Emanuel Peçanha - 2075
Emanuel Peçanha - 2075
Eu vi um demônio diante
de mim. Pele vermelha, face do Deus celta e asas de morcego
resplandecentes. Ele estava parado diante de mim com os olhos fixados
no meu peito, confuso.
- Onde está? - ele
perguntou
- O que você quer? -
respondi confuso
- A escuridão do seu
coração. Cadê?!
- Deve estar por toda
parte. Não viu quantas pessoas eu massacrei?
- não, tem algo errado!
Você já devia ter se corrompido!
O monstro colocou as mãos
na cabeça e começou a gritar. Deu uns passos pra trás, tentando
sacudir algo pra fora de si. Até que uma espécie de aracnídeo
abriu o peito dele e saiu para fazer seu ninho em alguma árvore. Seu
corpo foi se fazendo líquido e desapareceu como se nunca tivesse
existido.
Liana apareceu, me
assustando mais do que qualquer demônio. Passou por mim sem perceber
minha presença e foi fazer carinho na aranha, que estranhamente foi
ganhando cores e se transformando em algum tipo de mamífero até se
fechar num casulo.
- O que é isso? -
perguntei pra ela
Ela se virou pra mim como
sempre fazia, sem dizer uma palavra, mas congelando todo o meu corpo
com um sorriso. Veio andando na minha direção, me tomou como se eu
fosse um bebê e me deitou no chão. Comigo deitado em seu colo, ela
fez carinho na minha cabeça e eu chorei.
- Porque você me deixou,
liana? Porque? - perguntei
- Se decide, manu. Quer
saber o que é aquilo ou porque eu fui embora?
Esqueci toda a tristeza e
sorri. Ela sempre me fazia tentar decidir as coisas só pra me fazer
ver que eu não me dedicava a nada e sempre largava minhas coisas
pela metade.
- Eu escolhi você. E
nunca desisti, até o fim! Eu fiz essa decisão, li...
- Só que a decisão não
era sua pra fazer, manu...
- Era de quem?
- Do destino, eu acho.
Quem sabe?
- Porra de destino. E
pensar que me lancei a mercê dele. Eu sinto tanto a sua falta,
sabia?
- Eu sei. Já fez a sua
decisão?
- Sim. O que é aquilo
ali no casulo se movendo?
- Aquilo é um tigre
branco
- O que? Mas era uma
aranha e entrou no casulo!
- É um tigre branco.
Você quis chamar de Baphomet e de aranha gigante, mas na verdade é
um tigre branco.
- Mas...
- Acredita em mim, manu.
É um tigre branco...
O filhote de tigre saiu
do casulo como se tivesse acabado de despertar de uma longa noite de
sono. E veio na minha direção. Não havia como ter medo daquela
criaturinha. Chegando perto de mim, subiu na minha barriga e veio até
o meu rosto me lamber.
- Isso é tigre ou
cachorro? - perguntei
Um vulto de cachorro
passou do meu lado, como se minhas palavras o tivesse materializado,
mas logo sumiu.
- Você foi atrás de
lobos, ovelhas, demônios e anjos, manu. Mas o tigre era o seu bicho
de estimação.
Fiz carinho no tigre e
percebi que tinha patas no lugar de mãos. De súbito, eu estava na
tundra e era um tigre. Pisei suavemente na neve e caminhei um pouco
até perceber que não havia nada de errado em ser um tigre.
Quando eu acordei, vi um
aviso no monitor dizendo que estávamos no Rio de Janeiro. Fred e os
caras da liga não me queriam perto do traje até conseguirem
recuperar alguma informação a respeito do que aconteceu. Tudo tinha
culminado até aquele momento e eu pensei que cometer aquele massacre
ligaria algum botão dentro de mim. Era como se um monstro estivesse
sempre ali dentro de mim, batendo na porta, pedindo pra sair. Quando
eu vesti o traje, foi pra me entregar. Eu já estava sozinho no mundo
e, afinal, porque seguir a vida negando que você é um monstro se na
verdade é apenas isso que você é?
Mas quando eu abri os
braços, meu peito doeu e não há nenhuma marca na minha pele ou
qualquer tipo de lesão no meu corpo. Eu parei de matar as pessoas
porque alguma coisa dentro de mim me trouxe uma dor horrível. A pior
que já senti, pra falar a verdade. Eu não sou um assassino. Nunca
fui, nunca serei. Só, quem sabe, um cara com um pouco de raiva, mas
isso não faz de mim um psicopata. Tive que sair e matar dezenas de
pessoas pra perceber que todo esse papo de “lado negro” nunca
passou de uma fantasia minha, uma coisa que eu temia tanto que tomou
proporções irreais. Eu não senti prazer em matar. Minha única
diversão mesmo foi desafiar as barreiras do espaço e do tempo.
Apreciei, em suma, a loucura, não a morte. Não que eu tenha me
sentido especialmente culpado pela morte de todas aquelas pessoas, é
claro. Não sou nenhum salvador da pátria, mas também não sou do
tipo que mata por puro prazer. Um tigre, como aquele que liana tinha
tatuado nas costas. Era lindo, porque, apesar de ser uma fera, estava
olhando pro horizonte tranquilamente.
Fosse o que fosse, minha
cabeça estava cheia demais. Eu precisava esquecer tudo aquilo e ser
o que nasci pra ser. Um Indulger. Só de imaginar eu já senti aquela
sensação de queimadura no peito que dá quando você acende a
tatuagem reluzente. Ela diz “indulge” e significa que passei por
todas as provas e sou um Indulger por vocação. Minhas roupas
estavam saturadas e eu precisava trocar, então fui à minha casa no
Centro com o bom e velho transporte público. Engraçado como o
moderno foi se misturando com o arcaico. Eu imaginava que tudo seria
diferente, mas aquilo parecia com o trem de antes e alguns muros
velhos e quebrados tinham várias décadas de existência, seus
construtores já perdidos no tempo. Prédios velhos, lembrando o fato
de que a cidade tem sua história, misturados com maravilhas da
bioarquitetura formavam uma cidade exuberantemente bizarra. Era bom
estar em casa, depois de todos aqueles anos rodando o mundo atrás de
alguma bobagem imponderável ou quem sabe só fugindo da minha
própria sombra.
Minha casa estava
impecável, mas o robô estava com claras falhas. Nem mesmo a mais
sofisticada peça tecnológica consegue se manter íntegra quando
colocada diante do abandono. Foram dois anos sem pisar na casa e eu
só lembrava que ela ainda existia por causa dos gastos que o robô
dava pra manter a casa exatamente com a mesma desordem em que a
deixei. Minhas notas ainda estavam espalhadas pelos chão e meus
brinquedos também. Peguei roupas do chão mesmo, porque o robô
lavou tudo e depois colocou no mesmo local onde as encontrou. Eram
ainda roupas daquelas que apenas mudam de cor, não têm telas no
ventre ou processadores na etiqueta. Apenas uma camisa que muda de
cor, coisa das antigas.
Vestido, bebi quase um
litro de água, comi minhas últimas conservas e fui até o Plasma
mais próximo. Passei um ano naquele treinamento virtual louco e
passei todo tipo de privação, mas a única que realmente me marcou
foi não poder satisfazer ninguém. Quando você aprende o valor de
dar prazer, amor pra outro ser humano, viver sem isso se torna um
suplício quase insuportável. A coisa fica ali naquele lugar entre
paixão, vício e obsessão. Quando cheguei no lugar e ativei,
finalmente, a tatuagem, lembrei do que aquela dor significava. Meu
coração acelerou e respirei fundo. Eu estava em casa!
- Heeey, love! Quanto
tempo, em? - uma voz feminina falou no meu ouvido
- Martha fucking Stewart!
- respondi
- Ah não, cara, já
mudei esse nome. Mas pode me chamar assim se quiser!
- E o que você faz por
essas partes, Martha?
- Só vivendo o sonho!
Escuta, é perfeito que você tenha chegado aqui. Tem uma garota ali
que confirmei que está aqui por pegadinha.
- Como você confirmou
isso? - perguntei incrédulo
- Eu vi os registros de
comunicação dela e tudo. Mas esqueça isso e veja a cara dela. Está
tomando água com a bolsinha dela e esperando alguma coisa. Ela é do
tipo religioso, cara. Vem destravar ela comigo?
- Dois indulgers pra uma
pessoa só? Sério?
- Qual é, man! Vamos lá,
em nome dos velhos tempos!
- Ah, Martha, quando vou
reunir forças pra te dizer não?
- Talvez agora que eu vou
destruir seu orgulho com meus novos truques!
- Boa sorte destruindo o
que não existe! Vamos lá, então!
Enquanto andávamos na
direção da moça, um cara que estava tentando conversar com ela
pareceu desapontado pelas respostas que ela dava e se afastou
frustrado. Que tipo de aberração seria aquela? Uma religiosa em um
Plasma no auge do século 21?
- Hello, darlin' –
disse Martha
- Desculpe, eu já falei
com aquele moço ali. Eu não bebo e não quero transar com ninguém.
Eu estou aqui pra uma reunião.
- Se importa se eu beber
por aqui? - perguntei
- Você tem seu
livre-arbítrio, não tem?
- Ah, cristã! Coisa rara
hoje em dia - Respondi
- Olha, se você veio
aqui pra fazer piada da minha fé, por favor pare. É sério, já
chega disso.
- Ninguém está fazendo
piada da sua fé, love – disse Martha
- Talvez vocês não, mas
meu parceiro de negócios acaba de me dizer que não faz negócios
com cristãos me mandando aqui. Estou aqui porque eu não quero
acreditar nisso, esperando que ele entre por aquela porta.
- Tem um terraço onde a
gente por sentar ver quem entra e sai daqui. Não tem barulho pra
agredir seus ouvidos e nem bebida pra te oferecerem. Quer vir com a
gente e conversar? - Martha disse fazendo carinho no cabelo
A mulher tirou a mão de
marta de sua cabeça e começou a respirar fundo. Alguma coisa a
respeito nela me fazia querer dar um beijo grego longo e elaborado.
Talvez aquele vestidinho e aquelas roupas sem nenhuma tecnologia.
Como se não existisse nenhuma merda nela, dentro ou fora. Finalmente
ela concordou.
- Tudo bem, eu vou lá,
mas não fica fazendo carinho na minha cabeça assim. Eu não gosto,
tá bem? - disse a mulher
Nós dois abraçamos a
moça e fomos andando até a saída.
- So... qual é o seu
nome, love? - Martha perguntou
- Jussara de almeida
- Bem, Jussara de
almeida, se a nossa companhia te incomodar é só você avisar, tudo
bem? - Martha falou
- Não, tudo bem. Meu
santo bateu com o de vocês dois.
Subimos por aquela escada
espiralada e fui logo abaixo dela. E, nossa, como a minha imaginação
foi longe. Fiquei me sentindo como o Indulger carente do poema na
parede da nossa sede lá em Dubai. Uma vergonha! Chegamos lá em cima
e logo Jussara deitou no colo de Martha. Certamente ela estava mais
rápida, mas se ela estava se gabando tanto, não podia ser que ela
estivesse dizendo que se tornou profissional em consolar cristãos.
Sentei na outra extremidade e ela pôs a canela no meu colo. Dei um
gole no meu Big Apple e acendi um cigarro de maconha.
- Por favor, não fuma
isso perto de mim. Eu não gosto dessas coisas. Legal ou não, eu não
gosto. - Jussara falou
Joguei o cigarro e dei
mais um gole olhando pra ela com uma pergunta no rosto.
- Beber pode, tudo bem.
Só não bebe demais.
- Posso fazer massagem no
seu pé? Você parece tão triste. Se seu sócio chegar eu ponho
rapidinho seu sapato de volta.
- Ah, não sei...
- Tudo bem, o pé é
seu...! Mas conta pra gente o que aconteceu aqui.
- Pois é, love –
Martha falou e virou seu copo de caipirinha – como você veio parar
aqui?
- Ah, mas a história é
tão longa...
- Você tá com tempo,
man? - martha perguntou
- Todo tempo do mundo –
respondi
- Bem, talvez você
esteja com pressa, jussara, mas nós não.
- Qual é o nome de
vocês?
- Oi, meu nome é Martha
e eu sou uma viciada! - martha disse erguendo um segundo copo de
caipirinha que tinha acabado de chegar
- E você, man? Seu nome
não pode ser Man – esboçando um leve sorriso
- Meu nome é Emanuel...
Martha arregalou os
olhos. Ela entendia o risco que significava dar o nome verdadeiro
pras pessoas. Ser capaz de desaparecer era a regra mais fundamental
da nossa ordem. Mas eu sabia que aquela ali, sendo cristã, mais cedo
ou mais tarde chegaria à conclusão de que escolhi aquele nome pra
agradá-la
- Emanuel é Deus
conosco, sabia? Deus conosco, nessa noite triste!
- Mas triste, love? Olha
só pro céu, que desafia essa cidade que nunca dorme com suas
estrelas. Ouça o silêncio desse cantinho.
- Eu não sei como vim
parar aqui, sabe? Não era pras coisas serem assim.
- E qual era o plano? -
perguntei
- Eu devia estar me
casando amanhã... Estava tudo marcado, sabem?
- Você fugiu do seu
casamento e veio parar aqui? - Martha perguntou
- Ah, eu queria mais pra
minha vida. Queria ser uma mulher independente e respeitada, como
aquela Luiza, sabem?
- Ah sim, conheci ela –
disse martha – realmente uma mulher e tanto
Ela olhou pra mim naquele
tom sarcástico que só ela sabia fazer. E que sempre me fazia
sorrir, não importando quantas vezes ela repetisse.
- Também conheci a
Luíza. Ela veio numa passeata que nós realizamos pela paz. E sabe,
eu vi que ela podia ir onde quisesse e fazer o que queria. Não que
ela fosse uma pecadora por isso sabe?
- Então você queria
estudar e tudo? - perguntei
- Não, não é
exatamente como ela. Eu queria sair e fazer a diferença no mundo.
Não escrevendo livros nem estudando. Eu quero ser uma empreendedora.
- E seu noivo não te
apoiava nisso? Que besta! - martha falou
- Não, ele me dava todo
o apoio do mundo, Martha. É que eu comecei a ter sucesso e daí meus
produtos foram além do universo cristão.
- Como é? Universo
cristão? - perguntei confuso
- É que por lá a gente
diz que existe uma separação entre o mundo e a igreja de Deus. É
coisa nossa, você não entenderia. Mas daí as roupas que eu desenho
começaram a vender pra gente de fora e aparecer em lojas
não-cristãs.
- E qual foi o problema?
- perguntou martha
- O problema é que,
mesmo apreciando as roupas que eu desenho e produzo, os empresários
não são cristãos. Eu tinha que fazer sociedade com eles pro meu
produto ganhar o mundo.
- E ele não aceitava que
você saísse pelo mundo, então? - Martha perguntou quase sussurando
Ela começou a chorar,
virou de lado e escondeu o rosto no colo de Martha.
- Não, ele aceitou tudo.
Ele é um anjo, martha – ela falou lutando contra o soluço – mas
ele é cristão. Os sócios começaram a me chamar de noivinha virgem
e nunca me chamavam pra nenhuma confraternização. Eles diziam que
não tinha lugar pra mim nos antros de perdição onde eles iam, mas
eu tenho Jesus no coração e não ia fazer nada de errado. Eles me
disseram que não queriam problema com meu noivo nem com a minha
família.
- Porque eu não sinto
paixão na sua voz quando você fala dele? - ousei dizer
- Eu amo aquele homem, do
que você está falando?!
Mas a tensão nos pés
dela não enganava. Ela se contorceu pra falar isso, como quem faz um
esforço pra ditar algo pro próprio coração independentemente do
fato de que ele diz o contrário. Quando vestimos armaduras de razão,
eu descobri, isso se reflete no nosso corpo inteiro. Desde as costas
até a ponta dos pés. E um segredo de ser um indulger é aprender a
ouvir do corpo o que a voz não expressa.
- Olha, eu sei o que
vocês são. Eu não quero transar com vocês, tá bem? - ela falou
logo depois de o corpo dela dizer o contrário
- E porque você assume
que nós queremos isso de você? - Martha perguntou
- Porque vocês são
indulgers, né? Não são como se fosse prostitutos que trabalham de
graça?
- Meio contraditório um
prostituto trabalhar de graça, não é?
- Ah, mas daí vocês
transam e as pessoas vivem falando disso. Que vocês são os reis da
luxúria. Só que a luxúria é um pecado!
- Nós não somos reis da
luxúria – Martha disse – apenas cedemos o que nos é pedido.
- Mas mesmo quando o que
é pedido vai além do que vocês podem dar?
- É exatamente esse o
ponto, Jussara – falei – nós corremos o mundo atrás de pedidos
que vão além do que nós podemos dar. E vamos atrás de situações
que contrariam nossos desejos mais egoístas. Ser um indulger, na
realidade, é um exercício de entrega. É você conseguir dar ao
outro algo que você nunca pensou que poderia, expandir os limites do
seu corpo e da sua alma!
- Isso é uma coisa que
todo indulger precisa saber e sentir – completou martha – é por
isso que temos essas tatuagens doloridas no peito. Nós somos a
reação, exatamente o outro extremo de um mundo onde as pessoas vêm
se tornando cada vez mais egocêntricas.
A princípio Jussara não
esboçou resposta, mas parou pra pesar aquelas palavras. Abraçou
Martha e abriu mão de olhar pra entrada do plasma, como quem já não
se importa se virá alguém ou não.
- Então é isso, né?
Vocês não vão transar comigo porque sabem que não é isso que eu
quero. Mesmo que vocês queiram – ela disse olhando pra mim
- Mesmo que queiramos com
todas as nossas forças – respondi olhando nos olhos dela
E ela sorriu um sorriso
que inundou meu coração. Que me fez lembrar que eu tenho sim um
motivo pra estar vivo. Eu estava exatamente onde queria estar fazendo
apenas o que eu queria fazer: amando incondicionalmente. Um homem
chegou na entrada e olhou diretamente pra bunda dela, sem o mínimo
de pudor. Achei engraçada a maneira como ele arregalou os olhos,
porque não tinha entendido que ele reconheceu quem era. Alguns
minutos depois ele estava lá conosco e só então ela soube que ele
estava lá.
- Carlos, você veio! -
ela falou limpando as lágrimas quase secas do seu rosto
- Ju, eu não sabia. Você
tem que acreditar em mim. Eu já expulsei o Vitor da sociedade por
ele ter feito isso com você.
- Mas... Não foi você
que marcou essa reunião?
- Não, ju. Ele pegou meu
computador e fez isso com você porque ele é um babaca. Eu falei que
se ele não saísse eu sairia e todos concordaram em expulsar ele. Eu
não vou mais deixar ninguém te desrespeitar nem rir de você pelas
suas costas, porque você é espetacular e talentosa e não importa
que você seja religiosa. Sei lá se é Deus que te dá toda essa
força, Ju. Eu planejei mil coisas pra te falar, mas nada tá saindo
como planejado. Então agora tudo o que me resta é dizer que eu te
amo.
Todo o pé dela se
contraiu e quase senti a adrenalina dela. Nós sabíamos o que fazer.
Coloquei o sapato dela de volta enquanto Martha a ajudou a se
levantar devagar. Porque ela se sentia confortável com a nossa
presença, nem falou nada. Apenas foi na direção dele e o abraçou
forte. Aí sim eu vi paixão no rosto dela. O homem chorava, parecia
bêbado, mas isso não afetava a maneira digna como ele se recusava a
aceitar um fim pro abraço. Decidimos sair, mas antes que
conseguíssemos ela segurou nossas mãos.
- Obrigada por esses
momentos. Eu estava errada por ter julgado vocês. Vocês são muito
mais cristãos do que imaginam...
- Espera ai, eles são...
indulgers!? - Carlos perguntou
- São sim – ela
respondeu – e eles têm respeito, diferente do que falam por aí!
- Jussara, eles não têm
respeito. Eles apenas reconhecem e aceitam o respeito que você dá
pra você mesma. Porque você é uma mulher forte e uma mulher
correta, nem mesmo um indulger poderia te convencer a ir contra suas
próprias convicções! Você não sabe como eu te admiro!
Ela largou as nossas mãos
e deu um beijo leve na boca dele. Aproveitamos a oportunidade e
saímos, porque aquilo era o momento deles. E já estava na hora de
nos separarmos, porque nossa missão ali já estava cumprida. Eu e
ela passamos pelas provações juntos e fomos instruídos a manter
certa distância porque senão começaríamos a interferir no
trabalho um do outro. Sempre acabávamos seduzindo um ao outro, era
uma coisa tão natural que parecia inevitável.
Nos despedimos com nosso
bom e velho “aperto de mão”. Sempre fazíamos daquele jeito:
segurávamos nos braços um do outro e íamos deslizando até nossas
mãos se encontrarem apenas pra tentarem se segurar em vão. Ela deu
as costas e foi embora do plasma, mas a noite não tinha acabado pra
mim. Aquelas luzes e aquela música me convidavam pra uma segunda
rodada, dessa vez talvez mais violenta.
Foi quando me deparei com
mais uma daquelas fãs da minha mãe. Elas sempre me davam calafrios
com suas tentativas de copiar os traços físicos e comportamentais
da famosa Luíza e sempre me vi incapaz de satisfazê-las porque
acabava sendo levado de volta a um passado que prefiro esquecer. Mas
essa estava tranquila com os cotovelos pra cima e bagunçando o
próprio cabelo no ritmo da música, coisa que a minha mãe nunca
faria. Isso seria um insulto ao seu “charme”, afinal. Isso me deu
coragem. Eu tinha que enfrentar essa minha resistência, porque assim
eu retornaria à trilha do progresso, coisa que ficou abandonada já
há tanto tempo. Afinal, não existe indulger completo e se você
para de caminhar é porque se perdeu. Quando ela percebeu que eu
estava olhando pra ela, viu minha tatuagem e arregalou os olhos.
Provavelmente foi falar com algumas amigas ou algo assim e logo
estava de volta, ávida pelo meu toque. A fama da nossa ordem me
garantiu o princípio desse encontro, como tantas vezes já
aconteceu, mas a partir daquele momento era eu lutando contra os meus
demônios pra satisfazer exatamente a pessoa que mais me intimidava
em todo o ambiente. Quando senti meu coração acelerar a minha dor
da tatuagem se intensificar, aí sim relembrei a razão de tudo. Eu
estava vivo, centrado e a noite seria longa...
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