu estava pronto
pra jogá-lo fora, recebi uma mensagem e decidi ler. Podia ser
Letícia, minha caçula. Mas não era. Só o Jônatas, um colega de
faculdade. Como o título era “a solução pros seus problemas”,
imaginei que se tratava de alguma piada. Quem sabe antes de pular eu
desse mais uma daquelas risadas tão fracas que nem chegam a mover o
rosto. Mas não era nada daquilo:
“Cara, você deve saber
que eu não sou nenhum pastor pra saber o que sua alma precisa e tal,
mas po, sabe koé, eu acho que sei resolver. Na moral, é sério, não
apaga essa mensagem, continua lendo que você não vai se arrepender.
Um cara amigo meu descobriu uma mulher aí que é viciada em sexo,
sem sacanagem. Ela dá pra qualquer um, você só precisa chegar nela
e falar que quer sexo que ela dá pra você. Ela sempre transa tipo
umas 3 vezes ao dia, daí os caras instalaram programas em tudo o que
ela tem e ficam sempre monitorando onde ela tá. Daí é sinistro,
cara, porque agora só a gente que come ela, porque são sempre três,
então a gente revesa e sempre acha ela. Eu li uma revista no
dentista e ela falou que a solução pra depressão é sexo, você
fode fode fode a acaba saindo dessa. Já falei com os caras, é hoje
mesmo, clica aqui que você vai achar ela pelo GPS daí você chega
nela. Ela já tá te esperando, nós já avisamos ela, vai lá e come
ela. Você vai se sentir melhor, vai por mim, vai ser maneiro, ela é
mó gostosa. Saca só essa foto! (anexo indisponível) Falou, muleque
!!!1”
Fiquei pensando na Liana.
Ela era estudante de psicologia e cheia de compaixão e ideais
feministas. Como ela se sentiria sabendo que tem uma mulher solta por
aí que é escrava sexual de um bando de hackers? Quem seria essa
mulher?
Alguma coisa tomou conta
de mim. Pela primeira senti vontade de fazer alguma coisa. Pensei em
falar coisas pra ela e todas as frases que eu formava na minha cabeça
saiam com a voz da Liana. Eu podia fazer esse último ato pra honrar
a lembrança dela. Depois de simplesmente passar um ano trancado num
quarto, eu quis fazer alguma coisa por alguém. Foi como se ela
estivesse viva em mim. Certamente que não me fez mudar de ideia: eu
conversaria com a mulher e tentaria tirá-la dessa situação
deplorável, mas depois voltaria aqui pra esse ponto escuro e
seguiria o plano
Abri minha jaqueta e subi
na moto. Queria sentir o vento. Guardei o capacete na garupa e saí
atrás das coordenadas do GPS. Eram no centro da cidade, no meio
daquela confusão. Acelerei e senti o vento quase fechando meus olhos
e aquele som que cancela todos os ruídos ao redor. Alguma coisa
acontece quando você chega em 130 por hora. Tudo se silencia e de
repente você se torna parte da estrada. Tudo se torna cenário,
plano de fundo e não há mais nada te preocupando a não ser o que
está bem à sua frente. Esses momentos eram tudo o que havia restado
e com a decisão de por fim em tudo parecia que eu já estava
pilotando com nostalgia, como se esse não fosse um hábito novo, mas
uma coisa antiga e que em breve já não seria mais parte da minha
realidade.
Devo ter tomado multas,
mas, como pus tudo isso no débito automático e nunca me preocupei
em ver como andava minha carteira de motorista, também nunca me
importou respeitar os limites de velocidade. Em pouco tempo, lá
estava eu diante daquele bar. Imediatamente reconheci a mulher, pois
uma segunda mensagem chegou apenas com a foto dela.
Ela era loira, com cabelo
cacheados que pareciam já ter visto dias melhores. Parecia ter tido
um dia longo e cansativo, como uma pessoa que passou o dia
trabalhando e já não está mais no estado inicial. Tinha uma pele
adorável, embora algumas marcas vermelhas estivessem evidentes e
nada nela indicava que ela estava na situação que estava. Seu olhar
parecia imponente, como se ela estivesse no controle da situação
enquanto tomava um Martini e fingia interesse no que um homem falava
em seu ouvido. Levou um tempo pra eu tomar coragem e entrar naquele
bar. Fiquei ali sentado na minha moto olhando fixamente pra ela, que
parecia ansiosa, mas, por algum motivo, não olhava pra nada além do
martini, como se ele fosse a única coisa importante no mundo.
- Cuidado com ela,
rapaz... Que ela é braba, viu?m – me disse um mendigo que estava
deitado ali
- A loira ali?
- Ela mesma. A dona rita.
Se ela não for com a sua cara, pega tua moto e foge, que uma vez ela
deu um tiro na perna do camarada que se engraçou.
- Ela tá sempre armada?
- Ah sim, sempre com uma
pistola, ela. Mulher braba da porra, mas ela gosta de foder que eu
sei. Uma vez eu vi ela transando com um cara ali naquele beco ali ó.
Fica deserto a essas horas.
Fiquei ponderando sobre
aquela situação. A mulher era indiscutivelmente linda, ainda mais
pela minha absurda predileção por loiras. As roupas dela eram
caras, embora sem muita tecnologia. Coisa de quem tem estilo, dizia
Liana. E ainda por cima armada, coisa que, por incrível que pareça,
me dava vontade de ir até lá ao invés de fugir. Mas ela era uma
escrava sexual e estava sendo usada por uns hackers imundos. Difícil
processar uma contradição daquele tamanho: uma pessoa que parecia
ter tanto poder sobre tudo a sua volta vivia submissa e sendo usada
como um mero objeto. Eu tinha que saber mais, tinha que entender que
porra era aquela.
- Vai na fé, irmão. -
disse o mendigo
- Lembra de mim se ela me
matar! - respondi
Ele riu e joguei uma
quantia substancial de dinheiro pra ele. Pensei comigo: “depois
disso aqui eu vou pular de uma ponte enorme e morrer: pra quê quero
dinheiro? É papel, vai perder a integridade molecular na água e se
despedaçar.”
- Ah, você tem dinheiro.
Vai lá, guerreiro, que você comer ela – ele falou contanto o
dinheiro
- Qual é seu nome? -
perguntei
- Eu sou o João Carmo de
Souza, pó perguntar pra qualquer um aí na rua que sabem quem eu
sou.
- Bem, boa noite, João.
- Boa noite!
Atravessei a rua e entrei
no bar. Ela me viu entrar e me ignorou completamente, absorvida na
taça vazia de martini. Andei na direção dela e alguns homens
olharam pra mim. Estavam rindo, como se soubessem exatamente qual era
meu destino. Chamavam a atenção um do outro. Provavelmente pensavam
que eu era apenas mais um a ser rejeitado e humilhado publicamente
por ela.
- Qual é seu nome? - ela
perguntou antes de eu me sentar
- Emanuel – respondi
meio hesitante
- Resposta correta!
Porque você demorou tanto?
- Eu estava meio...
ocupado com um negócio.
- Bem, eu te levaria pra
minha casa se você tivesse chegado mais cedo, cara, mas já tá
tarde. Quero acabar com isso logo e ir dormir.
- Porque você não me
deu bolo, então? - perguntei
- Eu não conseguiria
dormir... e preciso dormir pra reunião de amanhã.
- Bem, a última coisa
que quero é te atrasar. Também tenho algo que quero fazer hoje a
noite.
- Vamos, então. Vem
comigo.
Ela pegou minha mão e me
puxou pra fora do bar. Eu não sabia o que fazer, então segui as
orientações dela e fui. A pele dela era macia, bem jovem e tratada.
Mas não pude deixar de notar algumas marcas estranhas. Pensando bem,
não estranhas, só que me incomodavam. Eram claramente marcas de
mão, marcas de que alguém apertou o braço dela com tanta força e
tantas vezes que ficou quase permanente. Eu não sabia o que sentir,
porque o perfume dela era intoxicante, sedutor, e o cabelo cacheado
dela saltava enquanto ela me puxava pela calçada na direção
daquele beco de que joão falou. Linda, esplendorosa, mesmo naquele
estado melancólico eu estava ficando meio enfeitiçado. Entendi,
naquele momento, a motivação dos hackers, embora não a considere
justificável. Algo naquela mulher me fazia querer tirar a roupa dela
e transar pro horas. Quando chegamos num ponto bem escondido, ela
puxou uma pistola da bolsa e fez aquele barulho de quando se puxa o
ferrolho pra trás pra verificar a bala na câmara. Uma nove
milímetros clássica, compacta. Não reagi com o som, porque morrer
ali não era diferente de morrer por impacto com a agua. Mas o som
não era pra mim: logo um mendigo saiu dali correndo, como quem sabe
exatamente o que está acontecendo.
- Discupa, minha sióra,
discupa eu! - disse o homem logo antes de virar a esquina
Ele provavelmente já
sabia o que estava acontecendo e que não adiantava fugir. Eu
sinceramente não sabia se estava no controle daquele situação ou
se era ali que dava as cartas.
Mesmo no escuro, consegui
ver que ela estava abaixando a calcinha e levantando a saia. Fui me
aproximando quase que magneticamente, prestes a contrariar os ideais
da Liana e envergonhar a memória dela, mas aí ela disse o que
disse:
- Você me quer? Sou sua
boneca, vem pegar!
Não entendi porque ela
falou aquilo e achei que talvez tenha sido pra me estimular. Mas eu
senti um embrulho no estômago. Foi como se eu estivesse prestes a
foder um daqueles robôs sexuais que só sabem falar essas frases
prontas e reproduzir aqueles gemidos estereotipados. Foi doentio.
- Vira pra mim. - pedi
Ela virou na minha
direção e eu dei um beijo longo nela enquanto puxava a calcinha
dela pra cima. Eu não podia usar ela daquela forma, nem mesmo sendo
perturbado como eu sou. Aquilo era errado. Mas ela segurou minha mão
e abaixou a calcinha novamente.
- Eu preciso disso cara.
Não faz isso.
Encostei a minha testa na
dela com os olhos fechados sem saber o que fazer. Eu era um vício
pra ela, uma necessidade mórbida. Talvez aquela frase fosse mais do
que uma tentativa de me estimular. Talvez ela quisesse ser desejada
de outra forma, talvez ela quisesse ter alguém na vida dela que era
como a Liana foi pra mim. Alguém pra amar incondicionalmente, pre se
entregar sem fazer nenhuma pergunta. Alguém pra te fazer café da
manhã com torradas queimadas com o gostinho queimado das boas
intenções. Agi por impulso e comecei a beijar o corpo dela. Ela
tentou abrir minhas calças, mas não deixei. Eu tinha diante de mim
um dilema clássico entre ID e Superego. Não podia usar ela como se
fosse um objeto, mas aquela pele macia, aquele perfume, me
enlouqueciam. Minha solução poderia ter sido estudo de caso pra
psicólogos: decidi chupar ela.
Sentia como se chupar ela
fosse ser usado por ela ao invés de usá-la, dar prazer a ela sem
querer nada em troca além de ver que estava satisfeita. Porque ela
era tão alta e ainda estava com salto, bastou que eu ficasse de
joelho pra fazer isso. Ela colocou a perna direita em cima do meu
ombro e se apoiou em uma lata de lixo com o braço direito enquanto
puxava meu cabelo com a mão livre. Fui entendendo como ela gostava
pelas puxadas que ela dava. Pelo que vi, quando ela puxava com força,
eu estava indo no caminho certo. Fui experimentando até ver tudo que
ela gostava. Dois dedos, movimentos circulares com a língua e um
ritmo progressivo. Ela segurava gemidos, aquilo durou lá pra meia
hora. E por incrível que pareça, quem estava em êxtase total era
eu. Quando eu senti ela gozar, passou um calafrio pela minha espinha
que eu já não sentia há um ano. Eu senti uma euforia misturada
com satisfação, como se eu mesmo tivesse acabado de gozar. Depois
de alguns segundos eu voltei a sentir meu joelho, que doía
absurdamente. Olhei pra cima assim que ela tirou a perna de cima de
mim e tomei força pra levantar quando vi que ela estava chorando.
Chorava copiosamente, como quem está tirando alguma coisa do
sistema.
- Tá tudo bem contigo,
Rita? - perguntei
- Como você sabe meu
nome? Eu disse pra não te falarem meu nome.
- João me falou.
- Ah. Entendi...
- Mas tá tudo bem
contigo?
- Ah, nem sei, sabe? Faz
tempo que não me perguntam isso. E já faz muito tempo que não
choro também. Esse ano eu passei tentanto voltar a chorar, porque
acho que eu era mais... sei lá, mais feliz quando eu chorava de vez
em quando. Mas eu já tinha desistido.
- Então você não chora
sempre?
- Não, não choro... Eu
nem sei direito porque estou chorando, então perguntar não vai te
ajudar muito.
- Quer vir pra minha casa
e conversar?
- Porque? Não pode
conversar aqui?
- Olha, até posso, mas
preciso por gelo no meu joelho.
- Ai, nossa, desculpa!
Não sei se foi o pedido
de desculpas que me chocou, que parecia completamente dispar com a
atitude defensiva de antes, ou se foi a voz dela. Antes era mais
grave, carregada de autoridade, mas naquele momento ela foi mais
aguda, suave, frágil.
- Se preocupa não, rita.
A gente senta e conversa um pouco lá em casa.
- Tá bem, então. Eu
normalmente não vou pra casa dos outros, mas dessa vez eu vou por
causa do seu joelho. Você tá de carro?
- Não, to de moto.
- Melhor vir de carro,
então, né?
- É, acho que sim. Você
tá de carro?
- To sim, onde é sua
casa?
- É em Niterói.
- Nossa, por isso que
você demorou, então?
Não respondi e fomos até
o carro dela. Estava bem próximo, como se ela estivesse planejando
terminar a transa e ir embora rápido. Mas ela parecia contente com a
mudança de planos. Fiquei esperando ela abrir o carro e destravar a
porta, mas antes de abrir ela me olhou nos olhos, fechou um pouco os
olhos e mordeu os lábios debaixo. Não sei se aquilo era
curiosidade, se era desejo, ou se era só uma cara que ela faz
simples. Mas me estimulou, eu gostei.
- Você não vai entrar?
- Tá aberta, a porta?
- Tá, ué
- Mas eu não vi você
destravando o carro.
- Eu destravei só a sua
porta.
- Tem como fazer isso? -
perguntei enquanto entrava
- nesse carro tem. Cintos
– ela disse
O cinto se prendeu
automaticamente e se ajustou ao meu corpo. O carro começou a andar
pelas ruas sem o controle dela.
- Mudar destino, niterói.
- ela disse.
- É na Augusto Ferreira
Ramos, não lembro o número, mas chegando lá eu te mostro
O carro aceitou o meu
comando de voz e começou a ir pro local.
- E a sua moto?
- Ah, se preocupa não.
Ela tá travada, ninguém vai roubar não?
- É trava eletrônica?
- É tipo isso. Eu
projetei os mecanismos de segurança dela e tem algumas coisas...
incomuns nela. Me ajudava a passar o tempo.
- Que mecanismos?
- Ah, ela é cheia de
parafernalha. Dá choque, solta spray de pimenta e até envenena o
cara que tá tentando desarmar ela. Tem que usar minha impressão
digital, minha voz e minha senha pra ligar. Não vão roubar não. No
máximo destroem dela, mas roubar não.
- O que você faz da
vida? Aliás, qual é o seu nome?
- Emanuel - muito prazer
- O que você faz,
Emanuel?
- Nada. Eu fazia
engenharia de materiais na UFF, mas larguei o curso.
- Porque?
- Diz, Rita, essa é uma
sequência de eventos normal pra você? Recebe um oral, vai pra casa
do cara, pergunta o nome dele e depois a profissão?
- Hahahahahahaah! Bem,
não, mas até que achei legal.
- E você, rita, faz o
que?
- Eu tenho uma empresa.
Marketing digital e coisas assim. Porque você fala tanto o meu nome?
- Sei lá, me dá
vontade. Te incomoda?
- Sei lá, ninguém me
chama de rita. Parece que você é meu pai falando quando me chama de
rita
- E como te chamam?
- Ninfa
- Sério?
- Sério! Sabe o que é
uma ninfa?
- Ah sim, é tipo você
mesmo. Faz sentido
Ela sorriu pela primeira
vez na minha frente. Com o tempo eu fui entendendo como era difícil
arrancar um sorriso ou qualquer outro tipo de emoção dela. Naquele
instante, no entanto, só sorri de volta como se fosse uma coisa
corriqueira. Mesmo diante do fato de que um sorriso meu também era
uma coisa tão rara. Lá estava eu, no carro de uma estranha e
passando pelo ponto escuro da ponte sem mais nenhuma vontade de
pular. Eu queria saber quem ela era, como ela tinha chegado ali,
porque ela fazia o que fazia. Na realidade, era parecido com o que eu
sentia pela Liana, só que bem menos intenso. Intensidades à parte,
de alguma maneira ela me deu um pouco de vontade de viver, mesmo que
só um pouco mais.
- Isso que estamos
fazendo é loucura, não é? - ela perguntou
- talvez... Mas o que
planejávamos fazer também era, então acho que não faz muita
diferença, né?
- É. E acho que, no fim
das contas, tudo o que fazemos é meio loucura, né? Então talvez
fazer alguma loucura diferente das normais de vez em quando seja
justamente a melhor saída!
- Pois é. Se você
comete um ato de loucura repetidamente por um certo período de
tempo, ele acaba sendo sua sanidade. E nada mais insípido do que a
sanidade!
Estávamos rindo como
dois bêbados, mesmo diante do fato de que ela era a única que tinha
bebido. Decidi que aquela deveria ser a noite em que nós nos
alteraríamos quimicamente. Cada um com seus problemas, cada um com
seus demônios, nós fugiríamos daquilo tudo com um pouco de
maconha. Ok, talvez mais do que apenas um pouco!
- É essa a rua? - ela
perguntou estranhando as casas
- É essa sim. Que foiw
- Pensei que hackers
tinham mais dinheiro.
- Ha! Valeu por me chamar
de pobre! Olha, pro seu governo eu não sou um hacker. Ok, sou mais
ou menos hacker, mas eu não trabalho com isso! E tem mais: eu moro
aqui porque não tem câmeras nas ruas. Eu gosto de privacidade,
sabe?
- Porque não tem câmeras
nas ruas?
- Porque o pessoal rouba.
Eles desistiram de colocar. Isso aqui não era assmi antigamente,
sabe? Só nos últimos anos que ficou meio pesada a situação aqui.
Ela ficou procurando
câmeras nos postes, meio confusa, e os gestos dela me deixavam
louco. Eu tinha esquecido a sensação de desejar uma pessoa dessa
maneira. Eu saia com uns amigos de infância e tudo parecia
completamente insípido. Assisti um vídeo antigo de uns caras sendo
decapitados e entendi o que estava me acontecendo. Eles perderam a
cabeça, mas não foi isso que eu vi. Um deles olhou enquanto o outro
era assassinado com aquele rosto abatido, meio inchado de algum
espancamento, e o que os olhos dele diziam era: “eu já estou
morto”. E era esse meu pensamento. Desde que a liana morreu, eu fui
junto com ela e meu corpo ficou vagando por aí como se eu ainda
fosse uma criatura desse mundo, mas meu lugar era do outro lado,
talvez com ela, se essas coisas existem. Mas então ela apareceu. Uma
mulher poderosa por fora, mas frágil por dentro. O casco dela
escondia o fato de que ela era feita de carne tenra. Tudo em mim me
dirigia a ela e eu não entendia a razão de tanta atração. É só
uma viciada em sexo que o Jônatas me indicou achando que um pouco de
endorfina resolveria meu problema, como se eu já não tivesse
tentado uma via direta pra esse tipo de solução. E ela não era
mais atraente do que algumas outras que eu conheci, que pareciam até
interessadas em mim, mas que logo desistiam diante da minha total
indiferença. Elas pensavam que era em relação a elas e nunca
paravam pra perceber que era com relação a qualquer coisa ao me
redor.
- Cê tá chapado, manu?
- Do que você me chamou
– respondi com um calafrio repentino
- Ah, seu nome é muito
longo. Manu tá bom!
- Me chama de Emanuel,
Rita, na boa.
- porque? Manu é unisex,
cara!
- Quer ficar chapada?
- Vamo lá!
Entramos na minha casa,
que estava estranhamente arrumada. Acho que arrumei tudo naquele
ímpeto que eu criei de deixar tudo nesse mundo em ordem antes de
abandoná-lo. Peguei uns cigarros prontos da minha gaveta e começamos
a fumar. Logo ali eu tinha alguma comida e meu whisky, que preferi
deixar intacto por algum motivo. Antes que eu pudesse pensar, ela
estava me beijando. Só quando ela subiu em cima de mim que eu
realmente pude perceber a delícia que era a pele dela. O perfume, eu
percebi, não era artificial: ela tinha mesmo aquele cheiro delicioso
de mulher que deixa um homem louco. Era como se tudo nela fosse
milimetricamente projetado pra deixar um cara louco, mas tudo o que
eu queria era descer e chupar ela mais uma vez. De alguma maneira,
parecia que aquilo me traria muito mais satisfação do que transar
com ela, e foi novamente o que eu fiz.
- Porque você não
transa comigo? - Ela perguntou quando percebeu o que eu estava
prestes a fazer
Eu poderia aparecer com
uma porção de resposta, porque sempre fui bom com as palavras, mas
acabei não dizendo nada. Eu só olhei nos olhos dela, sorri, e
voltei ao trabalho. Imaginei que a imaginação dela diria as
palavras certas por mim e, francamente, não era palavras que eu
queria na minha boca naquele momento. Era muito mais do que dois
dedos e uma língua e é difícil explicar algo assim pra quem nunca
tentou. Você se entrega por completo, tudo o que você tem é
daquela pessoa naquele momento. E esse momento, o presente, é tudo o
que importa. Seu passado, suas dores e suas mágoas, vão todos
embora. Seu futuro, com todas suas incógnitas desaparece, porque seu
universo gira em torno de um bom sexo oral. Mas acaba que não é só
no sexo: Você vai fazendo coisinhas pequenas por outra pessoa e cada
sorriso dela é uma recompensa maior do que tudo. Naquela noite e no
mês que a seguiu, eu comecei a me entender melhor. Toda manhã eu
acordava e dizia: “ah, amanhã eu vou na ponte, hoje eu quero fazer
massagem nela”. Coisas desse tipo surgiam todos os dias e acabou
que dar prazer foi se tornando minha única razão de existir.
Eu sei que é estranho,
sei que é difícil acreditar que passei um mês junto com ela e
nunca entrei. Não que tenha sido por falta de vontade, porque tudo
aquilo renovou minha vontade de viver. Acontece que quando ela vinha
na minha direção querendo sexo, o que eu via em seus olhos era dor,
não desejo. Era culpa, não entrega. Ela estava apenas se rendendo a
um vício e eu, de alguma maneira, me elegi como um salvador, o cara
que ia tirar ela daquele buraco e fazê-la entender o quão especial
ela era. Entrar nela, por mais tentador que fosse, a faria mal, e o
impulso de arrancar sorrisos foi maior do que o impulso de transar.
Passado um mês, ela
estava mudada. Eu tinha criado o hábito louco de acordar antes dela
e despertá-la com mais e mais sexo oral, especialmente porque ela já
não chorava com aquilo, o que tornava a coisa mais estimulante pra
mim. Mas numa manhã de domingo ela pegou minha cabeça, puxou pro
rosto dela e me deu um beijo. Um daqueles bem longos que relaxam o
corpo todo e fazem seu mundo rodar. Justo naquele momento eu entendi
que era ela me resgatando, ela que estava me dando prazer. E uns
instantes, ela inverteu a situação e eu estava indefeso em sua mão,
pra ela fazer de mim o que quisesse. Ela estava reabilitada. Aquele
olhar impulsivo desapareceu e percebi isso quando o beijo acabou. Ela
estava em paz. Pensei que iríamos transar naquele dia, mas acabou
que isso só aconteceu anos depois. Alguém bateu na porta e eu fui
atender enquanto ela bebia a água que eu deixei ao lado da cama.
- Oi, você não deve me
conhecer. Meu nome é Matias e eu vim buscar a minha filha – o
homem disse antes que eu pudesse dizer qualquer coisa
- Desculpa, quem é sua
filha? - perguntei coçando os olhos
- Rita, seu pai tá aqui!
O copo quebrou e de
súbito eu tive que me esquivar pra dar passagem. Ela veio correndo e
pulou nos braços do cara e eu não entendi porra nenhuma. Ela
chorava, ele chorava e eu me sentia como um estranho naquela
situação, como se eu devesse sair da casa e dar privacidade. E ele
percebeu isso.
- Você é o Emanuel, não
é? Quero conversar com você – ele disse
Eu não sabia o que
esperar. Será que ele estava prestes a me atacar ou me denunciar pra
polícia? Será que ele iria me jurar de morte por ter raptado a
filha dele? Fosse o que fosse, eu não senti medo, porque algo no
olhar dele me passou tranquilidade. Rita acariciou meus ombros e foi
pro banheiro tomar um banho correndo. Ela sempre fazia exatamente
aquilo quando estávamos pra sair pra algum lugar. Foi aí que eu
entendi que ela estava indo embora. Pensei que esse momento fosse me
deixar triste, porque de alguma forma eu tinha certeza que ele
chegaria. Mas não aconteceu. Eu só senti como se tivesse cumprido
uma missão. Minha cabeça estava um turbilhão e eu tinha que dar
atenção ao pai dela, que estava ali parado olhando pro banheiro.
- Entra aí, a casa é
sua. - eu disse
- Ah, obrigado!
- Quer agua, cerveja,
alguma coisa?
- Que cervejas você tem
aí?
- Bem, dá uma olhada!
Abri a geladeira e ele
prontamente escolheu a mais cara de todas, abriu e começou a beber
em silêncio. Pensei em como eu estava me sentindo naquele momento.
Foi uma tranquilidade que eu só sentia com a Liana, quando fazia
alguma bobagem que ela pedia. Entendi, finalmente, que minha paz de
espírito não era por causa dela, mas pela forma que eu levava a
minha vida enquanto estava com ela. Todo aquele amor foi seguido de
muita entrega e era essa minha força motriz. Não era tão diferente
de passar um mês meio confinado fazendo sexo oral em uma mulher e
ouvindo sobre todas as ânsias e sonhos dela. Era entrega, a mais
pura entrega. Essa era a razão da minha vida antes, mas como eu só
comecei a sentir com aquele namoro, enfiei na minha cabeça que ela
era a razão de eu existir. Mas não era, a resposta estava bem
diante dos meus olhos e o destino deixou pra me mostrar isso aos 45
do segundo tempo.
- Eu sei o que você fez,
rapaz, e sei o que você é – Matias disse
- O que? Do que você tá
falando?
- Eu sempre acompanho os
passos da minha filha e sei o que tem se passado na vida dela. Nada
do que foi feito ou dito passou sem ser notado
- Cara, eu tive boas
intenções, é sério, pergunta pra ela. Eu não maltratei ela.
- Então espero que me
perdoe, rapaz, porque quem cometeu a ofensa fui eu.
- Como? Não to te
entendendo!
- Eu matei o seu amigo.
Jônatas, ele se chamava.
- O que?! Você... Matou
ele? Que porra é essa!?
- Ele era um filho da
puta. Sei que vocês eram amigos de infância, mas ele rastreou minha
filha e começou a explorar o vício dela. Ele estava vendendo ela
pra outras pessoas como se fosse uma prostituta, como se ela fosse
propriedade dele. Ele veio até a sua casa armado, achando que você
tinha roubado ela dele e estava vendendo ela nesse lado da ponte,
então eu o degolei bem aqui na sua porta. Vocês estavam dormindo,
você mesmo roncava absurdamente e nem me ouviram removendo o corpo e
limpando o local. Sabe-se lá o que ele estava prestes a fazer, mas
eu não podia me sentar inerte. Não mais.
- Você salvou a gente,
então? Porque você não interferiu antes?
- A ordem não deixava.
“Servir, satisfazer, curar”...
- Que ordem? Tá falando
do que, cara?
- Os indulgers. Eu
tentei, mas acho que não sou mesmo um deles. Talvez você seja, no
entanto.
- O que é isso?
- Rapaz, sem ofensa. Eu
vi o que você fez pela minha filha e fico realmente agradecido. Mas
não é de mim que você tem que ouvir essa resposta. Pega aqui esse
cartão.
Ele deixou um cartão com
um número de telefone na mesa da minha cozinha e antes que eu
pudesse pronunciar qualquer resposta ela estava pronta pra sair. Com
aquele short jeans que comprei pra ela uma camisa minha do bob
esponja que ela sempre usava pra ir na padaria. Ela não estava
vestida com a pomposidade usual, mas o sorriso dela brilhava e, pelo
menos pra mim, era mais belo que qualquer ornamento.
- Liga pro número,
Emanuel. E não se preocupa, eu estarei por ai. A gente se encontra
mais uma vez. Aí quem sabe não escrevemos aquele conto que
queríamos escrever juntos?
Eu queria sorrir e
chorar, mas não fiz nada daquilo. Alguma coisa me segurou, algo me
disse que o silêncio era a opção mais sábia. Demos um longo
abraço e ela beijou meu pescoço antes de me soltar e sair com o
pai. Sentei na minha cozinha e terminei a cerveja que ele deixou.
Minha cama ainda tinha o cheiro dela, então fiquei deitado ali por
algum tempo olhando pro cartão. Eu tinha uma vida pra sempre e meu
GPS mostrava que minha moto tinha sido rebocada e não roubada.
Decidi sair pelo país com esse cartão no bolso e ver se me daria
vontade de ligar. Eu não estava muito preocupado com aquilo, no fim
das contas. Só queria sair pilotando pela estrada e, quem sabe,
descobrir mais alguém pra proteger e servir. De uma maneira ou
outra, eu queria viver e voltei a acreditar no amor.
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