Yin, Yang e um novo mundo
Constantino Peçanha, 2075
Era ainda a década de
noventa do século 20, mas ele estava em um daqueles elevadores que
também funcionam na vertical. Só que esse parecia mais com o da
Fantástica Fabrica de Chocolate, porque voava aí com propulsores
antigos que pareciam ter a eficiência de sistemas modernos de voo. E
ele via a cidade do Rio de janeiro, cada canto em uma época
diferente, quase como uma progressão, como se ele estivesse viajando
no tempo além de no espaço. E aquela viajem começou a me deixar
angustiado. Especialmente porque o elevador parecia inoperante e
incapaz de fazer o caminho inverso. E mesmo assim, olhando pra trás
naquele bloco de vidro e via que o futuro estava tomando conta de
tudo como praga assolando a terra. Apareceu uma garrafa de uísque
jogada no chão e ele correu ávido pra tomá-la. Queria beber,
queria ficar com os sentidos alterados e esquecer que aquele tempo
estava passando e não voltaria mais. Todo o elevador balançou, mas
ele não parava de beber. A bebida escorria pelo pescoço dele mas,
de alguma forma, sua pele absorvia tudo.
- Sai dessa, tino! Sai
dessa, augusto! - disse Luíza
Mas ele não sabia
qual delas estava diante dele. Se a nova, se a antiga, tudo estava
misturado. Uma combinação de expressões faciais no rosto dela
dava-lhe um tom macabro, mas, ao mesmo tempo, irresistível. O whisky
saia pelo teto, pronto pra afogá-lo, mas acabou derrubando todo o
elevador no chão. Luiza desapareceu e ele desmaiou ali mesmo, em uma
rua cheia de prédios sem janela. “Cavernas de aço”, ele
delirava no chão, “vivemos em cavernas de aço! Isso foi previsto,
eu digo, nós já sabíamos! Cadê o amor?”
O mundo sacudiu mais
uma vez e ele apareceu em seu laboratório. Logo no começo, quando
ele cruzou a primeira fronteira. Aquele primeiro grupo de cobaias
humanas, todos estupradores condenados. A equipe sabia bem o padrão
de impulsos elétricos no cérebro e como induzir as convulsões. Só
assim eles poderiam coletar dados capazes de gerar a solução. Os
campos eletromagnéticos foram acionados e os prisioneiros começaram
a convulsionar nas macas enquanto eles registravam toda a atividade
do cérebro. Ele sentiu novamente aquele pavor de ser descoberto e
depois a euforia de perceber que dois dos protocolos de indução de
corrente cancelaram a convulsão independentemente da etapa. Eles
criaram um grupo de 50 epiléticos, porque todo a convulsão causava
a epilepsia, mas conseguiram criar um mecanismo que suprime
convulsões antes mesmo que os pacientes pudessem perceber. Um
pesquisador sem rosto veio falar pra ele exatamente o que ele pensou
na época:
- Olha só isso! Olha
só o que nós somos capazes de realizar quando pesquisamos com
liberdade! Nós curamos a epilepsia em um dia! Puta que o pariu, nós
curamos a epilepsia!
Mas luíza estava em
uma das macas convulsionando. Ela tentava estender o braço pra ele,
mas a cada segundo que passava ela piorava e os equipamentos estavam
funcionando. =
- Porra, porque ela
não se recupera, porque!? Porra, tráz ela de volta, vamos resolver
essa merda! - ele gritou desesperado
Mas os cientistas
desapareceram e ele já estava no meio da savana, onde os
prisioneiros foram abandonados. Na época, ele pensou que eles
estavam bem, porque agora eram livre e escaparam da sentença de
morte. Mas eles não passavam de indigentes com defeito cerebral no
meio de uma selva repleta de grandes predadores. Eles estavam
condenados à morte do mesmo jeito e certamente o governo ditatorial
daquele país não deixaria que eles vivessem normalmente em
sociedade. Foram expulsos do convívio humano, mas não antes de
tirarem deles tudo o que tinham. Até mesmo a sanidade, como no caso
de um grupo em que o pior tipo de epilepsia foi induzida, gerando até
evidências de alucinação visual. E Luíza estava no meio desses,
sendo devorada por hienas enquanto convulsionava e a espuma saia de
sua boca. Ele tentou correr na direção dela, mas suas pernas
estavam amarradas a uma bola de ferro e mais uma vez o mundo começou
a tremer. Dessa vez foi forte demais e ele caiu.
- Tino, acorda pelo amor
de Deus! - Disse luíza
Eu estava em uma cama com
a roupa molhada de suor e Luíza em pânico diante de mim.
- Cara, nunca mais vou
deixar você beber! Você estava se sacudindo todo e gritando.
Parecia que iam te matar e você não acordava. Eu fiquei te
sacudindo feito louca e bati em você até, mas você não acordava.
- Não acho que tenha
sido a bebida – respondi enquanto meu endocomputador negociava com
meu cérebro recém-desperto
- O que foi então? Sério
que você me assustou muito!
- Foi só um pesadelo.
Nem to lembrando direito mais como ele foi. Mas meu corpo deve ter
bloqueado seu estímulo sensorial. Foi só um probleminha de ajuste
tecnológico, porque meu corpo estava programado pra despertar apenas
no horário estabelecido por mim antes de ir dormir.
- O que? Como assim,
cara? Que isso? Nunca ouvi falar disso.
- Esse tipo de tecnologia
não está no mercado financeiro. - falei enquanto levantava da cama
– mas como foi a noite como o indulger lá?
- Nossa, eu gozei de
verdade! Eu queria me convencer de que era a mesma coisa, porque até
hoje eu só tive orgasmo por indução, sabe? Mas não é a mesma
coisa, cara! Sério, ele tá até lá no quarto ainda, vem que eu vou
te mostrar.
Ela me puxou e fui junto,
ainda tentando me recompor. Meu sistema estava com dificuldade pra
desacelerar meu coração, tudo foi rápido demais. Uma sensação de
desespero tomou conta de mim. Um senso inexorável de urgência que
me dizia que algo tinha que mudar, algo muito profundo tinha que
mudar. Eu precisava recuperar alguma coisa perdida, voltar atrás.
Mas eu já não tinha o costume de pensar nos meus sonhos e já era
materialista demais pra acreditar que eles tinham significado.
Quando chegamos no quarto
e ele estava vazio.
- Droga, ele foi embora e
nem se despediu...! - ela disse num tom desapontado – mas eu já
sei quem ele é, eu vou achar ele. Ele vai ver só!
Pus meus óculos, que
estavam no meu bolso, e vi a mensagem de Mark avisando que o
transporte estava pronto. Meu coração disparou, porque aí eu já
sabia o que fazer.
- Amanhã você me
apresenta ele, pode ser? - falei pra ela enquanto desbloqueava um
canal especial de comunicação no meu sistema
- Que foi, já vai
embora? Poxa, mas porque?
- Tenho umas coisas que
eu tenho que fazer, Luíza. Mas amanhã prometo que conheço seu
indulger. Se você sabe achar ele, não precisamos ter pressa, certo?
- Ah não, eu vou com
você! Que isso, que você tem que fazer se você tá aposentado?
- Você não entenderia.
É coisa minha...
Mas ela não se contentou
e veio comigo. Em uma virada estranha de comportamento, ela parou de
falar por completo, como quem não quer conversar, mas, ainda assim,
me seguia como se estivesse fazendo algum tipo de protesto. Aquilo
era perigoso demais pra ela, mas por algum motivo eu não conseguia
mandá-la embora. A presença dela me trazia um tipo estranho de
tranquilidade. Fosse como fosse, qualquer coisa que trouxesse um
pouco de paz naquele momento eu aceitaria...
- Já viu que não sou do
tipo de aceita um não como resposta, né? - ela disse com ousadia
- Porque você não vai
atrás do seu indulger, Luíza?
- Ah, depois eu vejo
isso. Você tá muito estranho, quero saber o que está acontecendo.
- Querida, confie em mim.
Tem coisas que é melhor você nunca saber. Porque não há o que
faça você esquecer, fica ali registrado em algum canto da sua
cabeça e sempre volta pra te atormentar.
Recebi uma mensagem do
Creed. Por incrível que pareça, escreveu em texto corrido.
“Tenho coisas urgentes
pra discutir com você. Estamos numa encruzilhada, amigo. Chegou a
hora de mudar isso. Se livre dessa garota. Esse mundo já não pode
nos abrigar e eu tenho um plano pra conseguirmos um novo começo, uma
segunda chance pra fazermos tudo diferente. Nós vamos abandonar esse
mundo doente, cara, eu achei a resposta!”
Então eu respondi.
“Pode falar, cara.
Cansei de segredos e essa menina aí me deixa calmo.”
Nesse ponto já estávamos
na minha casa e, estranhamente, ele se mostrou por holografia na
sala. Considerando que Luíza estava ali, algo estava muito errado,
porque o Creed que eu conhecia protegia sua identidade
agressivamente.
- É bom te ver,
Constantino. Muitos anos já passaram! - ele falou
- Você está mudado.
Expressando emoções assim, mostrando seu rosto na frente de
estranhos. Aliás, como você tá me vendo.
- Essa moça aí,
auto-denominada luíza, não tem defesas razoáveis nos óculos.
Luíza começou a operar
nervosamente os óculos ativando seus sistemas de defesa inutilmente.
Achou que algo ruim aconteceria por causa dela, aparentemente.
- Não se preocupa,
Luíza. Ele não vai te fazer mal – falei em tom nostálgico
- Porque agora, depois de
todos esses anos, você quer falar comigo? Resolveu se desculpar?
- Já te falei que esse
seu maniqueísmo é maluquice sua. Você quer achar alguém pra
culpar porque no fundo acha que a culpa é sua. Mas não é culpa de
ninguém, cara. Foi escolha dela, entende?
- É verdade, Tino. Eu li
tudo sobre isso e não é culpa de ninguém. Ela viveu o que tinha
que viver, já estava pronta pra ir.
Eu não conseguia mais
falar. Minhas energias foram drenadas pra algum lugar onde eu não
podia alcançá-las. Ele continuou.
- Eu vim aqui porque
consegui concluir um plano louco que considerava impossível. Eu
construí um banco de dados extenso com os mais recentes avanços
tecnológicos da liga e outros lugares do mundo. Todos os dados são
detalhados suficientemente pra serem interpretados. É uma fonte de
transferências tecnológica!
- Você fala como se a
liga não fosse simplesmente desmantelar qualquer tentativa de
implementação dessa tecnologia! Você tem boa memória, Dwain, e
não é nada ingênuo. Ta tendo surto de democracia agora?
- Não é nada disso,
cara, deixa eu terminar. Lembra daquela antiga colônia de marte, que
estava sobrevivendo basicamente de vender marsídio depois que deixou
de ser apelativa pra mídia?
- Sim. Já tinham 800
pessoas e parece que tinha gente querendo voltar, mas ninguém pra
financiar um projeto espacial marciano ou mandar naves de “resgate”
- As coisas não estavam
acontecendo bem assim. Eles passaram informações desse tipo pra
desacreditar o potencial marciano, mas eles estão avançando a
ciência e expandindo a colônia. Tem bastante espaço lá, mas eles
têm alguns fatores limitantes, que são basicamente a escassez de
recursos básicos encontrador em abundância na terra e algumas
tecnologias que foram inventadas apenas recentemente pela liga, que
também podem auxiliar a colônia. Eu preparei tudo, cara. Matéria
prima, um banco de dados de patentes e descrições metodológicas
meticulosas, tudo!
- E você acha o que, que
a liga não pode chegar até lá?
- Eu acho que a liga não
sabe que eu tenho o que tenho. Se soubessem, estariam atrás de mim,
mas não estão. Eles não conseguem lidar com meus novos protocolos
da randomização superposta.
- Cara, só um comentário
à parte: você devia dar uns nomes mais poéticos pra esses
algoritmos. Sério, você mesmo disse que os nomes não caracteriza
as ideias.
- É, eu não sou bom com
os nomes. Mas eu também sou bom em física, cara. Eu criei um
sistema que cortou a comunicação entre terra e marte por um dia
inteiro. Fora os inconvenientes, esse sistema tem a vantagem absurda
que propiciar um corte total de comunicação, já que não há meio
físico de acontecer o transporte de informação. Eu vou levar toda
a tecnologia de pona de 2075 pra marte e os recursos necessários pra
humanidade prosperar nesse novo mundo. Eu estudei com calma a forma
que eles vivem, e é um absurdo. As pessoas por lá são, por
definição, estranhas, alienígenas e não julgam umas as outras.
Porque partem de todo tipo de contexto cultural, têm visões
flexíveis e pluralistas. Nunca houve sequer um assassinato naquele
planeta e eles nem têm planos pra produzir armas. É aquele efeito
do vridro quebrado, lembra? As pessoas não depredam nada! Acima de
tudo, todos se unem diante das adversidades de um planeta em que a
vida não poderia existir nesse nível de complexidade, tudo isso sem
existir um único líder!
- Sem líder? Mas eles
tinham líderes, se me lembro bem.
- Sim, mas isso era na
época do reality show, quando eles recebiam recursos financeiros e
tudo partindo da terra. Quando pararam de receber ajuda da terra,
pararam também de cumprir com as regrinhas boçais que deram a eles.
Começaram a fazer ciência, tecnologia, arte, tudo próprio de um
novo mundo.
- Tá, você tem aí suas
idealizações. Mas o que eu tenho a ver com isso?
- Não são idealizações,
cara. Eu tenho evidências pra isso, monitorei eles extensivamente e
posso provar o que estou falando. E o que você tem a ver? Vou te
dizer! Você é um outsider e nunca fez parte desse mundo. Se casou,
teve filhinhos, mas isso só fez deixar mais claro que você não
pertence aqui. Seus filhos estão espalhados por aí e vivem melhor
sem você, pelo que você mesmo disse, porque você nunca foi capaz
de dar a eles qualquer ferramenta que fosse pra que sobrevivessem no
mundo real. Não sei se essa nova Luíza aí também te resgatou de
uma ponte onde você escolheu pular, eu não sei se você está
apaixonadinho novamente, mas acho que agora você já é velho o
bastante pra entender que nenhuma buceta vai mudar o fato de que isso
não é o seu lar.
- Caralho, creed, você
realmente mudou muito. Cheio de lições e filosofias. Que porra é
essa?
- Ah, eu fiquei assim por
causa do meu ex-namorado. Ele que era assim e, quando fui ver,
assimilei pra mim.
- Aconteceu algo com ele?
- Eu prefiro não falar
disso. Mas ele já se foi desse mundo.
- Tá, mas e aí, porque
eu deveria aceitar que esse novo mundo é a resposta? Não pode ser
só mais uma África central?
- Não é, cara. As
pessoas naquele lugar pensam muito parecido com a gente. Marte se
tornou o refúgio daqueles que não conseguiram encontrar seu lugar
no mundo mas que, ainda assim, conseguia produzir coisas geniais de
uma maneira ou de outra. Com uma população de 872 pessoas, eles têm
6 neurocientistas e um amplo sistema de educação. Você entende que
quase 1% da população é de neurocientistas? Meu amigo que também
é hacker está morando lá e me disse que nunca se sentiu tão bem
em um lugar. Que realmente as pessoas não te julgam pelas suas
ações, mas antes ficam curiosas e te perguntam se você faz algo
que elas não esperavam. Os outsiders se reuniram ali do lado de fora
e forjaram um novo lado de dentro. É sério, cara.
- Eu não posso deixar
esse mundo, Creed. Eu tenho meus filhos aqui, eu tenho minhas
pendências e meus planos. Até plano de curto e médio prazo eu já
tenho.
- Você pode levar esse
moleque se quer dar uma de herói. Mas ele se escondeu numa tubulação
e tive que usar uns robôs bem avançados pra achar ele ali dentro.
Sabe que estão atrás dele e não vai se entregar. Mas se eu passar
a localização dele, você fecha seu acordo com essa escória com
quem você se envolveu.
- E você já entendeu
meus motivos? - perguntei desconfiado
- Não exatamente. Mas
imagino que essa menina aí não pode saber sobre eles. O que vocês
têm, afinal?
Ela pareceu querer falar,
mas ao invés disso se sentiu no sofá exatamente no mesmo lugar em
que a outra Luíza se sentava e começou a respirar fundo.
Rapidamente identifiquei o que estava acontecendo. Ela estava tendo
uma crise epilética e o equipamento de indução de campo interno
estava impedindo as convulsões. Lembrei do meu sonho e tive um
calafrio na espinha. Ela estava apenas parcialmente consciente
enquanto o equipamento impedia a crise dela, que seria severa. Ela
sabia bem o que estava acontecendo e parecia inclusive seguir o
protocolo de meditação que estabelecemos como eficazes na fase de
testes clínicos abertos.
- Foi aí que tudo
começou, não foi? Aquela bendita cura da epilepsia que originou os
ideais insanos de liga! - Creed falou
- É, foi quando sentimos
o real poder da ciência. Foi um veneno que nos consumia e nos atraia
impetuosamente. Nenhum de nós resistiu...
- Mas então, qual é o
plano que você tem com essa adoção? Eu sei que você nunca faz
algo assim sem ter alguns motivos, mas o que você pretende fazer
agora, qual é o próximo passo?
- Eu vou vestir aquele
traje experimental e matar todo mundo enquanto ele estiver preso em
realidade virtual. Esse é o plano.
Luíza esboçou uma
reação, mas teve uma leve convulsão e voltou a se concentrar no
exercício de meditação. Achei curioso que ela estivesse prestando
atenção na conversa, já que o propósito da meditação era
especialmente o de reduzir os estímulos sensoriais.
- Eles vão conseguir se
defender de você. Especialmente se você lançar o segundo traje com
um robô. Falo isso porque eles são muitos e você demoraria meses
fazendo isso.
- Você parece que já
tinha previsto que essa era a minha intenção. Se isso for verdade,
então você já deve ter alguma sugestão pra dar...
- Sim, eu tenho. Estudei
a estrutura organizacional como um todo e descobri que há dois eixos
nessa facção. Estão todos subordinados ao mesmo líder, mas eles
partiram de pontos diferentes: uns começaram a partir de negócios
legítimos e outros eram criminosos que foram englobados da antiga
União. Creio que não preciso explicar que esses dois grupos possuem
dois sistemas de crença bem diferentes, certo?
- Sim, onde você quer
chegar com isso?
- Você pode fazer com
que os dois grupos entrem em conflito lançando um único ataque bem
planejado. Hoje mesmo é um dia em que tradicionalmente as metades
dessa facção comemoram algum tipo de feriado. Se você atacar os
dois e matar figuras centrais, isso pode causar uma guerra na cidade.
- Que figuras centrais? -
perguntei - e como você pode saber quais são essas figuras?
- Eu criei um novo
sistema heurístico pra interpretar relações de grupos com base num
esquema antigo de psicologia social. Essas figuras centrais são de
pessoas que se opõem ao conflito entre as metades e que possuem
elevada influência no grupo, seja oficial ou apenas casual. Sem a
influência delas e com sua morte sendo atribuída ao outro lado, o
rancor vai gerar um enorme conflito que vai causar um rápido
declínio no número e na organização deles. Aí você pode
resgatar seus órfãos e compensar sua culpa.
- Porra, cara, esse final
aí da sua fala foi desnecessário. Na boa...
- Desnecessário,
doloroso! Cara, depois de todos esses anos eu esperava que você já
fosse menos hipersensível! Mantenha o foco no plano: Um dos lados
possui defesas compostas basicamente pro robôs que eu posso
adulterar de diversas formas, mas eles sabem que o outro lado da
facção não tem capacidade de fazer isso, então tudo o que vou
poder fazer é criar pequenos defeitos que vão tornar sua vida mais
fácil. Só que, no fim do dia, você vai ter que enfrentar todo tipo
de robô de guerra e eles fazem um estrago considerável, mesmo com o
manto de marsídio do traje, pois podem te lançar a centenas de
metros de distância. Então...
Creed foi falanso seu
plano e lembrei da surpresa com que vi essa característica dele pela
primeira vez. O cara simplesmente não precisa pensar: sempre tem um
plano pra enfrentar organizações pelo mundo, sempre mantém tudo
sob vigilância. Eu costumava chamá-lo de conspiracionista neurótico
por causa desse hábito, mas agora tudo começou a parecer bem mais
conveniente. Eu ouvi o plano e entendi todas as suas etapas, mas não
podia evitar que meus olhos fossem de volta pra Luiza. Engraçado
como tudo aconteceu. Eu saí perdido e sem rumo, uma moça sangrou
sobre mim fisicamente e acabou abrindo as feridas da minha alma. E o
mais estranho: de alguma forma a simples presença dela me acalmava
como se fosse uma droga desenhada especificamente pra todas as minhas
ansiedades e medos.
- Você tá ouvindo,
Constantino?
- To aqui Dwain, to
ouvindo sim...
- Cara, meu nome é
Creed.
- Ok, desculpa. Com esse
negócio de mudança de nome eu nunca sei como te chamar. Por muito
tempo o nome Creed me parecia apenas como um apelido, não um nome.
Enfim, quer que eu espere pra você trazer sua nova unidade de
processamento, é isso?
- Sim, ela é imune a
pulsos eletromagnéticos. Então eles não podem desligar o
processador central do seu robô e vão inclusive pensar que é uma
pessoa, do jeito que são burros. Mas tome cuidado, porque eles têm
artilharia pesada e vão causar estrago pelo lugar todo!
- A... Água! - luíza
sussurou
Eu já sabia o que fazer
e até alguns detalhes sobre a epilepsia dela pelos padrões de
convulsão que estavam sendo suprimidos. Um efeito colateral da
supressão desse tipo de crise é justamente a desidratação das
vias aéreas, e do sistema gastrointestinal superior, então a pessoa
fica com uma sensação absurda de sede quando a crise acaba. Nem
chamei o Wallie e quando me dei conta eu já estava com uma garrafa
de água e um copo grande. Fui tomado por um leve senso de urgência,
daqueles que se tem no cotidiano sobre uma coisa que é importante,
mas comum demais pra ser excepcional. Como se ela fosse da minha
família!
- Obrigado, tino. Olha,
eu posso vestir o traje, viu?
- O que? Você
enlouqueceu, menina? Isso é perigoso! - gritei
- Olha o respeito, tino,
que eu não sou menina coisa nenhuma! Já passei dos trinta, sou
balzaquiana e sou top 10 no Gear of war e sei operar todo tipo de
traje de guerra!
- O que? Olha, isso não
é jogo e nem realidade virtual. As coisas são diferentes!
- Na verdade não sou,
constantino. Esse jogo aí ao qual ela se refere possui réplicas
idênticas de praticamente todo tipo de traje que existe. Existem
pelo menos três trajes com a mesma interface que o seu, porque ela
foi vendida, e dois deles têm versões virtuais no GW.
- Que tipo de absurdo é
esse? Vocês não podem estar falando sério!
- Falo muito sério,
cara. Hoje em dia os soldados são treinados em realidade virtual pra
aprenderem a controlar robôs e operar trajes especiais. E esses
programas de treinamento viraram jogos. Na realidade, as primeiras
realidades virtuais complexas foram desenhadas especificamente pra
treinamento militar e é por isso que a maioria dos ambientes
virtuais hoje são de jogos de guerra.
- Seja como for, ela não
pode participar disso. Não, isso é perigoso demais.
- Deixa de hipocrisia,
porra! Você pode sair pro aí dando uma de herói sem nenhum
treinamento colocando a SUA vida em risco mas eu não posso? Vai pra
merda cara!
- A menina tem um
ponto... - disse Creed
- Cara, você não está
ajudando – respondi mais impaciente – Não se trata só do
perigo. A questão é que eu já vivi a minha vida, Luiza. Você
ainda tem um mundo pela frente e merece mais do que morrer por causa
de uma queda em algum beco cheio de viciados!
- Cara, não é você
quem tem que decidir o que eu mereço ou não. Eu sou dona do meu
próprio nariz e pro seu governo eu estou a meses sem morrer uma
única vez no GW!
- Luiza, qual é o seu
nick por lá? - Creed perguntou
- Vandan697
- Caralho, você é
aquela que ativou a dor em 100% e matou 50 na batalha por Solaris?!
- É sou eu mesma!
- Nossa, eu juro que nem
procurei saber, mas pensava que era um homem! Até assisti o que você
fez naquela batalha com gente comentando suas táticas. Top 10 com
certeza!
- Quando as duas crianças
estiverem satisfeitas com todo esse papo de jogos e guerrinhas
virtuais, podemos voltar ao fato de que isso foi ideia minha e de que
não vou arriscar a vida de ninguém por causa dessa loucura?
- Loucura, você diz?
Você pensa que eu nunca sonhei com fazer algo assim? Pensa que eu
nunca me senti desamparada quando soube de gente que tentou e foi
massacrada por falta de recursos? Eu comecei a jogar isso e sempre
tive esses caras na minha cabeça, tino. Eu me mudei pra esse buraco
porque eu tinha a vã esperança de que conseguiria encontrar alguma
falha nessa facção e prejudicar seus negócios, mas eles têm tudo
organizado e são muito mais brutais do que eu pensava. Eu larguei o
curso de ciências sociais e fui pra arquitetura porque já não
suportava mais as análises sobre essa realidade sendo tratada como
um simples fenômeno social, cara. Não é! É algum filho da puta,
ou um grupo de desgraçados, que deu origem a essa merda. É
planejado demais pra ser um mero fenômeno social, entende? E agora
eu tenho diante de mim a oportunidade de dar um golpe fatal neles e
você vem me dizer que é perigoso demais porque eu sou uma
garotinha? Vai tomar no seu cu, tino. Vai tomar no cu!
- Se serve pra alguma
coisa, acho que ela assim de TPM pode realmente causar estrago nos
caras – creed falou
- Eu não tenho TPM,
caralho!
- Mas parece que tem! Vai
que constantino encontra evidências bioquímicas de que você
continua tendo flutuações hormonais depois de desligar o ciclo
menstrual?
Luíza ficou confusa. Não
sabia se ele a apoiava ou não. Pareceu esboçar coisas pra falar,
mas parou antes de pronunciar a primeira palavra todas as vezes até
que finalmente optou pelo silêncio.
- Luiza, eu não sabia
dessas coisas. Pensei que morava naquele lugar porque seus pais se
recusavam a pagar coisa melhor.
- Meus pais reduziram
minha mesada como protesto por eu escolher aquele lugar. Disseram que
vou viver de acordo com minhas escolhas. Sabe como é, têm mania de
achar que sabem tanto da vida que as lições deles são mero
treinamento, um reflexo da realidade imutável e objetiva que é o
desenvolvimento humano.
- Você não fica
desorientada depois das crises, luíza? Desculpa mudar de assunto,
mas que você voltou falando muita coisa intelectual, sabe?
- Não, eu sou diferente.
Depois das crises eu me sinto muito melhor. E isso não é nada
intelectual cara. Acadêmicos podem sentar em seus cantinhos, cada um
com seus livros discutindo sem fim uma explicação pro inexplicável!
Isso pra mim é emocional, e é por dois motivos!
- Por causa das crianças,
imagino? Eu vi como você ficou quando decidi adotar o menino. Eu sei
que você gostou.
- sim, por causa das
crianças, por causa dos adultos que têm suas vidas destruídas.
Porque eu acredito nas coisas que a Luíza falava. Mas não é só
por isso.
- Porque, então?
- Porque eu devo a minha
vida a você, tino. Você não sabe a quantidade de coisas que passou
pela minha cabeça quando eu tive certeza que era você mesmo.
- O que eu fiz?
- Porra, como assim? Você
basicamente curou a epilepsia com seus experimentos. Inclusive é o
seu modelo experimental que deu origem à cura específica do meu
problema. Eu estaria morta ou então pelo menos incapaz de viver se
não fosse você. E você nem ganhou dinheiro nenhum com isso, pelo
que disseram!
- Ah, não ganhei mesmo.
Mas ganhei bastante recurso pra pesquisa dentro da liga. Isso é meio
que uma moeda de troca lá dentro, sabe?
- Sim, mas saindo de lá
você não ganhou. Nem ganhou o prêmio nobel que todo mundo acha que
mereceu! Cara, mesmo sem acreditar no que você tá fazendo, eu faria
por você. Pra te agradecer. Pode não ter sido tão pessoal pra você
desenvolver isso, mas pra mim foi completamente pessoal.
Lembrei da antiga Luíza.
Eu vi nos olhos dela que não conseguiria convencê-la do contrário.
Eu não queria que ela fosse porque queria encontrá-la depois que
tudo acabasse. Que ela desconsiderasse meu pedido, no entanto, era o
que eu realmente queria. Ela mostrou que, mesmo com todas as
diferenças da Luíza original, o mais fundamental era comum às
duas: uma impetuosa sede de justiça misturada com a esperança de
que, no fundo, o ser humano é essencialmente bom. Ela ainda tinha
aquele brilho nos olhos de quem acredita no ser humano. Eu não tinha
como resistir.
- Mas... Eu não quero
que você se machuque, luíza.
- E eu não quero que
VOCÊ se machuque! Como eu vou ficar aqui sabendo que deixei você
sair numa missão suicida? Não é só você que tem o direito de se
importar, cara. Não é só você que sente as coisas.
Eu não tinha palavras.
Mas ela viu pelo meu olhar que eu desisti de resistir e se virou pro
Creed.
- O modelo é o 267, né?
- Sim, mas tem algumas
modificações. Tem um tutorial específico pra mostrar isso.
- Porque tem
modificações?
- Porque eu encaixei
funcionalidades novas sem mudar o básico do sistema operacional pra
ser mais fácil pros soldados se adaptarem. Acabou que isso vai te
ajudar.
- Quais são as
funcionalidades?
- Tem algumas turbinas
pra mobilidade, esquiva automática de projéteis grandes e pulso
fotoelétrico embutido.
- Caralho, sério que tem
pulso fotoelétrico nesse traje! Que foda, cara!
- Tem sim, mas se lembre
de usar apenas se for detectada. O sistema de camuflagem funciona bem
e sei que você sabe como navegá-lo.
- Ah, eu sei sim. Só
enfrento os melhores!
Comecei a me sentir
idiota por não ser treinado pra fazer o que eu queria fazer. Meu
plano era bem fraco e sem o Creed eu realmente acabaria morto.
Novamente íamos nós em uma missão suicída que, a cada segundo,
parecia mais com um plano da Luíza e não meu. Foi como ver a
história se repetir. Só que dessa vez ela estava armada e pronta
pra guerra. Dessa vez eu já não tinha necessidade de proteger
ninguém e acreditava no que estava fazendo. Tudo isso se reforçou
quando ela falou pela última vez antes de entrar no quarto dos
trajes.
- Aliás, tino, eu sei
que você usou cobaias humanas. Ninguém declarou nem documentou
isso, mas todo mundo sabe que era necessário um modelo experimental
robusto com seres humanos. E todo mundo se cala sobre isso justamente
porque você salvou muito mais vidas do que tirou. Não sei se onde
você tirou suas cobaias e sinceramente espero que elas tenham
sobrevivido, mas eu entendo a sua motivação, sabe? Você ajudou
muita gente cara. Não precisa olhar pra trás e pensar que fez
alguma coisa errada. Você fez o que tinha que fazer, assim como
vamos sair agora pra fazer o que temos que fazer.
Eu tentei segurar e até
consegui até ela entrar no quarto, mas acabei chorando quando ela
entrou no quarto.
Pela primeira vez na
minha vida, aconteceram as duas coisas ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo
em que me senti acolhido, diante de uma pessoa que não estava sempre
pronta pra me julgar, também senti que podia contar com a presença
dela. Com minhas relações do passado, cristalizei uma visão
dicotômica sobre o amor. Que ele poderia ser estável, sólido e
exigente ou então leve, perfumado e volátil. Mas quando ela entrou
no quarto, meu ventre queimou e congelou e eu quis fazer o tempo
parar exatamente naquele momento. O tempo estava acabando, o menino
estava quase sendo encontrado porque parou de mudar de esconderijo e
o holograma que Creed projetou mostrando as localizações dele e dos
viciados que o procuravam indicava que estava na hora. Na ausência
dele, Luíza sairia pra atacar seus homens e eu sairia pra atacar os
homens do outro lado da facção. Surpreendentemente, aquilo foi
ideia minha, o cara que sempre quis se abster das lutas políticas e
pela justiça. É verdade o que Liana me disse: pra cada amor que
temos na vida, surgem lições, novidades psicológicas na nossa
vida. E esse era o legado da antiga Luíza dentro de mim. Mas e o da
nova, qual seria? Poderia o desejo falar mais alto do que o medo?
Peguei a taça de vinho,
mandei o Wallie dançar e apreciei minha introspecção enquanto
Creed explicava os detalhes do traje pra ela. O mundo girou e fechei
meus olhos. Meu sorriso se abriu sem que eu tivesse intenção: meu
medo desapareceu...
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