Emanuel Peçanha, 2040
Vi o vagão dela sumir
nos velhos trilhos do metrô e sorri como um idiota. Um aluno de
engenharia passou um dia inteiro estudando neurofarmacologia com sua
namorada, abandonando seus próprios compromissos atrasados. Eu ria
ainda mais quando pensava em mim mesmo na terceira pessoa: parecia um
completo idiota. Mas quem se importa em ser idiota se isso significa
ser feliz? Estudei algo divertido, passei um tempo com ela e ela
voltaria pra mim depois da prova. Minha Liana, meu passarinho
cantante voltaria. Tudo tinha que ser preparado como ela indicou.
Duas garrafas de vinho, batata frita e mais algumas bobagens pra
comermos. A maior parte das coisas eu já tinha preparado e a casa
foi deixada com a temperatura correta. Os móveis também já estavam
todos fora do lugar pra podermos ver nosso filme, como nosso vinho,
nossa pipoca, nossas porcarias cardiopáticas. Liguei meu video-game
e comecei a jogar qualquer coisa pra ver se o tempo passava. E
realmente passou! Entre meus pulos e golpes errantes, passei uma hora
e fiquei tão suado que um banho se mostrou inevitável. Logo que saí
do chuveiro, alguém me ligou. Acionei meus óculos e atendi. Era
jônatas.
- Cara, tá podendo
falar?
- To aqui, pode falar,
cara.
- Porra, perdeu a aula de
ontem! Professor surtou porque alguém tava boçejando na aula dele.
Po, filmaram e colocaram na internet e tudo!
- Porra, Jônatas,
quantas vezes vou ter que te falar que agora se chama nuvem porque
mudou a tecnolgia?
- Ah, sim sim! O
professor estava falando disso. Eu posso chamar de internet ainda,
sabe porque?
- Manda.
- Cara, pensa na palavra
máquina. Sabia que ela veio do latim Machina, que usavam pra
descrever aqueles trabucos tipo dos jogos de estratégia? Procura só
no google aí.
- Tá, e daí?
- Po, e daí que chamamos
uma impressora 3D de máquina. Mudou a tecnologia, mudou o paradigma,
mas ainda usamos a mesma palavra. Não precisa ficar trocando toda
hora, maluco. Nuvem não tem nada a ver, essa palavras.
- Cara, é um novo
paradigma de computação e de rede. Deixa de ser animal.
- Tá, tá, não liguei
pra falar disso não. Eu só tava tomando coragem.
- Pra quê?
- Po, cara, nem sei como
te contar isso. Sabe a liana?
- Ta tudo bem com ela?!
- Ta sim, cara, tá
tranquilo. É que eu to vendo ela agora aqui na minha frente, te
juro. Já tem uns 10 minutos que ela tá se pegando com um cara aqui.
Ela tá te traindo, cara. Na cara dura!
- Sabe quem ele é?
- Ah, é um cara da ADM
aí. Vou te mandar a imagem ao vivo. Estão naquele beco do prédio
de ciencias humanas.
- Não, porra! Eu
acredito, não quero ver isso não. Para, sai...!
- Tudo bem, calma. Não
precisa gritar também!
- Cara, eu vou desligar.
- Ela tá indo pro metrô.
Tá indo praí? Cara, não vai fazer nenhuma bobagem!
- Tipo o que?
- Sei lá, porra, o guto
acabou preso por brigar com a namorada na faculdade e empurrar ela.
Não dá mole, só manda ela embora que ela é safada.
- Cala essa boca,
Jônatas. Tu não sabe de nada e fica aí falando dela. Eu não sou
dono dela não. Não sou eu que vou dizer quem ela pode ou não pode
beijar!
- Porra, tu é o que, um
corno manso. Maluco, várias pessoas viram isso, não foi só eu não!
Desliguei o telefone e
deitei na cama, minha respiração acelerada. Eu estava com medo.
Quem seria esse cara, que me recusei a ver? Será que ele era
importante, será que ela queria terminar tudo comigo? Como poderia
ser possível, se parecíamos tão bem ontem?
Naquele momento eu fui
tomado por paranoia. Será que ela se incomodou com a garrafa de agua
dela que sempre esqueço fora da geladeira e fica quente? Não, ela
nem se incomodava tanto de beber água no copo! Ou será que ela não
me falava de algum problema mais fundamental na relação e tudo
estava acontecendo sem eu saber?
- Para com isso, merda!
Não tem nada de errado, lembra dos textos! - gritei pra mim mesmo
feito louco
O computador acionou e
buscou minha frase no google. Me senti um retardado. Eu mesmo, o cara
que tanto falava do poliamor, o único que sabia do caso do meu pai
com aquela Mônica e o apoiava firmemente. Um cara que leu livros,
que aceitou argumentos, agora estava tendo crise de insegurança e
ciuminho? Ridículo, eu tinha que ser mais maduro que aquilo.
Sentei na cadeira e tomeu
uma lata de energético. Minha perna direita tremia e minha cabeça
coçava. Eu tinha que sair, tinha que andar. E foi o que fiz: saí de
casa e andei até o shopping que ficava a uns dois quilômetros de
casa, pra, de lá, ir pra estação onde encontraria com ela. De
repente eu já estava todo suado novamente na estação,
artificialmente calmo pela caminhada. Mas quando ela apareceu, tudo
ficou natural.
Ela desceu do vagão e me
viu logo de cara, com aquele sorriso acanhado que ela tem. Segundo
ela, não passa de uma reação à cara de imbecil que eu faço toda
vez que a vejo. Mas ela colocou os braços pra frente e veio correndo
na minha direção com o sorriso. Quando abraçá-la, descobri que
ela segurava a mochila no braço direito.
- Ta pensando o que, pode
pegar a mochila! - ela disse
- Ué, mas pensei que ia
ganhar um abraço!
- Tem abraço nenhum pra
você não que tá muito abusado pro meu gosto.
- Vem cá agora, mulher.
É agora!
Quando fechei o abraço
ela deu um passo pra trás sorrindo, mas acabou me abraçando de
volta. Era sempre o mesmo jogo, eu sempre soube que ela adora meu
jeito exagerado de expressar meus sentimentos. As vezes parecia que
ela resistia exatamente pra me ver fazer esses espetáculos em
público. E isso porque ela se declarava tímida! Enquanto andávamos
pra casa ela veio falando sobre como foi a prova, sobre o que soube
responder e o que não soube, e senti aquele efeito único de estar
com ela. Não importa que tipo de problemas passam pela minha cabeça.
Seja crises existenciais adolescentes, problemas na família,
qualquer coisa, ela chegava e tudo passava. Até mesmo a crise
causada por ela era calada pela presença.
Tudo o que eu queria era
cheirar aquele cabelo preto logo depois dela sair do banho, fazer
batata frita e assistir alguma novelha mexicana velha do jeito que
ela gostava. Ela sempre gostava quando eu imitava as caras e bocas
que os personagens faziam. “não, carlos mariano, não!!!”.
Também tinha aquelas cenas loucas de transição que,
presumivelmente, aconteciam antes de intervalos comerciais, mas que
já não tinha comerciais porque estávamos fazendo streaming da
nuvem.
- Liana, preciso cheirar
seu cabelo! - gritei com minha expressão facial congelada passando a
sensação de que era uma questão de vida ou morte.
- Você tá estranho,
Emanuel. O que você tem?
- Por acaso em algum
momento você me viu sem estar estranho?
- Não, mas dessa vez
você tá diferente. Não sei, tem alguma coisa aí.
- Tem falta de LP, é
isso.
- AN?
- Falta de Liana
passarinho, é isso.
- Deixa de ser doido, eu
dormi aqui ontem já!
- Bem, nunca é demais,
né?
Ela sorriu e virou o
rosto do jeito que sempre faz. Aquilo já tinha virado um convite pra
mim. Sempre que ela fazia, eu a abraçava e começava aquela
brincadeira besta. Dessa vez não foi diferente.
- Sai, sai Emanuel que
você tá muito abusado pro meu gosto!
- Abusado nada, to
ensandecido. Voa pra ca, passarinha!
- Não, sai, sai! - ela
falava em meio a risadas imponderáveis
- Ta bem, só um
beijinho, só um!
- Você pede só um
beijinho toda hora, pensa que sou besta?
- Vou ficar duas horas
inteirinhas sem te agarrar, prometo!
- mentira, duvido!
- Dou a minha palavra!
- Não, mentira sua...
Para... Ta bem, tá bem
De repente o cotovelo
dela estava fora do caminho da minha boca em volta do meu pescoço.
Foi um beijo que ela tentou fazer curto, mas eu insisti, como de
costume. Ela deu um passo pra trás, rindo.
- Era só um!
- Não terminou ainda!
- Manu, eu quero batata
frita. Eu to com fome.
As vezes parecia que ela
fazia isso de propósito. Falava de alguma coisa que ela precisava
exatamente porque sabia que aquilo ia me parar. Era uma urgência,
afinal, que ela tivesse a batata frita! Na cozinha já estava tudo
preparado e ela foi pegar a batata no congelador pra fritar. Por um
instante a sensação de insegurança voltou e abri uma Ice que achei
na geladeira. Imaginei que o energético estava provocando a
ansiedade, então o álcool deveria diminuí-la pela depressão do
sistema nervoso. Estudar pra prova dela serviu pra alguma coisa! Ou
não...!
- Tá começando cedo,
em? - ela comentou
- Never too soon to rock
n roll, baby!
- Tá errada essa frase,
não?
- Agora tá certa!
Dei um gole e ela começou
a tirar batatas já fritas. Fui beliscando uma ou outra. Difícil
acostumar com essas batatas pré-salgadas. Tudo parecia muito mais
natural com batata frita industrializada sem tempero! Mas essa era
deliciosa porque não ficava uma mais salgada do que a outra. Liana
bateu na minha mão.
- Para com isso que assim
a gente não vai ter pro filme. Faz a pipoca, faz?
Ela estava agindo tão
naturalmente que aquilo me assustou. Quer dizer, se aquele caso
extra-conjugal fosse verdade e fosse um problema pra relação, como
ela podia estar se comportando daquela maneira? A sensação de que
eu estava pra ser pego por um fim de relacionamento repentino me
deixou apreensivo. Fiquei imaginando coisas pra fazer que evitariam
aquilo tudo enquanto observava a pipoca ser feita.
- Porque você sempre faz
isso? - ela perguntou?
- isso o que?
- fica olhando pro
micro-ondas assim. Como se algo surpreendente fosse acontecer além
do imediatamente previsível.
- Nem sei. Eu só fico
viajando, eu acho.
- Vou colocar o filme lá
na sala. Depois trás a pipoca. Essa é a light, né?
- É! Mas você sabe que
isso é loucura porque estamos comendo batata frita, né?
- Pois é, eu já vou
virar uma bola pela batata, imagina se ainda comer pipoca normal
cheia de calorias?
- Ah, tem mais calorias
no vinho do que na pipoca, Liana. Mais fácil parar de beber pra
emagrecer.
- E você quer que eu
pare de beber, por acaso?
- Não, jamais! Você
fica legal demais bêbada!
- Então trás aí vinho
pra mim e pra você também!
- Você me perguntou se
eu quero?
- Anda logo que já tá
pronto aqui pra gente ver o filme, manu!
Depois de certa
dificuldade pra encontra o saca-rolhas, enchi nossos copos, guardei a
garrafa na geladeira e vim pra sala com os copo.
- Cadê a pipoca, não tá
pronta ainda?
- Ta sim, esqueci lá.
Pode por o filme pra rodar que eu já vi, tá tudo bem.
O filme começou, naquele
volume meio alto que ela gostava e eu sentei novamente na frente do
micro-ondas. Os mesmos questionamentos passavam pela minha cabeça
enquanto eu lentamente abria o saco de pipoca. O vapor saiu e veio no
meu rosto, mas foi como se não fosse nada. Fechei os olhos e pus a
pipoca no pote pra ela salgar sozinha. Eu podia ir com o pote
salgando pra sala, mas acabei esperando o processo todo sentado ali
na cozinha
- Manu, cadê a pipoca?!
Vou acabar comendo a batata toda, vem logo!
Encontrei a garrafa de
Ice aberta e terminei toda ela em um gole antes de voltar. Percebi
que ainda estava de meia, tirei e pus no cesto: tudo que eu podia
fazer pra evitar ir pra sala eu fazia. Mas acabei ficando sem mais
nada pra fazer e cheguei lá. O filme era Mr. Nobody, um dos meus
favoritos que ela nunca tinha visto. Sempre marcávamos de ver e
acabávamos nunca vendo, mas hoje estava tudo combinado. Os olhos
negros dela ficavam ainda mais fechados do que o normal enquanto ela
prestava atenção na tela. Um golinho de cada vez ela ia bebendo o
vinho.
- Ainda vou ter que
aprender a beber no seu ritmo, viu?
- Ah, é que eu fico
enjoada de beber rápido
- Eu sei, eu sei...
Ela colocou as pernas em
cima de mim e ficamos vendo o filme. De tempos em tempos eu voltava
pra cozinha e pegava mais vinho. Quando acabamos com a primeira
garrafa o filme acabou. Eu estava fazendo massagem nos pés dela e
com minha mente e outro lugar. Ela colocou a novela mexicana que ela
estava assistindo e eu fui buscar mais vinho. Percebi meus sentidos
alterados e a bagunça que deixamos na cozinha. Abri a garrafa e
coloquei vinho nos copos, mas derrubei um pouco na pia. Como sempre,
eu me mostrava fraco pra bebida. E ela, daquele tamaninho, muito mais
resistente do que eu. Quando cheguei na sala, Luana me mandou
mensagem pelo celular. Sentei com Liana e lembrei da conversa que
tive com Jônatas. Eu tinha que escolher entre Liana e Luana, a única
diferença era uma letra no nome de cada uma. Pelo menos segundo ele,
eu tinha chances com as duas, mesmo que pra mim eu não tivesse
chance com nenhuma. Mas a confluência caótica de eventos acabou me
unindo a Liana, e eu não era o tipo de pessoa a ficar olhando atrás
e tentando calcular se outra escolha teria sido melhor. Mas e se ela
estivesse pensando isso?
- E aí, manolo, tudo
beleza?
- Oi Luana, tudo bem sim.
Só enlouquecendo um pouquinho e consumindo o etanol aqui
- hahahaah! Vai que é
hoje que te conto todos os meus sonhos e esperanças?
- É hoje, luana! Vou
achar a chave do seu coração!
- hahaha! Escuta você
soube daquele curso de férias?
- O de biomateriais e
filtração?
- É, esse mesmo!
- po, eu to trabalhando
na equipe, Lu. Soube sim, tem que falar com a professora helena pra
entrar!
- caraca você tá na
equipe? Que foda, cara! Tão dizendo que vai dar pra cancelar com a
disciplina de biomateriais do semestre que vem, é isso mesmo?
- Não sei, Lu. Conversa
com a professora helena lá pra confirmar certinho
- Beleza. Mas e aí, como
vai a vida?
Liana moveu a perna,
indicando, como de costume, que queria a massagem. Mas ela queria
outra coisa.
- Tá falando com quem?
- Com a Luana. Sabe, dos
calouros lá?
- Ah, aquela anoréxica?
Tá confessando bulimia pra você?
- Confessou que comeu um
bolinho inteiro hoje. Ela é magra mas não é feia não!
- ah, e eu sou gorda
balofa, né?
- Não, você tá no
ponto certo. Prefiro mil vezes você!
- Você fala isso só
porque tá comigo. Aposto que falaria a mesma coisa se fosse ela
aqui.
Eu não podia acreditar
no que estava acontecendo. Ela estava se beijando com outro naquele
mesmo dia e agora estava tendo uma crise de ciúmes. Porra, ela mesma
concordava com a coisa toda de poligamia, como podia estar com outro
e ainda assim ter ciúme de uma conversa por mensagens telefone?
Naquele ponto eu me senti no direito de expressar meus próprios
sentimentos, mas sem revelar o que eu sabia.
- Mas e você, não tem
suas dúvidas também?
- Ah, você sabe que eu
sou maluquinha, né? Eu tenho sempre dúvidas.
- mas daí você sabe se
quer mesmo estar comigo?
- Tá pergutando isso
porque? - ela falou tirando os pés do meu colo
- Ah, porque eu sou bem
mais ativo nas coisas. Tipo, sempre que a gente se beija pra valer
sou eu que te beijei, você nunca veio me beijar por conta própria.
- Claro que fui, semana
passada aqui no sofá!
- Eu tava te puxando e
você esqueceu porque tava meio chapada
- Ah, mas não tem nada a
ver...
Ela pareceu
desconfortável e levantou. Pegou meu copo e foi pra cozinha encher
de vinho. Eu sabia que ela estava fugindo, mas não quis ir atrás.
Ela sempre fazia isso quando queria pensar sobre alguma coisa sem eu
ficar olhando no rosto dela. Afinal, mesmo com ela negando isso, o
rosto dela mostrava bastante do que ela tava sentindo, então, pelas
nossas longas horas de conversa, dava pra saber mais ou menos o que
ela estava pensando só de olhar pro seu rosto. Mas acabou que ela
não se demorou. Encheu os copos, deu um gole no dela e depois
terminou de enchê-lo, esvaziando a garrafa toda. Ela voltou no mesmo
ritmo lento de sempre e sentou no sofá comigo.
- coloca pra mim o
próximo capítulo da novela? - ela falou num tom de voz baixo
Mandei o comando pra tela
e o episódio começou. A música tocando, cenas passando e ela
bebendo o vinho dela em silêncio. Quando eu ia recomeçar o assunto
ela falou.
- O que você tem com
essa Luana, em?
- Ela é uma colega do
meu curso. Eu saí com ela e o Jônatas uma vez.
- Mas vocês nunca
ficaram, né?
- Não. Mas porque?
- Ah, não é nada. Não
é certo eu ficar assim com ciúme, a gente fica sempre com essas
conversas de poligamia, né?
- Certo e errado pra mim
não são coisas tão bem definidas.
- É, mas daí a gente
fica nessa coisa de pode isso, não pode aquilo e as pessoas acabam
se machucando, sabe?
- Olha, pra mim o negócio
é saber se você me ama, sabe? As vezes eu penso se não devia ter
saído com a Luana.
- Porque você tá
falando isso?
- Ah, sei lá, Liana.
Você fica sempre fugindo dos meus abraços, dos meus beijos, dos
meus carinhos. E quase nunca diz que me ama. Quer dizer, as vezes
parece que você tá comigo, mas que queria estar com outra pessoa.
Isso é mais que poligamia, sabe? É tipo: você quer estar com outro
e não comigo, o que é diferente de querer os dois. Daí...
- Ah, manu, não fala
assim. Você sabe que eu sou assim mesmo, que eu tenho dificuldade de
expressar meus sentimentos. Mas não quer dizer que eu não me
importe e que eu não queira. Eu sou doida, mas você sabe que se eu
não quisesse estar aqui com você agora eu não estaria.
Ela deu um gole no copo.
Parecia angustiada com a situação. Aquela mesma cara que ela faz
quando se sente pressionada, com uma tentativa fracassada de sorriso
defensivo. Mas eu não estava disposto a parar.
- Sim, mas você entende
que isso me deixa inseguro as vezes? Sabe, você bem que podia fazer
um esforço...
Ela estava bebendo o
vinho num ritmo bem mais acelerado do que o normal. Um gole pequeno
atrás do outro, ela chegou a beber mais rápido do que eu, que
estava ocupado falando e pensando no que falar e já tinha esquecido
que tinha um copo comigo. Dei um gole grande e ficamos em silêncio
por um tempo. Então ela deu um último gole e largou o copo. Veio
pra cima de mim, sentada no meu colo e me abraçou forte. Com aquele
efeito mágico que só ela sabe ter, o abraço dela tirou todas as
minhas preocupações e colocou meu coração pra queimar. Ela beijou
meu pescoço e foi me dando vários beijos até chegar na minha boca.
Suas mãos passavam pela minha cabeça e então desciam pelo pescoço
e o ombro. Abracei o corpo dela inteiro, com um braço segurando sua
cintura e o outro subindo até sua nuca. O piercing no nariz dela
arranhava o meu e meu rosto estava coberto por seus cabelos negros. A
novela ia passando na TV até que ela mesma colocou o pé na tela e a
desligou. Quando a perna dela voltou pra cima de mim eu a levantei e
carreguei pro quarto. Nos beijamos na cama por um tempo até eu me vi
beijando todo o seu corpo. A textura daquela pele, o cheiro que ela
emanava... algo ali simplesmente me hipnotizava. Quando fui tirar sua
blusa, ela me interrompeu.
- Espera, espera, pega o
jaleco. Vai... Por favor!
Ela adorava quando eu
pegava um jaleco antigo meu e colocava os óculos e fazia um roleplay
de médico. E eu adorava os sorrisos que ela dava, então não tinha
como resistir. Vesti o jaleco, coloquei os óculos e sentei na
cadeira.
- Então, você tem se
alimentado bem e regularmente? Seus exames de sangue mostram excesso
de gordura saturada e açúcar.
- É, doutor... É que eu
não tenho levado uma vida muito saudável, sabe?
- Mas Liana, eu já não
te expliquei como é importante se alimentar bem? Vamos, deixa eu te
examinar.
E ela me olhou com aquela
cara de criança que está prestes e fazer alguma travessura.
- Então eu preciso tirar
a roupa pra o senhor me examinar e ver se está tudo bem?
- Sim, claro. Preciso ver
se não tem nenhum problema na sua pele. As vezes são só detalhes
que a gente tem que ver, entende?
- Ah sim, sim. Saúde em
primeiro lugar, né?
Ela tirou a roupa e ficou
apenas de calcinha.
- Já te falaram que
ceroulas fazem mal pra saúde?
- hahaha! Para com isso
vai estragar!
- Bem, certo, certo. Você
por acaso já fez seu exame de mamas?
- Não fiz! É
importante?
- Muito importante, deixa
eu te mostrar!
Eu massageava os seios
dela e os sorrisos se misturavam com suspiros. Nunca soube dizer
porque ela gosta tanto disso, mas também nunca me importei. Minha
experiência diz que muitas vezes saber qual é a graça de algo tira
totalmente sua graça. Explicações só deixam a vida menos
fantástica e surpreendente. Ela me puxou pra si e me deu um beijo
profundo. Subiu em cima de mim e tirou meu jaleco. Foi tirando toda a
minha roupa enquanto eu só atrapalhava o processo passando minhas
mãos pelo corpo dela.
- Seu celular tocou. Não
vai atender?
- Ah, deixa ele tocar.
- Pode ser um paciente!
- Já tenho todos os
pacientes de que preciso aqui!
Virei-a pra mim e comecei
a beijar seu pescoço, atrás da sua orelha, seu corpo. Meu beijos
desciam pelos braços até a mão e então subiam de novo pra tomar
outro caminho até chegarem no seu destino. Como sempre, ela resistiu
em me deixar tirar sua calcinha.
- Não pode olhar, fecha
o olho!
Mas tudo o que eu
precisava mesmo era do meu tato. Com o tempo você vai aprendendo
detalhes pequenos e eles se tornam automáticos. Já estávamos
juntos há tempo suficiente pra eu saber como ela gostava. O segredo
era fazer ela se sentir segura e ser paciente. Nada espetacular,
nenhuma técnica mágica. O orgasmo dela era pelo coração. Eu, da
minha parte, sentia a respiração dela, as contrações na perna, os
gemidos roucos, o gosto, o cheiro. A minha vontade era de continuar
ali pra sempre, dando prazer pra quem já tinha se tornado parte de
mim. O prazer dela parecia retornar em dobro pra mim e cheguei ao
ponto de gemer com o orgasmo dela. Com Liana eu tinha descoberto uma
nova razão pra existir. Eu vivia pra vê-la feliz, pra amar. Tudo
bem que eu sempre trocava de sentido de vida porque nunca nenhum me
satisfez, mas vários meses já tinham se passado e eu ainda não
tinha mudado de ideia!
Quando ela gozou, foi
como sempre. Gemeu um pouco mais alto, prendeu minha cabeça entre
suas pernas e deu aquele sorriso que eu sempre fazia questão de
abrir os olhos pra ver. Depois disso fizemos amor exatamente da mesma
forma que sempre fazíamos. Uma peculiaridade dela é que, por mais
que o sexo fosse uma coisa bem parecida entre uma transa e outra,
ainda assim era magnífico. O mesmo gemido, o mesmo arranhão na
nuca, as mesmas posições. Até a duração era mais ou menos a
mesma. Mas era sempre mágico, era sempre como se fosse a primeira e
última vez.
Quando terminamos, ela
foi pro banheiro e trancou a porta.
- Deixa eu entrar, Liana,
abre a porta
- Ah não, espera sua
vez.
- Abre aí, quero ir!
- Quem mandou morar num
lugar só de um banheiro? Problema é seu!
- Eu estava dentro de
você agorinha, qual é o problema de eu entrar no banheiro contigo?
- Todos! Não pode e
ponto final!
E realmente tive que
esperar. Pra mim era incompreensível que ela me mandasse fechar os
olhos durante o sexo oral e me proibisse de entrar no banheiro com
ela, mas que fizéssemos todo o resto. Mas eu já estava acostumado e
só pedia pra irritá-la. Fui no banheiro depois dela, tomei meu
banho e voltei pra cama. Ela já estava quase pegando no sono.
- Manu, não esquece que
vamos na praia amanhã. Vai a família toda, você não pode dar
furo, viu?
- Não, tudo bem, vamos
sim. Já colocou o despertador?
- Coloquei pra 8 horas
- Caralho, não vamos pra
praia não! Meu deus, pra que tão cedo?!
- Para de graça, vamos
sim.
Em poucos segundos eu
pude ouvir a respiração dela ficar mais lenta e intensa. Ela sempre
dormia rápido depois do sexo. Virou pra mim e pude ver seu rosto. A
coisa mais linda desse mundo era a tranquilidade dela. Sorri e tentei
ficar acordado, mas acabei pegando no sono também.
- Manu, você tá
roncando, vai resolver! - ela falou depois de me dar fortes chutes
Levantei no meio da
madrugada, ainda meio bebado, e fui desobstruir as vias aéreas.
Acrescentei uma substância dilatadora de vasos sanguíneos pra
melhorar a eficiência e voltei pro quarto. Ela já estava dormindo e
eu a segui rapidamente.
Sonhei que ela estava
beijando um estranho na faculdade. Quando ia falar com ela, ela agia
como se não me conhecesse e o estranho me apresentava pra ela. Eu
não podia ver seu rosto, mas tentava explicar que ela era minha
namorada. Só que e falava outra língua e eles não entendiam, então
foram embora. De repente eu estava nu, mas mesmo assim ninguém
conseguia me ver. E fui encolhendo, ou o mundo foi ficando gigante
até que alguém pisou em mim e eu acordei.
- Manu, tudo bem? - Liana
perguntou
- Ah, nossa, tive mó
pesadelo!
- Depois me conta. Já
são 8:30 e estamos atrasados
- Qual praia é mesmo?
- A de copacabana. Vamos,
lava esse rosto e comemos alguma coisa por lá mesmo.
Fomos pra praia de metrô
e encontramos minha família estrategicamente posicionada perto de um
quiosque. Liana que tinha convencido todo mundo a se juntar ali e as
pessoas pareciam estranhamente confortáveis com a situação. Por
incrível que pareça, meus pais estavam de mãos dadas, Fred estava
sem seguranças e Letícia estava de Biquini. Coloquei essa estudante
de psicologia com a família e ela deu jeito de tirar todo mundo do
marasmo. Uma coisa impressionante. Todo mundo cumprimentou todo mundo
e eu rapidamente virei pra comprar algo pra comer.
- manu, trás pra mim um
suco de laranja sem açúcar?
- Ta bem, li. Vai comer o
que?
- Nada, já comi meio
sanduíche em casa!
- meio sanduíche! Vou te
enfiar comida goela abaixo!
- Aí vou ficar com
bulimia igual àquelazinha!
As pessoas não
entenderam o que estávamos falando direito. Minha mãe se limitou a
falar que ela precisa se alimentar bem, mas que homem nenhum gosta de
mulher gorda. Quando cheguei no quiosque, um homem estava me olhando
diretamente. Estava com uma porra de um sobretudo de dia no verão no
Rio de janeiro.
- Você, to falando com
você!
- Ah, desculpe, eu não
tinha ouvido. O que?
- Cadê ele?
- Ele quem, cara?
- Ele pensa que vai tirar
tudo de mim? Quem ele pensa que é!?
- Cara, eu não sei do
que você tá falando. - falei antes de virar pro balcão - Manda um
suco de laranja, um energético e um salgado desse aí de queijo
presunto.
Quando me voltei pra ele,
percebi que ele estava com duas submetralhadores apontadas pro chão.
O homem do balcão se escondeu e eu comecei a andar pra trás.
- Cara, relaxa, ninguém
aqui quer o seu mal, a gente só veio curtir uma praia, mais nada!
- Ele vai pagar!
Quando ele apontou as
armas eu percebi que Liana estava correndo na minha direção.
- Não porra, volta!
Abaixa!
O homem começou a
dispara contra todos que estavam por ali. Em plena luz do dia,
pessoas corriam de um lado pro outro e eu estava agachado no chão.
Alguém acertou sua cabeça pelas costas e ele caiu morto sobre mim.
Quando tirei ele, vi que pessoas estavam aglomeradas em torno de
alguém que tinha sido atingido.
- Nossa, de todos os
tiros só uma pessoa foi atingida! - exclamou uma mulher
Meu estômago embrulhou.
Fui até o lugar de olhos fechados e quando os abri, vi ela. Atingida
por um tiro na cabeça em uma plena manhã de sábado.
- Pai! PAI!!! Me ajuda,
puta que o pariu! - Eu gritava – conserta a cabeça dela, conserta,
porra!
Mas meu pai estava em
choque abraçando minha mãe e Letícia, que choravam copiosamente.
Frederico estava caído no chão com os olhos arregalados. Levantei e
o mundo começou a girar. Vomitei até esvaziar meu estômago, mas
continuei sentindo as contrações no meu abdome.
- Não, porra! NÃO!!
Eu senti que ela já não
tinha pulso e percebi que o meu também já não era tão forte. De
súbito, a vida pareceu fugir também de mim...
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