Frederico Peçanha - 2041
A vida deu voltas, girou
com o mundo. Certamente ela não aprovaria o que estou fazendo, o que
eu me tornei. Mas o que começou como uma reação à morte dela se
transformou na minha libertação. Seria muito irônico se eu me
transformasse em uma pessoa melhor por uma pessoa que, no fim das
contas, me usava como uma ferramenta. Finalmente cheguei num ponto em
que tudo o que era belo nela se transformou num retrato da sagacidade
feminina: nós dois éramos dependentes dela e, sob seu feitiço,
fazíamos tudo o que ela precisava. A quantidade de tempo que perdi
me revoltaria se hoje não me servisse de lição.
Tudo começou com aquele
tiro na cabeça, que virou meu mundo de cabeça pra baixo. Nós
tínhamos nossas indas e vindas numa relação escondida e eu não
esperava um final feliz, mas também já tinha desenvolvido certa
dependência por ela. Meu mundo se desestruturou. Fiquei pensando em
tudo que eu podia ter feito, já que eu tinha me transformado
efetivamente no guardião dela, resolvendo seus problemas e suas
ânsias. Mas não pude protegê-la da morte, porque aceitava as
barreiras morais dela. Se eu tivesse dado passos além das exigências
que ela fazia, estaria armado naquele dia. Porra, eu teria alguém de
olho nela o tempo todo e pronto pra neutralizar qualquer risco junto
comigo. Mas lá estava eu, sem o recurso da violência, sem segurança
particular, sem ódio: desempoderado por uma mulher.
Quando comecei essa
“escalada” que é minha vida hoje, a minha desculpa era que eu
precisava de poder pra nunca mais deixar algo assim acontecer. Mas o
tempo passou e eu fui percebendo que isso nunca mais ia acontecer
simplesmente porque eu nunca mais amaria ninguém como a amei. Na
realidade, as únicas relações honestas que eu pude ter foram com
prostitutas e elas duraram a quantidade de dinheiro que eu investi.
Com o tempo, fui aprendendo sobre as mais diversas formas de se
exercer poder e entendi a sedução. Reconheci que ela efetivamente
mudou seu comportamento pra me seduzir e me usou. Não que tenha sido
ruim, muito pelo contrário, mas não era coerente com aquela aura
angelical que ela gostava de passar e que Emanuel comprou. Ela era um
diabinho e nos fazia de marionete para suas conveniências. Sabe-se
lá quantos mais ela tinha!
Eu pensei que sentiria
desprezo, mas isso tornou a memória dela muito mais admirável. Ela
deixou de ser a menina indefesa que eu protegia e comia pra passar a
ser uma mulher que me manipulou e usou meu poder como bem entendeu.
Ela me fez entender que poder é um fenômeno amplamente
psicossocial: ele está exatamente onde as pessoas acreditam que ele
está. Dinheiro, conhecimento, sedução, networking! Ela foi minha
mestra e me ensinou a brincar...
Naquele dia eu dei o meu
primeiro grande passo na minha escalada. Esperei a morte dela completar um
ano pra fazer tudo acontecer, com todos os documentos prontos. Disse
pra toda a equipe que estava ocupado, mas que hoje tudo sairia. Eles
desenvolveram um sistema bem eficiente para a manipulação de
recursos hídricos capaz de converter grandes quantidade de água
salgada ou até poluída em água potável. O projeto mais promissor
de toda a universidade, idealizado e abandonado por Emanuel.
Nanorremediação tão eficiente que a liga demonstrou interesse em
comprar a patente do projeto. Claro que a equipe era estúpida demais
pra entender que você não bate de frente com a liga.
Convenientemente, entrei no grupo por indicação do Emanuel bem
antes de ele abandoná-lo e passei a cuidar de suas burocracias.
Vivemos no Brasil, a nação das burocracias onde você precisa ser
artista pra manejar todas as regrinhas, fichas e subornos necessários
pra fazer tudo fluir bem. Eles passaram a me amar por eu fazer tudo
funcionar tão bem e conseguir levantar recursos pro projeto dentro
da universidade. Não entendiam o jogo que eu estava jogando e nem o
envolvimento da maior facção criminosa do país naquilo tudo. Pra
eles, era só a ciência, eram só resultados, era o fim da sede no
mundo. Como eles chegaram a acreditar num absurdo desses eu
honestamente não entendo.
Fiquei sentado dentro do
meu carro depois de tudo estar pronto, esperando Reginaldo chegar com
seus protestos. Deixei que ele descobrisse que a patente do projeto
estava sendo registrada no meu nome exatamente quando todos os outros
membros do grupo estavam numa excursão pro Piauí. Ele não era
exatamente o tipo de pessoa que para pra pensar e, pior de tudo, era
ex-militar treinado. Ele chegou mais ou menos uma hora antes do que
eu planejei, mas tudo já estava pronto.
- Fred, que porra é essa
aqui? Tá de sacanagem com a minha cara?! Você criou a tecnologia
sozinho, agora? Um administrador especialista em nanotecnologia?
- Calma, Reginaldo, eu
posso explicar – falei tentando fingir medo
- Explicar? É o caralho,
filho da puta! Eu vou acabar com a sua raça!
Quanto mais eu pedia pra
ele se acalmar, mais nervoso ele ficava, exatamente como eu esperava.
Estávamos numa rua deserta e eu precisava que ele parasse de
perceber as coisas em sua volta pra fazer as coisas funcionarem. Não
foi muito difícil: em alguns minutos ele correu na minha direção.
Nem precisei correr muito: ele veio na minha direção, seu foco em
seu alvo, e finalmente deu abertura pro meu atirador de elite
aparecer numa janela e atirar o dardo tranquilizante.
Matá-lo foi uma pena:
ele era único. Fizeram alguma coisa com ele no exército que o
tornou extremamente alerta e detalhista. Ele conseguiu matar dois
atiradores meus de maneiras absurdas que desafiam as crenças gerais
sobre a capacidade perceptiva humana. Se ao menos eu pudesse fazê-lo
entrar na minha equipe! Mas não, o desgraçado era filho de dois
advogados e, por incrível que pareça, eram honestos e viviam numa
luta contra a União. Aquela facção, que, com seu nome, pretendia
desafiar a própria soberania do estado com seus atos de terrorismo
por todo o país, estava dificultando os meus negócios com a liga
praticamente em toda a região sudeste. Eles precisavam cair, mas não
queríamos guerras sem fim. Eles tinham um ciclo de vida curto, morte
fazia parte da estrutura da facção. Aos 20 anos de idade, boa parte
dos homens já tinha dois ou três filhos e a maioria deles seguia o
legado do pai até a morte. Era necessário eliminá-los com alguma
estratégia mais estrutural, então entrei em acordo com eles pra
resolver esse problema e cimentar de vez minha relação com a liga.
Conheci muitos que não confiaram no poder que essa instituição
estava construindo, especialmente porque não tinha tanto
conhecimento sobre a quantidade de acordos lucrativos secretos que
eles estavam estabelecendo. Pensavam que se tratava
de um grupo inofensivo de cientistas, mas, pelo que eu vi na minha
vida, cientistas nunca são inofensivos. Criaram a boma atômica, robôs de
guerra, neuralização! O colete à prova de balas que uso todos os
dias é a prova de que, nos dias de hoje, quem possui conhecimento e
tecnologia é quem dita as regras. E eles sabiam muito bem disso.
Disponibilizaram 50 homens treinados e bem pagos pra eu realizar a
limpeza da cidade e, posteriormente, do país desse empecilho. Bem
mais do que eu precisava, é claro, mas eles não sabiam qual era meu
plano. Cientistas têm o hábito de não entender tão bem a
sociedade que os rodeia...
Com Reginaldo preso, sua
família estava toda desprotegida e convenientemente reunida num
churrasco de páscoa. Muitos, inclusive, estavam tão bêbados que
foram apenas carregados pra fora da casa. Fiquei esperando no carro
enquanto a casa era cercada e todas as pessoas eram levadas em plena
luz do dia. Pessoas na rua viam o que estava acontecendo e se
limitavam a correr por suas vidas, confirmando o que eu esperava. Sob
efeito de tranquilizante, álcool ou simplesmente pancadas na cabeça,
todos foram levados desacordados e a polícia local estava
devidamente “à bordo” da situação, de maneira que liberaram
todas as estradas para as diversas rotas que as vans tinham planejado
e tudo correu bem, fora em um dos casos em que um dos nossos
motoristas foi morto por um passageiro. Não havia seguranças no
veículo e ele carregava outros membros da família, mas decidiu ser
herói e seguiu a rota indicada no GPS do carro. Foi cômico ver o
homem sair da van atirando com um velho M-17 como se fosse causar
algum dano com aquela arma. Acabou causando nosso primeiro acidente
de percurso, quando a van em que ele estava acabou explodindo no meio
da troca de tiros, matando ele e os demais tripulantes. Ficaram
torrados, é verdade, mas não conforme o planejado. Mas, como dizia
mamãe, tudo tem um lado positivo: com essa morte, os homens ficaram
cheio de ódio e fizeram seu trabalho de tortura com mais vontade,
deixando belas marcas no corpo.
O local onde tudo foi
realizado era uma grande fazenda de propriedade da Liga enquanto
instituição, o que mostrava a consideração que eles tinham sobre
a autoridade do Estado. Ela ficava no interior de Minas Gerais e
tinha um depósito com exatamente o tamanho necessário para manter
50 pessoas cativas e bem presas. Todos os ferros estavam prontos e
aquecidos com o símbolo da união: duas mãos e uma corrente as
prendendo. Nunca me perguntei o que essa merda significa até o dia
em que vi pessoas esquentando ferro na brasa e marcando toda uma
família como gado. Aquele cheiro de carne queimada era estranhamente
apetitoso. Não que eu tenha pensado em comer carne humana, é claro,
mas quando você sente o cheiro de uma pessoa queimando na sua
frente, você lembra que não somos mais do que animais como qualquer
outro: E estamos no topo da cadeia alimentar. Ouvimos todos os
gritos, todas as súplicas desesperadas por piedade. Pessoas tentando
morrer no lugar uma da outra como se alguém fosse sair dali vivo.
Seria comovente se não fosse cômico. Deixamos Reginaldo por último,
porque eu queria ver até onde o treinamento militar o ajudaria a
suportar a tortura. Infelizmente, no entanto, ele não durou muito.
Acordou gritando, parecia raivoso e confuso, até olhar em volta e
começar processar a informação. Alguns segundos se passaram e a
luta dele acabou. No momento em que aceitou que toda a sua família
havia sido torturada e morta pelos meus homens, todo o brilho
desapareceu de seus olhos. Ele estava morto em vida e aquilo de
alguma forma me incomodou tanto que acabei dando um tiro na cabeça
dele antes de fazerem as marcações, contrariando o plano. Ver
aquele cara que era tão cheio de vida se entregar daquele jeito foi
desagradável em um nível intenso demais e eu nunca mais esqueci
aquele olhar perdido. E bem, o plano era meu: qual é o sentido de se
criar um plano se você não pode modificá-lo segundos suas próprias
conveniências?
Depois disso, o plano
continuaria sem mim, então fui resolver meus problemas menores. Em
uma das minhas franquias de fast food, meu gerente decidiu abrir mão
de seu cargo e estava apontando outro funcionário para ocupar seu
lugar. Foi quase premonitório que ele tenha saído justo no começo
dos anos de sangue, se livrando de todo o perigo que estava bem
diante dele. De qualquer forma, eu precisava fazer meu papel e
informar o novo gerente sobre suas novas atribuições. O homem
baixinho e já ganhando peso com o novo emprego parecia apavorado com
a minha presença. Seu cumprimento foi quase uma homenagem, com
cabeça baixa e olhos no chão.
- Bom dia, senhor – ele
disse
- Vejo que você está
assustado. É bom mesmo que você demonstre o mínimo de sabedoria.
- Desculpe, eu não
entendi?
- Geralmente eu tomo mais
tempo pra apresentar suas condições, mas hoje não vou ter como.
Aqui estamos na sua reunião de promoção e são quase 4 da manhã.
Eu quero dormir, então vou ser rápido e explicar sua situação.
Você estará sob constante vigilância de câmeras e todas as
transações e lanches servidos serão registrados pelo robô
central. Se for verificado deficit entre o caixa e as transações,
você vai pagar com a sua participação de lucro e descobrir quando
e como ele foi produzido. Identificado o funcionário, ele deve ser
entregue a mim. Se você proteger seus funcionários, será tratado
como o culpado.
- E o que acontece com o
culpado?
- Bem, esse é um tipo de
coisa que você entenderá melhor vendo do que ouvindo. Mas deixe que
eu coloque dessa maneira: não é nem um pouco agradável e é
irreversível.
O homem pareceu
assustado. Provavelmente ouviu boatos de funcionários desaparecidos,
mas, como nunca foram feitos boletins de ocorrência, foi como se
nunca tivessem ocorrido. Viraram aqueles boatos que ninguém sabe de
onde saíram e que provavelmente são um exagero da imaginação
coletiva. Não nesse caso, é claro.
- É pra eu desistir do
cargo que você está falando isso?
- Não, é pra você
entender o que está em jogo. O risco grande vem com recompensa
grande. Você tem total liberdade para deixar o cargo, dado que
comprove que não houve nenhum desvio de caixa, se você encontrar
alguém pra te substituir. Nesse cargo, seu pagamento será uma
participação de lucro de 40%. A média mensal desse mês foi de 20
mil, certo Messias?
- Isso mesmo, seu Fred. O
negócio melhorou depois da reforma.
- Então eu ganharia o
que, 8 mil por mês?
- Não, 20 mesmo. Isso é
40% do lucro mensal. É uma franquia grande, sabe?
A mistura de cobiça e
medo nos olhos dele me disse o suficiente. Ele estava contratado e
teria exatamente a mão de ferro que eu precisava.
- Então porque o seu
Messias está saindo?
- Ele ocupou esse cargo
por 5 anos e economizou bastante. Eu admiro homens de ambição e ele
quer andar suas próprias pernas. Está cumprindo nosso acordo até o
fim e terá meu suporte com seus empreendimentos futuros. Entenda,
Joaquim: você vale tanto quanto a sua palavra. Se você a quebra, eu
te quebro e ponho alguém confiável no seu lugar. Não é nada
pessoal, entende. Eu tenho projetos maiores e preciso manter essas
franquias como uma fonte estável e constante de renda pra usar como
capital de giro. Estou certo de que você entende não tenho tempo
pra perder administrando franquia de fast food e lidando com vegans
protestando.
- Entendo. Eu aceito o
cargo de bom grado e faço da minha palavra o meu valor.
- Haha! Você mandou ele
dizer isso, Messias?
- Eu falei que disse isso
pra meter um medo nele. O cara decorou! Esse aí quer mesmo o
emprego!
Coloquei a caixa de
cerveja na mesa e dei uma larga risada daquelas bem treinadas.
- Bem, chega desse papo
chato. Vamos jogar um truco, porra, porque a noite já tá acabando!
Cada um deles pegou uma
lata e bebemos e jogamos pra assistir o tempo passar. Lá pras 5 da
manhã os dois estavam dormindo nas mesas do estabelecimento, que não
abriria em virtude do feriado e eu liguei a TV. Era minha mãe
falando:
- Mas é exatamente isso
que estou propondo, Arnaldo. O hábito de lutar contra as influências
nocivas do poderia econômico nos deixou cegos, deixou nosso
pensamento estereotipado. Esse maniqueísmo absurdo está nos
impedindo de perceber essa nova classe de poder que parece estar
chegando pra ficar: os cientistas! - ela disse
- Os internautas estão
perguntando, em tom de brincadeira, o que o seu marido acha dessa sua
resistência aos cientistas!
- hahahahahahaha! Bem,
casamento nenhum é perfeito, certo?
As risadas foram
intensas, mas com a insipidez típica dos acadêmicos com sua polidez
intelectual.
- Negócio familiares à
parte, você pode elaborar melhor essa conversas de cientistas do
mal? - perguntou o jornalista.
- Sim, claro. São
inúmero exemplos! Pense nas atividades recentes dessa tal liga dos
cientistas.
- Da qual seu marido faz
parte e que foi responsável pela cura da epilepsia?
- Sim, meu marido faz
parte e ele mesmo me explicou, em termos simples, que essa cura ainda
carece de testes de longo prazo. Reclamou, inclusive, a forma
sensacionalista que o tratamento foi mencionado na mídia, apesar de
que eu vi a diferença na vida de dois amigos epiléticos que tenho.
Mas não é disso que estou falando. Por trás de curas e soluções
energéticas, ele têm acumulado conhecimento, informação, que não
está se tornando patrimônio público.
- Você tem algum exemplo
disso?
- Sim, claro, tenho
vários. Pense nesse novo elemento que está sendo extraído de
marte. Está sendo chamado de Marsídio e, aparentemente, pode formar
ligações mais fortes do que qualquer outro elemento na terra. Se
entendi bem, com caldeiras bem quentes você consegue desfazer
ligações que ele forma e evaporar todos os elementos comuns que
ficam ligados a ele, fazendo com que ele forme cadeias literalmente
inquebráveis. E o mundo ficou chocado quando um grupo de terroristas
jogou um avião contra o prédio central da liga e ele teve apenas
vidros quebrados. Que metal é esse, que só esses cientistas usam?
- Bem, é comum que
materiais novos em fase experimental sejam de uso apenas dos
cientistas.
- Com todo respeito,
Arnaldo, você não pode estar querendo sugerir que o Marsídio é
“experimental” e, ainda assim, é usado como escudo a prédios
vitais. E não pode também estar sugerindo que os únicos cientistas
do mundo pertencem à liga, já que são apenas esses cientistas que
trabalham com esse metal.
- Mas diversos países
também compraram Marsídio do assentamento um em marte. Não são só
os cientistas da liga que possuem esse elemento.
- Acontece que o
cientista que foi responsável pela descoberta desse elemento é da
liga e não está compartilhando a informação. E mais: apenas
China, Coreia e japão não venderam suas reservas de marsídio pra
liga. O material é extremamente pesado e foi comprado de outro
planeta, acarretando gastos imensos que não foram compensados, já
que só a liga conseguiu o nível de pureza adequado pra dar a este
as suas propriedades mais assombrosas. A caudeira que eles
construíram é tão grande que você pode vê-la por satélite de
baixa resolução. O que me assombra mais é que tem um grupo de
cientistas dominando uma tecnologia tão importante, retendo para si
próprios os benefícios dessa tecnologia e ninguém diz nada! Eles
poderiam ganhar bilhões comercializando Marsídio, mas não parecem
estar fazendo um investimento econômico.
- Exatamente esse é o
ponto. Com os gastos elevados que eles estão tendo na produção
desse metal, é bem óbvio que dinheiro de premiações nobel e
patentes não segurará a estabilidade econômica da instituição.
Eles vão falir muito em breve e os investidores estão começando a
ser dar conta disso.
- É exatamente aí que
está o ponto do meu livro, Arnaldo. Eles não vão falir. Se você
retomar o significado mais basal do dinheiro, vai entender que ele
significa poder. Se você o possui, você adquire produtos e faz
coisas acontecerem. Houve um tempo em que se usava outros tipos de
influência, como a religiosa, pra realizar interesses de indivíduos,
mas chegamos num ponto em que até os líderes religiosos precisam
retirar dinheiro dos fiéis, porque a religião como fonte de poder
está entrando em extinção. O que as pessoas não estão percebendo
é que, com tecnologia da liga e de fora, estamos chegando na era da
abundância. Continuamos melhorando nossos métodos de produção e
distribuição de bens de consumo enquanto que um fenômeno cultural
fez com que nossa população não aumentasse proporcionalmente. Com
a abundância de recursos, reduziu-se a desigualdade social e foi se
tornando cada vez menos importante ter dinheiro. Hoje nós temos que
até os empregos pior remunerados são suficientes pra um indivíduo
ter casa própria, um carro, alimentação de qualidade! Os
nanomateriais revolucionaram todos os mercados mais restritos e isso
mudou os eixos de poder do mundo. Tanto isso é verdade que o
Marsídio da Arábia Saudita foi vendido não em troca de dinheiro,
mas de informação: eles queriam ter cientistas treinados pra
produzir água potável em abundância pra sua população. Foi um
acordo em que os investimentos financeiros se resumiram em gastos de
transporte, alimentação e hospedagem! Você, há décadas atrás,
imaginaria que uma transação dessas envolveria bilhões de Dólares
e especulações do mercado, mas não foi isso que aconteceu. Foi uma
troca direta, uma troca que desconsiderou por completo a importância
do dinheiro! Talvez seja essa a mensagem da Liga com esse
mega-projeto do Marsídio. Mostrar pra Wall Street que suas muralhas
de dinheiro já não são fortes o bastante. Minha proposta, Arnaldo,
é que estamos diante de uma revolução, uma mudança fundamental
nas estruturas da sociedade. Se passamos, e certo ponto, da Era de
Reis para a Era do capital, estamos agora chegando em uma Era
tecnocrática, que pode ser ainda mais impiedosas do que aquela que a
precedeu, porque não só controlará os recursos e monitorará toda
a nossa vida, mas também terá controle sobre o desenvolvimento de
nossas crianças pra decidir o que elas podem ou não pensar. Estamos
diante de uma enorme ameaça a qualquer ideal de sociedade livre, de
uma besta logosófica que ameaça nos devorar sem o mínimo de aviso!
Já perdi a conta de
quantas coisas eu já aprendi com a minha mãe. As vezes, eu ficava
com a impressão de que eu era o único que realmente entendia essas
ideias dela, que leu mais de uma vez os livros que ela escreveu.
Depois de toda a tragédia da família, ela fugiu pro trabalho e eu
fui atrás dela pra descobrir todos esse segredos magníficos que ela
investigava. A sociologia do poder, que Mistura Foulcault com Marx e
Feyerabend pra mostrar pro mundo que os heróis da civilização
estão se transformando em algozes, em tiranos! É claro que ninguém
ouve o que ela diz e que 500 páginas são algo inaceitável pra uma
geração que cresceu lendo apenas 144 caracteres, então acabou que
eu fui uma as poucas pessoas a entrar em contato com esse segredos
que realmente pôde fazer algo a respeito. Não que ela fosse ficar
orgulhosa do que eu acabei fazendo com suas ideias, provavelmente
ficaria enojada, mas pessoalmente eu a considerava uma heroína
pessoal.
O sol começou a nascer e
chegou a hora do meu anúncio. Seria um momento de transição em que
os amigos do Emanuel finalmente descobririam quem eu sou e do que sou
capaz. Eu mentiria se dissesse que não gostava de ser tratado como
se fosse um herói. Mesmo que, no fundo, eles só me vissem um mero
burocrata estúpido. Eu fazia minha mágica (ou pelo menos eles
pensavam que era mágica) e os recursos da universidade apareciam,
tornando todos os aspectos mais improváveis do projeto possíveis.
Investi bastante dinheiro, tempo e favores pra fazer essa ideia do
Emanuel acontecer porque entendi o momento político. Pinkman
facilitou meu acordo com a liga por essa patente em troca do Marsídio
do mercado negro brasileiro e mais a quantia básica em dinheiro.
Estávamos tão bem de acordo que eles venderem a patente da antiga
técnica de purificação de água pra obviamente ser vazada pro
resto do mundo. E não já não importava quantos processos eles
abrissem contra mim: nunca houve um registro de patente no nome
daquele grupo de pesquisa. Era uma patente minha que foi “vendida”
para a liga, cimentando de uma vez por todas as minhas relações com
esse grupo. Muitos diziam que Pinkman é um louco que apenas recebe
algum respeito por causa de seu total e rápido domínio sobre o
Marsídio, mas eu conheço um homem ambicioso quando vejo. Ele
dominou o Marsídio e, ao invés de produzir bens de consumo e
patentes com isso, começou a formar uma rede dentro da liga,
ensinando outros cientistas e fazendo contribuições vitais pras
suas pesquisas. De uma maneira parecida comigo, ele formou uma rede
de subordinados poderosos, cuja ascensão dependeu dele e que
cederiam recursos de pesquisa sem questionar. Eu sabia que as
motivações dele não eram simples, sabia que ele queria algo muito
maior e certamente queria estar do lado certo quando os planos dele
se concretizassem. Nós dois eramos muito parecidos a esse respeito:
estávamos escalando em busca de muito mais poder do que tínhamos,
que no foi dado. A diferença é que ele queria o poder de mudar, de
controlar os aspectos mais fundamentais do que se entende por
realidade, enquanto que eu me contentava com minha ânsia
indeterminada.
Fui até aquela sala de
reunião onde o projeto foi pensado, discutido e, em última análise,
desenvolvido. Cadeiras espalhadas mostravam bastante da dinâmica
informal que eles formaram. Um vínculo que os ajudou a realizar o
trabalho de maneira mais eficaz, mas que também os tornou mais
idiotas quando a respeito de qualquer outro integrante. Eu os vi
contrariarem a evidência para defender um ao outro como se fossem
parte de algum culto religioso. Podiam estar na fronteira entre o
passado e o futuro e fazendo história da ciência, mas ainda eram
primatas como qualquer outro, com seu instinto de bando. E não
existem grupos sábios: grupos são sempre nivelados pelo ponto mais
baixo da média dos indivíduos. Não é tão surpreendente, afinal,
que esse fosse um dos poucos grupos relativamente grandes de pesquisa
a realmente funcionar tão bem, quando normalmente uns três
pesquisadores com seus robôs já bastavam pra ocorrerem conflitos.
A primeira a entrar na
sala foi a Juliana, justamente a pesquisadora mais emocional do grupo
e que era informalmente responsável por organizar as
confraternizações do grupo. Quando me viu, parecia em pânico e com
raiva ao mesmo tempo. Sua respiração estava acelerada e seus punhos
cerrados enquanto todos os outros do grupo foram entrando,
visivelmente confusos com a minha presença.
- O que você tá fazendo
aqui? Cadê o reginaldo?! - gritou Juliana com lágrimas nos olhos
Eu até pensava em fazer
um discurso antes, mas como ela decidiu ir direto ao assunto, apenas
liguei a TV e deixei que eles vissem por si próprios. O espetáculo
estava montado de praticamente todas as velhas emissoras de TV
estavam cobrindo aquele massacre em seu desesperado intuito de
conseguir de volta a audiência perdida. Abandonaram todo o pudor em
seu sensacionalismo e era justamente com aquilo que eu contava. Como
sempre, o jornalista apareceu pra comentar, mas até esse que
costumava fazer espetáculos de raiva falsa estava chocado com a
mensagem que deixei. Mas ele tomou forças pra falar:
“É assombroso,
inacreditável. Se você ligou sua tevê agora e está se perguntando
o que aconteceu, te conto agora: 50 pessoas, uma família inteira!
Foram todos torturados, mortos e postos pra exibição! Que tipo de
monstro faria, isso, me perguntam? Que tipo de monstro mataria
crianças, idosos, uma família inteira?! Mas eu sei o que aconteceu,
meus espectadores sabem o que aconteceu! Esse homem, Reginaldo da
silva, de 35 anos, e toda a sua família vinha enfrentando a União.
Não a do governo, mas a união de tudo o que há de podre no nosso
país. Sem apoio do Estado, que nunca deu conta dos hackers desses
marginais, ele e seus familiares lutavam por própria conta e risco
contra essa corja! Isso enquanto o Estado se dá o direito manter em
sigilo todo o sistema de monitoramento que mal funciona e pessoas
filmando com seus óculos trabalham mais do que eles! Isso, meus
caros, é uma mensagem dessa corja de criminosos. Estão nos dizendo
que nosso governo, nossa polícia, nossos impostos não podem nos
salvar. Isso, meus caros, é o preço da impunidade, é o preço de
um sistema de vigilância que não funciona. Querem dar argumento,
que é privacidade isso, direito a imagem aquilo. Mas nós estamos
dando privacidade pra BANDIDO roubar, matar, sequestrar! Cadê as
filmagens dessa atrocidade? A central da prefeitura parou de
funcionar, como sempre acontece quando esses, me desculpem o termo,
filhos da puta aparecem pra infernizar a nossa vida! Quando esses
desgraçados vendem drogas na porta das escolas dos nossos filhos! Aí
é que as câmeras falham! Cadê a privacidade da Josane, a empregada
que ficou bêbada e tirou a roupa na rua? Por acaso a cena não está
por todo canto da internet? A que ponto nós chegamos, ouvinte, que
protegemos o INIMIGO e fazemos piada uns dos outros como se NADA
estivesse acontecendo!!? Querem entrar no comercial, mas eu ainda não
acabei! Eu mesmo aqui nesse programa me coloquei contra a abertura da
vigilância, mas hoje eu mudei de ideia. Hoje eu falo pra todo o
país: Nós precisamos que todos os cidadãos tenham acesso constante
às imagens da cidade, que os próprios cidadãos registrem e
denunciem isso! Que essa corja seja publicamente exposta! Isso tem
que acabar!”
Ele estava pra continuar
a falar, mas as imagens do massacre voltaram a ser exibidas e ele foi
cortado. Parece que a mídia realmente não estava entendendo o que
aconteceu e meu plano estava indo muito bem.
- Tá dizendo o que, que
foi você quem fez isso? Você não me assusta, Fred – Disse
Juliana
- Eu acho que foi ele
sim, Ju. - disse André
- O quê? Tá louco,
andré! Ele é só um fracassado que veio aqui porque é irmão do
Emanuel! - ela protestou
- Vocês me chamaram de
paranoico, então eu não falei nada, mas pesquisei a vida dele. Ele
é rico, rico pra caralho, ju.
- O que? Porque você não
falou nada? Como assim? - Déborah falou confusa.
Aquela Déborah sempre
mexeu comigo. Uma pena que, da posição em que eu estava, não seria
possível usar meus recursos com ela. E demorei bastante tempo pra
colocar outra no lugar dela, daquela beleza vulgar que ela tinha.
Nunca mais ouvi dela depois daquele dia...
- É verdade, Déby. Ele
é dono de dezenas de lanchonetes de fast food. Todas as melhores, as
mais movimentadas são dele. Ele tem comércio em vários setores e
até coisa com o exterior. Eu descobri tudo direitinho só semana
passada, antes eu só sabia que ele era rico, mas não dava pra saber
que era tanto.
- Porque você roubou
nosso projeto, seu filho da puta?! - Juliana gritou
- Roubar? Eu? Não
ficaram sabendo, não é? Esse projeto é meu e vocês são minha
equipe.
- Ah sim, quero ver a
reitoria acreditar que temos um administrador que faz nanotecnologia!
- disse Déborah
- É, você tá fodido,
cara! A justiça vai te obrigar a devolver todo o nosso dinheiro e
você vai pra cadeia!
Eu tinha mais coisas pra
falar nos meus planos, mas acabei simplesmente mostrando o
instrumento usado pra marcar os familiares do Reginaldo. Fiquei só
olhando pros restos carbonizados que se acumularam sobre ele. André
foi o primeiro a entender. Suas lágrimas foram poucas e desceram sem
causar nenhuma modificação em seu rosto. Pensei que ele estava
apático, pois ficou em silêncio.
- André, caralho, porque
você não falou nada!? Você sabia que ele era isso, cara, que porra
é essa!
Ele permaneceu em
silêncio, aparentando estar ausente, mas eu não percebia nenhuma
emoção em seu rosto.
- Fala alguma coisa,
André, diz que ela tá errada! - Disse júnior, que mal se fazia
notar no local
- Ele tá quieto porque é
verdade. Ele sabe que essa porra é culpa dele! Ele que defendeu o
Fred naquele dia no bar quando estavamos decidindo quem aceitar pro
cargo. Ele é igualzinho, ele também deve estar ganhando alguma
coisa com isso!
Juliana estava cada vez
mais descontrolada. Começou a gritar e derrubar cadeiras pela sala
até partir pra cima do André, que nem tentou se defender. Socos,
tapas, arranhões, nada parecia afetar o homem.
- Para, Ju, para com
isso! - Disse Déborah – vamos embora daqui, não quero mais ficar
aqui!
Eles olharam pro André
no caminho da saída, mas não o chamaram pra ir embora. De alguma
maneira, criaram um culpado e passaram a odiá-lo como se a causa de
todo o mal não estivesse diante deles ali na sala. Talvez estivessem
com tanto medo que eu me tornei como uma força da natureza. Como
quando um maremoto destrói uma cidade: ninguém culpa Deus ou a Mãe
natureza, é sempre culpa da usina geotérmica mais próxima ou de
projetos secretos do governo. Afinal, quem vai culpar o cara que pode
lançar raios e sabe de tudo? No fundo, não sei proque reagiram
daquela maneira. Se já tinham suspeitas, se ele já tinha feito
outra coisa. Mas anos se passaram até esse grupo se reconciliar.
- Eu não preciso desse
dinheiro, não preciso desse projeto. Eu vou fazer outro projeto
maior e vou entrar na liga. Seu jogos não vão te salvar, filho da
puta, quando eu vier atrás de você. Vou estripar você e toda a sua
família. Você vai pagar por essa merda com o seu sangue e vai
sofrer por tudo o que fez.
Ele não parecia sentir
raiva. Não, o que vi em seus olhos foi legítimo ódio e uma mente
determinada. Não pude deixar de admirar o autocontrole que ele
demonstrou e se tem uma coisa que admiro é a ambição. Um cara com
a ambição se escalar e se tornar poderoso com o único intuito de
me matar merece, no mínimo, meu respeito!
- Respeito sua ambição.
Só lembre: nunca tente ferir aquilo que não pode matar. Feras
feridas são duas vezes mais perigosas.
Ele
continuou olhando nos meus olhos por alguns segundos. Como se,
naquele instante, todo seu ódio estivesse sendo cimentado. Eu olhei
de volta querendo alimentar o sentimento. Quando ele saiu, verifiquei
minhas armas e acionei meu monitorador midiático. Um estudando com
tudo a ganhar e nada a perder que produzia relatórios sobre toda a
cobertura midiática a respeito dos eventos que me interessavam. Algo
interessante aconteceu que eu jamais teria esperado: um grupo de
membros da União foi executado, presumivelmente como resultado de
algum conflito dentro da organização. Eles não sabiam que todo o
plano estava montado e que seu fim estava próximo. Simplesmente
alguém de lá entendia que crises são oportunidades e, mesmo sem
saber o que aconteceu, culpou seus oponentes. Segundo meus hackers,
foi um golpe pra tomada de poder. E foi excelente pra mim, que tinha
já uns vinte inimigos a menos pra me preocupar e um novo líder que
não podia mobilizar as forças da organização pra investigar o que
de fato aconteceu, já que isso comprometeria suas alegações. A
cidade já era minha. Enquanto eu tomava meu whisky e assistia o
plano se concretizar, Letícia me ligou.
- Fred,
vem que a gente vai comer uma pizza pra comemorar!
- O que
estamos comemorando?
- Passei
no vestibular! Eu vou pra Liga!
- Que
orgulho! Escolha qualquer lugar da cidade e traga quantos amigos
quiser! Essa é por minha conta.
- Viu,
como você tá? Ta meio sumido esses dias, não dá notícias...
Esqueceu a irmã, né?
- Eu to
bem, Lê. É que eu to trabalhando bastante, sabe? Colocando os
negócios em ordem, é coisa difícil.
- Meu
irmão o magnata! Você tem que vir no meu colégio me buscar de moto
de novo, as meninas morreram de inveja!
- Vou só
se você for com a camisa da Faculdade de Ecologia!
- Como
você sabe que escolhi ecologia? Eu não te falei, seu fofoqueiro!
- Eu
conheço minha irmãzinhas!
- Oi? Ah,
to indo!
- Ta
falando comigo?
- Oi
Fred, to aqui. Eu tava falando com uma amiga. To indo, se cuida aí,
viu? Te vejo mais tarde!
E a cada
dia que passava eu sentia mais intensamente que nasci na família
certa. Com todos os altos e baixos, crises e brigas, todo mundo
parecia estar firme e forte na escalada. Uma família de heróis,
cada um com seu próprio desfecho trágico.
0 comentários:
Postar um comentário