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Encruzilhada - (parte 2 de 3)

Frederico Peçanha – 2075

Perdi a conta das flexões que fiz e já media meu progresso pela saturação no tecido do chão da minha sala. Minhas sessões de exercício eram consideradas vãs, inúteis, perda de tempo por muita gente, mas eu sempre soube a forma poderosa com que esses exercícios mantém meu foco e meu ânimo.

- Eu não quero saber se ele tá malhando, rapaz. Autoriza logo essa ligação – disse Pinkman e detectei com meus óculos
- Senhor peçanha não deseja ser incomodado durante sua sessão de exercícios, por favor não insista – disse meu novo assistente.

Por mais que ter uma estrutura de autoridade com progressão, ter que trocar pessoas de funções sempre foi um inconveniente. Justamente quando assistentes, gerentes, assassinos ficam bons em suas devidas funções, acabam conseguindo mérito para assumir uma posição de autoridade superior. Mesmo tendo dominado apenas quatro cidades, ainda parece que meu domínio cresce rápido demais pra eu ter o conforto de dispor de subordinados bem preparados.

- Ei recruta, não sabe que tem uma lista de pessoas cujo contato comigo é irrestrito? - falei por ligação com aquele assistente que nem mesmo tinha um nome, de tão baixa que era sua posição na hierarquia
- Desculpe, senhor, eu não sabia!

O rapaz teve todas as funções vitais aceleradas e rapidamente permitiu a ligação de Pinkman, que apareceu diante de mim em forma de um holograma perfeitamente nítido.

- Espero que você não se incomode com meus exercícios. Ainda faltam 15 minutos, mas posso conversar enquanto os pratico – falei sem seguir olhando pra sua imagem
- Não entendo como você pode ser um empreendedor e inovador, mas, ainda assim, conserva hábitos arcaicos como esse. Todos os benefícios fisiológicos dessa atividade podem ser proporcionados artificialmente. Você não faz mais que perder tempo com esse placebo.
- Vocês cientistas e suas recomendações e fórmulas. Não sabe que todos lêem seus livrinhos e fazem o que vocês mandam e mesmo assim nunca chegam onde estou ou onde estarei no futuro? Com essas recomendações banais de comportamento, alimentação, implementação tecnologica ou seja o que for, vocês não fazem mais do que tentar regular como se fossem padres. Não é sua função ser conselheiro moral, Pinkman. Como posso te ajudar?
- É sobre o traje. Não conseguimos obter os dados. Não temos como fazer simulações e treinamentos especiais com isso. Precisamos da cooperação do seu irmão, mas ele é muito instável. Precisamos comprar essa instituição de indulgers. Você pode fazer isso?
- Comprar indulgers? Mais fácil comprar o resto do mundo e daí usá-lo pra controlar essas pessoas. Elas são complexas demais pra uma coisa dessas e devo te lembrar que tivemos outro indulger em treinamento e ele morreu no traje.
- É verdade, mas rastreamos o histórico dele. Era um novato e não participava desse grupo de indulgers abertos à violência. Precisamos selecionar indulgers como o seu irmão e, quem sabe, usar a instituição pra controlá-lo. Isso é poder demais e se sair do nosso controle pode comprometer toda a operação.
- Olha, esse plano não vai funcionar. Primeiro porque a hierarquia dos Indulgers não confere a um deles o poder de dar ordens aos outros: todos seguem as mesmas regras. Segundo que nós nunca selecionamos os dois indulgers que vieram pro nosso treinamento. O máximo que poderíamos fazer é colocar nosso centro de treinamento exposto perto desses plasmas na esperança de que eles decidam vir pro treinamento. De qualquer maneira, ganhamos na loteria com esses dois. Precisamos é ter algum controle sobre o que já temos.
- Mas como? Ele não responde aos treinamentos, ele não vai se conformar!
- Eu sou irmão dele. Sei de sua história, sei quem ele é. Preciso apenas me atualizar, ver por onde anda, o que tem feito. Pra controlar um homem que vive por impulso, basta apenas que você controle a fonte dos impulsos. E você deve saber que sou bom em descobrir motivações, daí resultando que evitei vários conflitos seus e da liga. Deixe essa situação comigo que eu vou controlá-lo e, no processo, assegurar nosso domínio sobre os commodities do mercado global.
- Commodities? Reveja sua linguagem, Peçanha! Eu não quero esse dinheiro! Eu quero a liga nas minha mãos, fazer triunfar a razão e a ciência!
- Não, o que você quer é recurso pras suas pesquisas e respeito. Nós dois queremos a mesma coisa, só que a buscamos em fontes diferentes: vitória e poder.
- Você e suas frases de efeito! Bem, tenho compromissos. Controle Emanuel e deixo você tomar esses recursos, contanto que entenda que a liga terá acesso irrestrito a eles.
- Sim, considerando, no entanto, meu acesso irrestrito ao dinheiro da liga.
- Sim, sim, como quiser! Pinkman afk...

Acho que ele nunca percebeu como é estranho falar afk numa época em que os teclados já se tornaram obsoletos. Ou talvez tenha percebido isso nitidamente, mas fala apenas pra mostrar que ele pode usar a linguagem que quiser.
Terminei os exercícios e podia sentir os meus músculos fadigados. Entrei na banheira com agua fria e abri a comunicação.

- Senhor, a sua acompanhante de hoje está no salão de espera. - disse o assistente
- Certo. Avise aos ritualistas que eles vão entrar aqui em duas horas, independente das circunstâncias, a não ser que eu comande o contrário pessoalmente. Dê a eles a distração que desejaram, mas certifique-se de que não virão até mim quimicamente alterados.
- Sim senhor

O rapaz abriu a porta ainda com os batimentos cardíacos acelerados e deixou-a entrar. Veio altamente recomendada por se encaixar nas minhas preferências estéticas. Mas não estava treinada, logo percebi. Porque me veio na banheira e veio desfilando na minha direção, soltando o cabelo e fazendo poses. Veio, em termos simples, com a intenção de me seduzir. Presumivelmente se imaginava tão perfeitamente atraente que não precisaria de instruções pra seduzir e satisfazer um homem. Elas chegam cada vez mais ingênuas.

- Vista as luvas e joelheiras que estão á sua direita – falei antes de beber um copo de água

Ela sorriu, ainda pensando que tinha algum poder sobre mim. Somente quando percebeu que ambos eram cheio de espinhos que entendeu a situação, seu sorriso logo indo embora.

- Não se preocupe, qualquer dano que você sofrer aqui será perfeitamente reparado aqui.
- Olha isso vai fazer o serviço ficar mais caro – ela falou confiante
- Mais caro, você diz? Menina você deve ter irritado alguém importante, não é mesmo?
- O que?
- Ajoelhe-se e circule pela sala engatinhando
- Então você vai pagar o triplo por isso?
- Sim, se você entender que o triplo de nada é nada

Ela se levantou e jogou as lugas no chão. Sangue já escorria pelos seus dedos e se misturava com meu suor sendo absorvido pelo chão.

- Vai pagar o triplo ou nada feito!
- Vou pagar a quem, exatamente?
- Pra mim, quem mais?
- Moça, você é minha propriedade. Tudo o que você ganha nessa cidade é meu. Se eu concedo que você receba algum dinheiro, você deve considerar uma dádiva.
- Olha, eu não sei que tipo de brincadeira é essa, mas é melhor parar. Mostra o dinheiro ou eu vou embora.
- Porra você não quis dar o cú pro Jaime, foi isso? Não é possível que você não entenda a sua situação!
- Minha situação é que sou uma profissional autônoma com profissão legalizada. Ja passou a época em que prostitutas serviam a cafetões!

Não tive escolha a não ser mostrar a gaveta pra ela. A gaveta das rebeldes, eu a chamava. Dentro tinha uma caixa com tampa de cristal e todas as unhas de polegar que já coletei nessa sala. Era um verdadeiro registro do meu legado com as putas. Como se todas elas, de alguma maneira, fossem a mesma pessoa, como se eu estivesse nesse relacionamento a há anos com essa pessoa e tivesse apenas que punir-lhe algumas rebeldias.

- Que porra é essa? Você tem uma gaveta cheia de unhas?
- Sim. Não é de bom tom guardar corpos numa sala como essa.
- Você... matou essas pessoas?
- Pra ser preciso, duas delas se mataram. Mas eu fui responsável por isso, então é pura formalidade dizer que não as matei.
- Porque?
- Não entendiam quem eram minha propriedade. Assim como você. Você tem esse corpinho natural e pretendo usá-lo com frequência. Vai mesmo me fazer comprar um robô igual e me livrar do original?
- Essa unha... Alessandra!
- Ah sim, conhecia ela? Essa me xingou até o último minuto. Selvagem guardei o cabelo dela, como sempre faço com as lutadoras.
- Eu... Conhecia ela. Na verdade nós nos odiávamos, mas ela não merecia isso... Você está mentindo!
- Se odiavam, é? Então porque você veio encontrá-la?
- O que? Como você sabe isso?
- Sabe, as vezes eu tenho pena de moças como você, que entram numa cidade minha e se envolvem nos meus negócios achando que podem ir embora a qualquer momento. Ela lutou, ela achou que era livre até o último minuto. Mas é inútil, menina. Sua liberdade acabou no momento em que você consentiu trabalhar com o jaime.
- Meu nome não é menina!
- E quem se importa? Se eu digo que seu nome é menina, ele é menina! Cordas!

Minhas velhas cordas de nanocelulose prenderam todo o corpo dela esticado e taparam sua boca. Pelas respostas fisiológicas, ela estava finalmente começando a entender a situação. Seu coração acelerado, seu corpo tremendo, seus olhos soltando lágrimas com mais força do que ela tinha pra segurá-las. Exatamente do jeito que eu gosto.

- Sabe, você está sendo muito rebelde. Precisa de disciplina. Acredito em você, sabia? Não vai pra gaveta. Você vai aceitar seu novo lugar no mundo e vai me servir até eu cansar de você. Quem sabe, então, eu não te liberte?

Ela tentava segurar os gritos enquanto eu a chicoteava, mas isso apenas me motivava a bater mais forte. Aquele suor cheirava muito bem. Uma mulher natural, linda por natureza. Rara demais pra qualquer artifício substituir. Removi a fita que cobria sua boca e ela começou a respirar profundamente.

- Pelo amor de deus! O que você quer!?
- Eu quero que você pare com a sua graça e fique debaixo da minha mesa chupando o meu pau enquanto eu trabalho. Difícil? Ah, e você vai usar a luva e a joelheira pela sua rebeldia, mas nas próximas vezes isso não será necessário. Tudo bem assim?
- Você... vai me deixar ir embora depois...?
- Bem, você é livre pra transitar entre as minhas cidades. Mas sempre virá até mim quando eu solicitar

Ela começou a chorar copiosamente. Surpreendente que ela tenha entendido a situação tão rápido. A maioria continua repetindo pedidos de ajuda e piedade por até uma hora, como se fosse fazer alguma diferença. Mas ela já parecia imaginar, mesmo que apenas em suas fantasias mais selvagens, que o mundo não é o mar de rosas pintado por todos os tipos de mídia. Que basta você abrir os olhos pra entender que muito mais eficiente do que antigos métodos de controle das massas é a dissolução dessas massas. Não há mais grupos pra se organizarem, já não existem multidões pra causar problemas. Existem criancinhas, cada um com seu próprio playground, que não querem papo com as outras a não ser que seja pra serem amadas e admiradas.
Chegamos numa época em que deixamos de ser filhos únicos pra ser netos únicos. Todos os tios, avós, pais vivendo em função de uma única criança, que, apesar de ser completamente medíocre, quer acreditar que é especial. Os netos únicos um dia percebem que a vida não lhes trará todas aquelas promessas de sua família, que não serão estrelas e que ninguém dá a mínima. Hoje em dia, ou você é idiota e iludido ou você reage como essa loirinha aqui, que aceitou seu lugar. Minha escrava, com exatamente a bundinha que tem que ter.
Recebi o alerta de que Emanuel saiu de casa. Aquela bagunça começou a ser restaurada para o ponto em que ele tinha deixado na última visita. Esses indulgers sempre me deixaram curioso. Onde passam, de uma maneira ou de outra, acabam tomando o controle sobre quem satisfazem. Por meio da entrega, eles fazem com que os outros lhes entreguem dinheiro sem ao menos pedir. E se você enviar alguém pra capturá-los, é mais fácil eles voltarem pra te capturar. Como controlar uma pessoa que, pelo paradoxo da servidão extrema, acaba tomando o controle sobre você em um nível que você nem entende? Somente quando Emanuel conseguiu vestir o traje que eu entendi a mina de ouro que essas pessoas são. Tendo o controle sobre elas, eu posso ter o controle sobre o mundo. Esse tipo de sedução, parece, é muito mais poderosa do que o dinheiro. Se coloca frente a frente com a própria ciência, que, com suas prescrições e regras, frequentemente se veem diante da necessidade de usar a força.
A flexibilidade deles é impressionante. Acabaram envolvidas numa disputa entre dois dos meus subordinados do setor textil. Um deles disse que conseguiria incluir uma cristã no nosso esquema, todos sabemos que ele não queria mais do que a bundinha dela só pra ele. O outro, argumentou que cristãos jamais poderiam aceitar nossa organização, porque isso exige flexibilidade. Mas a cristã vende e tem talento, então o conflito já estava decidido. Por algum passe de mágica, eles convenceram uma cristã a se juntar a dois estranhos e receber carícias e massagens. Se eles fazem isso com tanta facilidade...!
Por incrível que pareça, mesmo que não tenham se encontrado, meu pai também estava nessa boate. O velho agora decidiu sair por aí e gozar a vida depois de todos esses anos. Mas um traço ele manteve por todo esse tempo: É tão egocêntrico que fica no mesmo teto com um filho sem ao menos reconhecer sua presença. Seja sua motivação trabalho ou prazer, sempre surge alguma coisa mais importante que a família. Na realidade todos nós somos assim com exceção da minha caçula, a Letícia. Depois da Liana, somente realmente conservou aquele espírito de união. Justo quando pensei nela, eis que surgiu uma ligação holográfica com aquele toque característico de música eletrônica antiga.

- vai pra baixo da mesa – comandei a prostituta – e não saia até eu comandar

Acionei os mecanismos da mesa pra ela ficar isolada e atendi o telefone.

- Letícia! Que bom te ver!
- Oi fred! É, só assim pra gente se ver hoje em dia, né!?
- Ando ocupado, você sabe. Mas vou passar aí daqui a duas semanas e vamos comer alguma coisa, tudo bem?
- Ah, vem sim. Joãozinho agora diz que quer ser empresário como você. O menino já está vendendo programinhas pros colegas e ganhando dinheiro com sete anos!
- Tá no sangue! Mas a sua cara parece sugerir que você não veio falar do João...
- Ah sim. É sobre o pai. Ele tá perdido, Fred. Ta saindo até pra esses plasmas aí. Coisa barra pesada. Ta todo mundo comentando na liga.
- Estão falando mal do nosso pai?!
- Não, não é nada disso. Estão preocupados. Desde que a mãe morreu ele foi ficando cada vez mais desanimado com o trabalho. Largou os projetos dele e ficou só ajudando os outros. Fez amigos na liga, mas acabou querendo se aposentar e pegar a segunda infância. Agora ele parece que perdeu o rumo. Pegou a mesma aparência de quando era novo e está saindo por aí. Tá todo mundo preocupado com ele. Soube que ele tá até fazendo acordo com bandido, fred!
- Bandido?
- Sim, um tal de miguel. Dono de plasma, barre pesada ali na zona norte.
- E que acordo ele fez?
- Ele trocou uma segunda infância avançada pela guarda de um menino de rua. Eu to falando, Fred, alguém tem que conversar com ele.
- E porque você mesma não faz isso?

Ela ficou em silêncio e levou um tempo até eu perceber que aquela velha mágoa não tinha sarado. Uma lembrei de uma vez que ela me ligou bêbada pra falar disso. Não sei se esqueceu por causa da bebida, porque quis esquecer. Mas alega não lembrar do diálogo e aquela expressão facial que ela faz quando falamos disso me impede de mostrar a gravação. Falou que toda a nossa família foi destruída não pela morte da liana, pelas loucuras do Emanuel ou pela minha ganância. Que tudo foi consumido pela indiferença dele. Que ela cresceu admirando ele, sempre querendo ser a filha perfeita, mas ele só conseguia ver o trabalho, a inovação tecnológica. Nem mesmo quando ela foi pra liga as coisas mudaram. Todo mundo se espalhou pelo mundo, a Mãe decidiu morrer e agora as coisas pareciam não ter mais conserto. Ela disse que jamais perdoaria ele por isso.

- Desculpa, lê. Eu vou encontrar ele. Faço a distribuição de vários materiais pros plasmas do rio aqui e vou encontrar esse cara aí pra desfazer esse acordo.
- Ai você é um amor, fred. Desculpa eu ficar assim também. Eu sabia que podia contar com você. Sempre posso!
- Sempre! Olha, le, preciso atender uma ligação aqui. Coisa de trabalho.
- Tudo bem, a gente vai viajar já já também. Vamos lá pro Tibet!
- Cuidado pro João não decidir virar monge e abandonar os bens materiais!
- hahahaha! Tá bem. Tchau fred
- Tchau...

Seether logo estava me mandando o as imagens ao vivo de Emanuel. Sentei na mesa e me preparei pra observar. Por algum motivo, com o passar dos anos, aprendi que o sexo oral melhora o meu foco. Pode parecer loucura, ser mais um dos meus placebos, mas acabei construindo toda uma estrutura acolchoada e ampla abaixo da minha mesa pra acomodar prostitutas. Fora um instrumento disciplinas ou outro e as grades que prendem a mulher ali embaixo, é até misericordioso. Afinal, se comportando bem, a mulher nem sequer sente dor e ainda ganha uma gorjeta que alguns poderiam classificar como uma pequena fortuna. E as lágrimas dessa logo abaixo de mim me estimulavam bastante. Algo a respeito da genuína emoção humana faz o boquete dessas mulheres ser sempre superior aos dos robôs que já testei. Parei por uns instantes pra refletir sobre como sou doente por gostar dessas coisas, mas meu consolo foi que Emanuel sempre consegue me superar. Ele estava sendo levado pra um quarto por uma mulher com a exata aparência que nossa mãe tinha quando éramos crianças. Afinal, que tipo de doente sai pra transar com uma mulher que finge ser sua mãe, imitando o corpo, as roupas e até alguns aspectos do comportamento? Mas aquilo não estava além dos limites da minha sensibilidade e eu precisava entender meu irmão se algum dia pretendia destruir meus maiores adversários. Com essa máquina de guerra no meu controle eu teria o mundo nas minhas mãos. Bastava descobrir o que Emanuel procura, o que faz seu coração pulsar em anseio, e usar isso contra ele. Chegaram no quarto e a mulher tirou quase toda a roupa de uma vez. Manteve apenas o sutiã e uma tornozeleira idêntica à da nossa mãe que, confesso, virou meu estômago. Aquele coração tinha até uma deformação igual ao original que o próprio Emanuel causou quando caiu e derrubou a mãe junto com ele. Aquela mulher levava esse fetiche de modificação corporal bem a sério. A mulher pulou em cima dele e começou a beijá-lo com força, como quem está com pressa em busca de algo, mas logo ele a virou e se pôs em cima dela.

- O que você pensa que tá fazendo, cara? - ela protestou

Pareceu estranho que, apesar de ser um indulger, que supostamente deveria conhecer os desejos e ânsias das pessoas, ele não percebeu que ela obviamente não gostava de ser controlada. E ele insistiu, beijando o pescoço da mulher num ritmo muito mais calmo e lento do que ela parecia querer. O rosto dela foi sendo tomado por raiva e ela pegou uma lâmina dessas nano afiadas e curvadas e pôs no pescoço dele. Logo ela estava em cima dele de novo. Será que naquele ano dentro da realidade virtual ele aprendeu a ouvir apenas a linguagem da violência?

- Quem dita as regras aqui sou eu, viu?

Ele sorriu e ela apertou a lâmina contra seu pescoço, deixando escorrer um pouco de sangue. Em resposta, estranhamente, ele sorriu. Colocou os dois cotovelos na cama e começou a subir na direção dela, aumentando um pouco o corte. O colchão parou de absorver o sangue que pingava quando a boca dela estava sobre seu pescoço chupando o sangue que escorria. Nem percebi, mas num instante ela tinha largado a arma e começado a beber o sangue dele enquanto ele a tomava em seus braços e a virava novamente pra baixo, retomando o controle. Foi como se ele já soubesse que ela iria querer isso. Ele beijava todo o corpo dela enquanto seu sangue ia dando cor àquela pele pálida. E ele se tornava mais intenso na medida em que ela amolecia e perdia o controle. A gravação dessa cena poderia me fornecer inúmeros ferramentas de controle interpessoal. Parece loucura você ver uma pessoa tomar o controle de uma situação com tanta facilidade, como se ele sempre fosse dela pra começar.

- Espera, eu quero uma massagem...! - A moça disse quase sussurando

Ele sorriu, parando todos os beijos e olhando pra ela nos olhos.

- Eu li os livros, viu? E que sorriso é esse que você tá dando?
- Só to apreciando.
Ele começou a fazer massagem no pé direito dela, que parecia relaxada, embora em alguns momentos demonstrasse sentir dor com o toque dele.

- Seether, quero o perfil dessa mulher no formato padrão com detalhamento na experiência psicossexual – falei somente agora percebendo como o boquete estava bom.

Não que aquela mulher fosse a mais habilidosa que já ocupou aquela posição. A boca dela estava trêmula demais. Mas toda aquela situação estava me deixando empolgado de alguma maneira.

- Tá na mão. A mulher é frígida e abusa de substâncias estimulantes. Supostamente ela só consegue sentir libido quando induzida quimicamente e todos os seus orgasmos até hoje foram produzidos por estímulo cerebral direto.
- haha! Quero ver Emanuel fazer essa aí gozar!

A mulher parecia querer esboçar algo pra falar, mas sempre acabava escolhendo o silêncio. Mandei Seether embora e voltei a me concentrar nas imagens.

- Você não pode falar nada de como se faz pra virar indulger, né?

Emanuel respondeu com um sorriso imponderável.

- Porque você fica dando essas risadinhas?
- Eu só to apreciando, querida.
- Não me chama de querida que eu não gosto.
- Quem dita as regras aqui é você, viu?
- Ai, aí não, não faz massagem aí não. Esse ponto do meu pé dói muito, cara.
- Aqui?
- Ai caralho, é, aí!

Ele tirou uma maleta debaixo da cama e entrou com uma combinação numérica pra revelar uma caixinha com pequenas agulhas. Os sensores detectaram que a caixa estava eletricamente carregada. Ele fez perfurações aparentemente aleatórias no pé dela, apesar de que todas estavam bem próximas do ponto dolorido no pé dela. Como quem não tinha mais o que fazer no pé direito, ele passou pro pé esquerdo.

- Isso é tipo uma acupumtura?
- É, algo do tipo.
- Nossa, anestesiou legal! Mas você pode me contar como virou indulger, pelo menos. O que te levou a escolher essa vida...?
- Assim como muitos de nós eu estava perdido, recém-saído de uma vida que fazia sentido. Até que um dia, meio que espontaneamente, conheci uma mulher. Ela estava aqui, talvez você tenha visto ela subir pro terraço comigo. Ah sim, eu vi. A indulger. Ela foi sua indulger e te iniciou, então?
- Não, eu que fui indulger dela sem nem ao menos saber o que era isso. Foi uma experiência transformadora
- Como assim? Elabora melhor!
- E remover o mistério da coisa toda?
- Sim! Fala logo, eu to curiosa!
- vamos dizer, apenas, que eu estava perdido e me encontrei. Num passe de mágica, eu descobri no amor incondicional uma razão pra viver. Naqueles meses que passamos juntos, eu morri um bocado de vezes e acabei renascendo um indulger iniciante.
- Caralho você foi indulger dela por meses? Pensei que era coisa de uma noite só!
- As vezes é coisa de minutos, as vezes de anos. Isso só depende da situação.
- Entendi. Cara você precisa me falar como você fez isso. Meu pé direito está relaxado cara. Não dói nada!

Ele removeu os eletrodos e voltou a massagear a região.

- Dói agora?
- Não dói, mas ainda me incomoda.
- Isso aqui é a sua porta, Luiza. É bem aqui nesse ponto do seu pé. Deixa as coisas fluírem daqui que você vai destrancar tudo o que está aí dentro. Sabe-se lá quanta coisa não está aí dentro. Você poderia ser uma bomba relógio, moça! E eu adoraria te ver explodir...
- O que? Isso não faz sentido nenhum!
- Só relaxa, tá bem?

Ela se calou e virou de bruços. Rapidamente Emanuel já estava massageando suas pernas, embora sistematicamente evitasse o local com a tornozeleira. Talvez ele não fosse assim tão perturbado quando pareceu inicialmente. Ele estava tentando amá-la apesar do fato repulsivo de que ela imitava nossa mãe. Ele queria se superar: estava buscando mais poder sobre si mesmo, mais liberdade. De fato, ele queria poder assim como eu. Só que esse poder era sobre si mesmo, sobre as possibilidades dele. E eu decidi tentar algo assim naquele dia. As gemidas daquela mulher eram sutis, mas podiam ser ouvidas em resposta ao toque dele. Meu irmão era massagista nato e qualquer pessoa com o mínimo de informação sabe que os indulgers trabalham com massagem e expressão corporal em termos que a ciência mal pode explicar. Pra eles, os músculos do corpo falam pela pessoa e, com base nesses princípios eles conseguem ver coisas nas ações das pessoas que aparentemente seriam insondáveis na ausência de anos de terapia. Dominaram um segredo, digamos assim, e o mantém guardado a sete chaves.

- Você sangraria por mim? - ela perguntou

Ele respondeu com aquele sorriso, mas logo pegou a faca e abriu um corte relativamente profundo na altura do próprio coração. Ela se sentou e cicatrizou a ferida que ele tinha no pescoço, mas logo ela a deitou de volta na cama. Seu sangue escorria num fluxo fraco, mas constante pelo corpo dela. Quando chegou entre as pernas dela, seu gemido foi estrondoso. Pelos olhos dele, já sabia o que fazer.
Foi descendo e chegou até o ponto em que o sangue escorria pro colchão. Ela fechava as pernas, mas não fazia força demais. Um pouco de vergonha, medo. Mas sua vontade era muito maior do que o medo. De repente, ele estava com a boca naquele pequeno rio de sangue, manchando o rosto no próprio sangue e com dois dedos dentro dela. Cada gemido daquela mulher me deixava com mais tesão até que o mais extraordinário aconteceu. Eu gozei com o sexo oral! Uma coisa completamente sem precedentes. Dei passagem pra mulher sair debaixo da minha mesa. E ela viu alguma coisa no meu rosto que a fez sorrir.

- Quer um pouco mais, senhor? - ela falou enquanto se sentava sobre mim
- Eu mandei você sentar em cima de mim?
- Com o seu olhar. Você me comandou se mover os lábios.

Ela me beijou e tirou minha concentração. Antes que eu entendesse o que estava acontecendo, já estava dentro dela. Eu, dentro de uma prostituta! Coloquei a cabeça no ombro direito dela e continuei assistindo Emanuel enquanto ela gemia no meu ouvido. A mulher que ele procurava satisfazer parecia passar por altos e baixos em sua expressão facial. Com os olhos fechados, no entanto, ele contava apenas com as mãos pra decidir se ela estava gostando ou não. Em um dos altos, ela tirou o sutiã e colocou a mão esquerda dele em um dos seus seios. Eles eram perturbadoramente parecidos com o da nossa mãe. A impressão que ela passou é de que existia uma verdadeira barreira entre ela e o prazer. Toda vez que ela parecia estar chegando lá, colocava a mão direita na cabeça dele e o empurrava pra trás, como quem diz: “alto lá, você não é permitido aqui!”. Mas cada vez ele voltava com mais vontade, cada vez intensificava os movimentos e as carícias, como se os dois estivessem numa queda de braços. Estava ficando cada vez mais difícil me concentrar com aquela mulher sobre mim e, de fato, foi como se estivéssemos na mesma situação, eu e a mulher que Emanuel procurava satisfazer. Estávamos ambos tentando parar o prazer, tentando impedir que outra pessoa tomasse de nós o controle da situação. Não poderíamos admitir que alguém cruzasse nossa fronteira!
Mas, como com frequência acontece, muralhas caíram. O braço direito dela cobriu seus olhos enquanto o esquerdo o puxou adiante e ela começou a se contorcer. Gemia baixo, especialmente quando comparado com a gemida anterior. Prendeu a cabeça dele entre suas pernas em meios aos seus movimento espasmódicos e não consegui me controlar. Porra, ela era frígida! E gozei mais uma vez, o que nunca tinha acontecido então. Uma prostituta me fez gozar duas vezes!
E a minha vontade não tinha fim. Derrubei os projetores da minha mesa no chão e comecei a foder ela como nunca tinha me permitido desde Liana. Como se fossem os últimos instantes da minha vida, agarrei ela pelos cabelos e passei ali bons trinta minutos. Quanto eu terminei, acabamos rolando pro chão e vi um dos meus projetores mostrando o quarto onde Emanuel estava deitado com a mulher, acariciando sua tornozeleira e parecendo satisfeito. Ele olhou exatamente pra câmera que esse projetos monitorava.

- Gostou do show, fred? Gostou do que viu?

Fiquei chocado. Será que ele sabia que estava sendo observado? Será que ele apenas deduziu que era possível? Que porra foi aquilo?

- Fred? Você é o Emanuel! Você é filho do Constantino Peçanha! Caralho, eu sei quem você é! - a mulher disse

Emanuel deu um sorriso pra ela que não me lembrava nada além daquele de um viciado sobre intenso efeito de droga. Um sorriso maníaco, talvez meio ameaçador.

- A gente se vê depois, luíza.


Era informação demais, era loucura demais. Eu precisava esvaziar minha cabeça pra poder organizar tudo. Dispensei a prostituta com literalmente a maior gorjeta já dada nessa cidade e entrei em hibernação induzida. Mas meu descanso foi perturbado. Algumas horas depois, não sei exatamente como, alguém cortou toda a eletricidade da cidade. Eu estava sobre ataque. Meu mundo interno teria que esperar.