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Virtualidade real (Extra)



 -       Olá e bem vindos ao primeiro bimestre do curso de Arquitetura da Universidade virtual de La Paz. Meu nome é Andrea e eu serei sua professora em uma série de disciplinas nomeada “Conceitos básicos de arquitetura virtual”. Antes que me perguntem, é cientificamente comprovado que o aprendizado de conteúdo novo não é eficiente por neurocomunicação. Em matérias mais adiante, quando se tratar de conteúdos que vocês comprovadamente dominam, usaremos essa comunicação como meio de agilizar projetos, mas o aprendizado precisa acontecer por linguagem oral e escrita. A produção de trabalhos por meio de neurocomunicadores é permitida desde que estes sejam entregues em formato de texto. Estaremos trabalhando em língua portuguesa pura por determinação da coordenação e tradutores em tempo real são autorizados, desde que isso não interfira no desempenho de seus computadores. Mas chega dessas explicações. Vou agora responder perguntas dos alunos. Lembrem-se de usar linguagem falada ou escrita.
-       Olá, meu nome é Fernando e tenho algumas duas dúvidas a respeito da exigência de linguagem falada ou escrita.
-        Pois bem, faça suas perguntas, Fernando.
-        Em primeiro lugar, se nós estamos imersos em realidade virtual e não movemos nossas bocas pra falar ou nossas mãos pra escrever, o que legitima essa separação? Ou melhor palavras, o que garante que o aluno não produzirá uma cibermensagem pro seu computador traduzir e enviar?
-        Acredito que você confundiu um pouco essas dua tecnologias, possivelmente porque você já nasceu num mundo onde ambas eram comuns. Mas a tecnologia de realidade virtual é mais antiga e estável do que a cibercomunicação. A primeira é uma interação direta entre cérebro e máquina que simula a experiência sensorial. Isso inclui percepção vestibular e propriocepção. Ou seja, enquanto fala comigo, você tem a mesma sensação que teria se falasse ao vivo e as mesmas áreas do seu cérebro são ativadas. O que legitima essa separação, portanto, é a evidência empírica de que a atividade cerebral de falar é essencial para aprender conceitos novos. Se o alunos produzir meios ilícitos de comunicação por cibermensagem e for descoberto enquanto faz isso, perderá sua matrícula na matéria instantaneamente. Se ele não for pego, apenas terá prejuízo em seu aprendizado.
-        Eis a minha segunda questão. Vocês não sabem que há evidências de que pessoas jovens podem aprender conceitos novos diretamente por neurocomunicação?
-        Sou familiar com esse trabalho, que aliás é o único com essas evidências. Enquanto as evidências estão bem documentadas, esse trabalho carece de uma teoria que explique como isso é possível e também de extensa replicação. Afinal, não é porque aqueles jovens aprendem assim que todos aprenderão e precisamos trabalhar democraticamente. É bom que você tenha perguntado isso, porque é parte do nosso conteúdo e posso dar uma introdução nesses conceitos. Durante todo esse curso, vocês vão aprender a trabalhar com realidades virtuais bem específicas e vão se comunicar por neuromensagens. Mas o que são essas coisas? Como foram inventadas? Se ninguém mais tiver perguntas eu posso iniciar a aula – respondeu a professora calmamente
-        Eu, Aqui. Meu nome é Luiza. , muito prazer. Eu tenho uma pergunta, é rápida – disse Luíza
-        O prazer é todo meu, Luiza. Prossiga – Disse Andrea
-        Nós vamos aprender a usar programas antigos ou a projetar edifícios com papel?
-        Bem, Luíza, talvez você não saiba, mas é extremamente trabalhoso produzir plantas de edifícios modernos por esses meios, já que eles não calculam as fontes e distribuição de energia e nem a biomassa do projeto, mas temos uma matéria onde esses métodos podem ser utilizados no próximo bimestre. Ela é uma matéria optativa, então se você tem interesse nisso, faça sua pré-matrícula. O nome da matéria é “arquitetura de edifícios virtuais”. Claro que pra projetar um edifício fora de realidade virtuais você irá precisar de instrumentos caríssimos a não ser que tenha sua própria nano-impressora. Mais alguma dúvida?

A turma ficou em silêncio e dois alunos ficaram ausentes.

-        Gostaria de lembrar que ausências serão documentadas e estar apenas conectado à sala de aula não servirá como fonte de créditos.

Os dois alunos voltaram alguns segundos depois dessa mensagem.

-        Que bom tê-los de volta. Tive que dar esse aviso devido à comum ausência nessa parte do curso, que ainda assim é importantíssima. Agora, essa não é uma aula de programação de nem de computação, então não haverá detalhes técnicos excessivos ou irrelevantes para o trabalho do arquiteto. Mas saber o mínimo sobre nossa principal ferramenta de trabalho é essencial para estarmos situados. Pra saber o que estamos fazendo, como estamos fazendo e pra que. Trabalhos feitos intuitivamente e sem planejamento dificilmente são aceitos, já que clientes gostam de fazer pedidos vagos e acompanhar nosso trabalho. Assim, é importante ter domínio completo sobre o que se está fazendo, porque dificilmente o objetivo inicial é concluído e sem essa segurança o profissional pode ficar literalmente perdido em seu próprio projeto. Improviso não é tolerado e isso pode custar seus empregos, então aprendam bem os quês e porquês de tudo o que estão fazendo. - prosseguiu a professora
-        Mas isso não tornaria o trabalho pouco criativo e muito mecânico? - perguntou Luíza
-        De maneira alguma. Eu diria que saber como projetar é tão importante quanto ter inspiração e fazer um bom projeto. De que adianta, afinal, ter uma grande ideia e depois não saber construí-la? O que você vai aprender nesse curso é precisamente isso. Vai aprender a projetar exatamente aquilo que pensou, e não algo parecido.
-        Mas não é só você pensar que aparece? - perguntou Luíza
-        Infelizmente não. Tem muitos aspectos e precisam ser pensados separadamente e inclusive testados. Mas isso você vai perceber com mais clareza no decorrer do curso. Mais alguém tem dúvidas?

A turma permaneceu em silêncio, embora os alunos tenham trocado algumas cibermensagens entre si. Andrea seguiu adiante, já que o tempo era curto, e abriu um novo projeto de casa.

-        Testei e comprovei que esse conteúdo é melhor absorvido quando associado à aplicações, então levantem-se e me acompanhem.
-        Apenas um cubo vazio? - indagou Fernando.
-        Se você preferir, podemos aumentar esse cubo  colocar paisagem, mas pro conteúdo que vou demonstrar esse espaço é suficiente. E é eficiente, já que exige pouco poder de processamento e permite a usuários de computadores públicos uma aula fluida. Peço que evitem a troca de cibermensagens durante a aula, já que isso causa considerável prejuízo de atenção. E já que eu detesto falar sozinha! Mentira, até que gosto, mas quando estou realmente sozinha.

A turma deu uma leve risada, como se tivessem rindo apenas pra ela não se sentir mal. Andrea colocou um projeto de casa básica no meio do cubo.

-        por favor, me acompanhem e respondam breves perguntas em formato escrito
-        Mas porque em formato escrito – indagou Luíza
-        Porque senão só você e o Fernando responderão e isso já está bem claro, não é?

Luiza ficou sem ação diante da resposta, já que parecia rude, mas a professora estava com um sorriso de aprovação no rosto. Os alunos trocaram cibermensagens ofensivas sobre ela, e Luiza recebeu algumas. Nem se deram ao trabalho de olhar no rosto da professora como já era de costume. Como Luiza gostava de viver segundo os costumes antigos, ela não respondeu a nenhuma mensagem. Apenas se limitou a expressar seu descontentamento com uma cara feia, que apenas Fernando percebeu. Apesar disso, como ele não recebeu nenhuma mensagem, não entendeu do que se tratava.

-        pois bem, o que é isso sobre o que estamos andando? - perguntou Andrea

As respostas chegaram, equivalências foram processadas e ela obteve os dados da turma.
-        bem, 60% respondeu “chão virtual”, 25% respondeu “versão antiga de plano virtual sem textura”, 10% respondeu “grade branca com fundo preto”, 2% respondeu “não estamos andando” e os últimos 3% tiveram respostas que não se encaixaram na maioria e não poderão ser todas mencionadas. Todas as respostas têm um fundo de verdade, embora algumas estejam mais próximas do meu ponto do que outras. Sim, isso é chão virtual. E sim é um chão de grade branca com fundo preto e sim, ele é um plano sem textura antigo, então parece pouco natural. Mas é esse o objetivo de usar essa textura. Lembrar-nos de que, muito embora tenhamos aqui a sensação de realidade e inúmeras facilidades, isso é apenas uma simulação. Ou seja, você pode projetar uma linda casa aqui, mas la fora ela não ser possível devido à escassez de material, problemas no terreno ou outra coisa. Por isso é importante que usemos o simulador de adversidades, que é um aplicativo detestado por todos os calouros, mas que é importante pra termos a noção de que nosso projeto será feito fora do mundo real. E que pessoas realmente andarão nele. Como alguns disseram “não estamos andando”. Não estou subindo a escada de uma casa básica. Estou acessando um projeto em realidade virtual. Falei demais ou isso ficou claro? Alguma dúvida?
-        Eu tenho, professora. Mas acho que pode ser meio demorada. - disse Fernando
-        Adoro coisas demoradas. Pode falar, Fernando.
-        Eu fiquei me perguntando se realmente faz sentido um arquiteto se formar numa universidade virtual. Quero dizer, será que esse aplicativo e esse conhecimento nos servirá quando estivermos fora do ambiente virtual? E se isso só servir pra construir ambientes virtuais? E se o ambiente virtual falhar, por exemplo, com uma tempestade solar?
-        Bem, você poderá se valer, nessas situações, do conhecimento das suas aulas de manuseio de instrumentos antigos. Isso também te permitirá trabalhar dentro de realidades virtuais, o que tem permitido muita gente ter emprego, mas onde o “roleplay” proíbe o uso de tecnologias atuais. Mas me tire uma dúvida: que tempestades solares são essas? - respondeu a professora
-        Não é nada Só uma coisa que li num trabalho de ficção antigo. É que eu gosto de imaginar como viveríamos sem realidades virtuais. Será que ainda sobreviveríamos? Será que a sociedade ainda pode funcionar sem isso? Quero dizer, ainda teremos tempo e espaço pra fazer tudo o que queremos apenas com o “mundo real”?
-        Interessante você fazer essas aspas com as mãos. Faz tempo que não vejo alunos que gesticulam. Infelizmente não poderemos discutir esse tema a fundo nessa disciplina, mas você pode se inscrever na discplina “mudanças histórico-epistemológicas no tempo-espaço” e discutir isso. Recomendo a matéria, é interessante. Mais alguma questão?

A turma ficou em silêncio.

-        Bem, então quero que alguém me responda essa: porque essa casa não pode ser criada por neurolinguagem? Tem algum motivo pra isso?
-        Bem, você disse que são tecnologia diferentes. Pode haver um problema de compatibilidade por causa do formato de dados – respondeu Fernando.
-        Sim, exatamente. Muito bem, Fernando! Alguém sabe a diferença entre os formatos e porque um não pode ser convertido no outro?
-        Porque ideias de cibermensagem são mais vagas e ganham maior precisão quando são representadas por linguagem? - disse uma aluna que até então não havia se pronunciado
-        Desculpe, qual é seu nome?
-        au... Augusta. Meu nome é Augusta – respondeu a aluna
-        Pois bem, boa resposta Augusta. O processo de ciberomunicação envolve interpretação do conteúdo. É justamente por isso que não é possível aprender conteúdos novos por meio da comunicação.
-        Mas nós não interpretamos também o conteúdo falado?
-        Sim, mas nesse caso nós interpretamos palavras, que são nosso meio de comunicação nativo, e as transformamos em esquemas mentais. As cibermensagens são esquemas prontos e se você não os conhece eles são traduzidos de maneira imprecisa pelo seu cérebro. É como se você, o arquiteto, falasse de um projeto seu a um leigo usando termos técnicos. Alguma coisa ele vai entender, mas não exatamente o que você quer dizer, não é?
-        Mas isso também é verdade pra linguagem! - retrucou Fernando
-        Sim, mas o conteúdo da linguagem você pode rever e repensar. Não há como repensar uma cibermensagem porque ela já é pensada. Você deve saber que não há duvidas sobre o conteúdo das cibermensagens, não há como interpretá-la de duas maneiras. É uma forma de comunicação que, apesar de sua rapidez, acaba se limitando apenas ao obvio e ao já conhecido.
-        Mas então como poderiam pessoas aprender novos conteúdos, como sugeriu o estudo?
-        Bem, eles podem já ter familiaridade com o tema sem que essa familiaridade seja declarada ou mesmo consciente. O experimento pode ter sido forjado, os participantes podem ter sido subornados ou simplesmente pode ser que precisemos de um novo conjunto de conhecimentos pra explicar como o cérebro humano tem interagido com esses mecanismos de comunicação avançados. Mas com o que sabemos até agora, não é confiável usar esse tipo de comunicação no contexto de ensino. Isso já foi testado exaustivamente e o aprendizado tem eficácia 85% inferior ao que estamos usando agora. Mais alguma dúvida? Alguém?
-        Temos que comprar algum programa? - perguntou outro que falava pela primeira vez
-        Qual é seu nome, por favor? - perguntou Andrea
-        Porque você pergunta meu nome ao invés de acessar meu perfil e ver?
-        Questão de hábito. Qual é?
-        É... Aurisberto
-        Pois bem, Aurisberto, todos os alunos da Universidade virtual de La Paz usam um certificado da própria universidade pra acessar todos os programas e aplicativos necessários pro curso. Recomendamos apenas que você tenha um computador com mecanismo de imersão virtual moderno, mas se isso não for possível você pode usar nossas máquinas públicas. A princípio, portanto, o curso é totalmente gratuito.

Os alunos começaram a iniciar aplicativos externos e a requisitar conexão em outras realidades virtuais quando Andrea se deu conta de que o tempo já havia acabado. Tanto pra dizer em tão pouco tempo...

-        certo alunos, lembrem-se que nossas aulas acontecerão nesse mesmo horário de segunda a sexta. Não percam suas aulas e boa segunda-feira!

1 - Minha segunda infância




Contantino Augusto Peçanha, setembro de 2075

O procedimento estava concluído. Meu cabelo escureceu, minha pele alisou, tudo foi trocado. Eu sei que tudo leva um mês, mas o coma induzido faz as coisas passarem depressa mesmo dentro da interface onírica disponível no local. Aprendi o Swahili, que é a língua franca por lá enquanto toda a minha reconstrução era feita. Então depois, em casa me olhei no espelho e me senti realmente jovem. Nada espiritual nem físico propriamente. Eu apenas não fazia mais ideia do que queria. Reencarnar, antigamente, era pra mim uma noção bem mais simples do que acabou acontecendo.
Com essa nova legislação, idosos reconstruídos ganham, ao invés da aposentadoria, uma segunda infância, com a qual fazem o que quiserem e sem nenhum compromisso. Foi a solução perfeita pro rombo previdenciário, que acreditavam que seria a ruína do Estado. Mas lá estava eu, um velho cientista aos 90 anos com os tecidos tão jovens quanto quando tinha seus 20.
No começo eu quis ser precavido. Já tinha um bom emprego e uma posição relativamente prestigiada no meu meio. Eu poderia simplesmente continuar trabalhando ali. Mas já se passaram dois meses e, embora eu tenha acompanhado publicações relevantes e me mantido atualizado, não pisei em um laboratório desde então.
Dessa vez eu queria algo novo. Queria fazer o que nunca me vi fazendo, ir a lugares onde nunca pensei que iria. Eu queria um pouco de loucura, mesmo que não soubesse nada sobre esses ambientes na minha época e que, em 2075, as coisas tenham mudado tanto.
Pesquisei com meus óculos e achei uma boate: “Plasma verde – o Point do século 20”. A razão da primeira parte do nome é além da minha compreensão, mas a segunda me apeteceu. Pelo menos eu poderia começar num lugar minimamente familiar pra, a partir dele, ver se realmente é isso o que quero e depois ir adiante.
E foi o que eu fiz. Encontrei minhas roupas antigas, que guardei com vácuo por causa antiga promessa de emagrecer que eu nunca cumpri. Serviu perfeitamente. Senti-me estranho vestindo aquilo. Algumas pessoas vestiam roupas assim, mas tinha tecidos digitais. Lembrei da época em que ciborgues não existiam, robôs não estavam em toda a parte e nem tudo era monitorado. Aquele tecido que não se regeneraria, que não muda de cor, que não se conecta à internet. A simplicidade perdida me deixou nostálgico. Bem que poderiam ter inventado uma máquina do tempo!
Pessoas me olhavam com um ar de estranhamento na rua. Eu não tinha as marcas dos outros idosos, então achavam que eu era jovem. Mas estranhavam minha roupa e o fato de que ela não me identificava. Vi pelo menos duas pessoas me olharem enquanto claramente mandavam comandos pros seus óculos. Como minha tecnologia era superior, eu podia ver os caminhos pela web que eles transitavam. Queriam saber como tornar sua roupa indetectável. Se, por um lado, todos se monitoravam mutuamente, as pessoas pareciam secretamente querer reencontrar o anonimato perdido. Mal sabiam que basta parar de monitorar a vida, que ela deixará de entrar no processador central e o anonimato voltará. Mas tudo precisa ser tweetado!
O bar tocava música da metade do século XXI e eu não identifiquei ninguém nenhum idoso restaurado por procedimentos locais. Todos pareciam pessoas de uns 30 à 50 anos reconstruídas prematuramente pra parecerem adolescentes. Uma obsessão que sempre me deu nojo. Pra mim, aquilo era uma apologia à pedofilia, esse crime que só acabou quando a sociedade foi tweetada.
Mas uma mulher não aparentava com uma adolescente. Ela não tinha o rosto simétrico, muito menos dentes alinhados e brancos. Na verdade, ela parecia com uma pessoa que eu poderia encontrar há uns 40 anos atrás, antes da obsessão pela estática tomar as proporções que tomou. Parecia a Luíza. Simplesmente uma pessoa comum, e ainda assim linda. Pra minha decepção, vi que se tratava de uma mulher de 35 anos com a aparência de 30. Logo quando eu fui elogiar a naturalidade daquela beleza, percebi a pele de bebê. Ela apenas escolheu parecer mais velha e fez o procedimento prematuro como todo mundo.
Só que a artificialidade dela não me repeliu e ela notou minha modificação de linguagem corporal. Tudo aconteceu tão rápido que eu mal tive tempo de ver as coisas. Dei um gole na minha agua cafeinada e quando virei para olhar novamente ela já estava na minha frente. Beijou-me, como se isso fosse a coisa mais comum do mundo. Foi aí que eu realmente entendi o que significa ser velho. Se deparar com o comportamento de uma pessoa jovem e ficar completamente confuso.

- Você fala português brasileiro puro? – perguntou ela
- Sim, falo
- Tudo bem que você tem sotaque, mas fala bem! Impressionou-me!
- Tenho, é? O que te impressionou? – perguntei rindo por dentro daquilo tudo
- Primeiro que você se reconstruiu como uma personalidade importante da década de 30, o que me diz muito sobre sua meticulosidade. Segundo que você está com essas roupas e protegido contra meus escaneamentos, o que me mostra como você tem recursos e que sabe usá-los com o que interessa. Mas é mais do que isso. Você sabe imitar bem a maneira como as pessoas se comportavam no começo do século. Parece mortal, selvagem, destemido!
- E você acreditaria que eu sou mesmo daquela época?
- Olha, eu estou te elogiando, mas vê se não exagere. Já falei que seu sotaque é visível.

Aquela mulher conseguia uma coisa incrível. Ela se colocava numa posição ridícula de ignorância, acreditando conhecer coisas que de fato não conhecia, mas ainda assim ela me encantava. Mesmo que um pouco forçada, ela parecia com um dos meus grandes amores. Ela parecia uma mulher da minha época, algo que a tornava única em meio à beleza sintética e insípida que me rodeava no cotidiano. Era personalizada! Ela me convidou pra uma neuroconversa e começou a me transmitir um vídeo. Era um vídeo pornográfico feito com uma daquelas antigas câmeras digitais que tremiam a imagem. Uma parte do passado que em nada me apetecia. Ela comentou a imagem:

- Essas pessoas poderiam contrair doenças e morrer. Elas poderiam ser excluídas, perseguidas. Mas faziam isso! Veja só. É isso que o ser humano perdeu. Seu lado selvagem, que sabe que a vida é curta e vive tudo ao máximo! Elas não paravam no tempo, porque ele era curto. Amavam, fodiam, fumavam!
- Realmente as pessoas se tornaram brinquedos insípidos. E pensar que no passado essa dita imortalidade era um desejo supremo de muita gente!
- Mas não eram muitas não. Depois te passo minha literatura. As pessoas gostavam da mortalidade, porque ser mortal significava não ter tempo à perder.
- Não era bem assim não... – falei em voz baixa

Ela não pareceu ter escutado o que eu disse. Simplesmente pegou minha mão e me levou dali. Saí tão rápido quanto cheguei e paguei pela agua que nem bebi. Que esse meu vício em cafeína era fisiológico, ninguém tinha dúvidas. Mas meu sistema nervoso foi “resetado”.Tanto que só aqueles goles fizeram efeito. Mas eu estava cheio de energias. Juventude, talvez? Ou quem sabe apenas paixão?
Chegamos a um quarto e ela tirou a roupa. Nem sei bem como ela o fez, mas em alguns segundos, já estava nua. Dei um passo pra trás espantado.

- Sabe que essas suas imitações não são as melhores que já vi, mas me dão o maior tesão? Você faz uns gestos e às vezes parece que você realmente viveu naquela época.
- E as moças de hoje parecem mais precipitadas do que as de outrora. Você tirar sempre suas próprias conclusões assim?

Ela rasgou minha camisa. Minha camisa que minha mãe me deu. Mas eu não liguei na hora. Eu nem conseguia ligar pra nada, porque perdi a noção de tempo e espaço de uma maneira que nunca aconteceu antes. Sentindo aquilo e lembrando dos suicidas que foram jovens comigo, me perguntava se eles viveram de fato mais do que eu.
“Como eu nunca fiz isso antes?” pensei enquanto ela me beijava. Tudo até ali tinha sido calmo, tudo nos conformes, detalhadamente ajustado. Mas ali, estávamos dois loucos de óculos simplesmente entregues um ao outro. Bem, pelo menos eu estava entregue. Não quis controle nenhum, porque gostava de assistir as loucuras que ela fazia. Pelo menos até o momento em que eu vi uma novidade com a qual não me ajustei.
Enquanto ela tinha um orgasmo, suas unhas mudaram de cor e ela cortou o próprio peito. Uma cena verdadeiramente horrenda. O sangue dela era azul!
Eu conhecia a tecnologia que fazia aquilo, mas não imaginava que aquilo era realmente utilizado dessa forma. Ela deitou na cama e começou a espalhar o sangue, como se eu devesse me sentir estimulado por aquilo.

- Vem sentir meu gosto! – sussurrou ela

Eu me levantei e comecei a procurar meu nanocicatrizador. Derrubei minhas coisas no chão Ele estava no bolso da minha camisa, que ela arrebentou. Quando ela percebeu meu medo, sua expressão mudou de desejo pra desconfiança.

- Você entende o que plasma verde significa, cara? – perguntou com um tom de indignação
- Não.
- Então quer dizer que você simplesmente entrou aqui achando que é assim?
- Bem, eu me orientei pela segunda parte do nome.

Ela começou a procurar em seus pertences e tirou dali um nanocicatrizador velho. Ele falhou em mapear a ferida e sua luz vermelha piscava loucamente.

- Era só o que faltava. Essa porcaria não funciona e eu aqui com um cara que nem sabe onde está! Eu esperava tanto dessa noite! - Esbravejava ela enquanto reunia suas roupas

Finalmente encontrei meu cicatrizador e fechei a ferida dela. Os tecidos da cama já tinha absorvido a maior parte daquele sangue. Eu realmente detesto esse tipo de tecido. Uma vez sonhei que um desses ia me absorvendo, molécula a molécula, até não sobrar nada. Até cientistas têm suas superstições, não?

- Porque você tá tão preocupado com essa ferida? Você tem algum problema mental?
- Você não parava de sangrar! A ferida precisava ser cicatrizada!
- Então você não sabe de nada mesmo? Cara, isso aqui não é nada. Eu tenho reservas e tudo mais, sabe? Tenho cara de pobre assim, pro acaso?
- Não, é que...

Fiquei me sentindo um idiota completo. É claro que aquele sangue artificial seria reposto. É claro que todos os elementos do plasma sanguíneo seriam rapidamente sintetizados. Mas eu fiquei tanto tempo dentro dos laboratórios que perdi meu contato com o mundo lá fora. Nem sei se algum dia eu serei capaz de ver uma pessoas sangrar, vermelho, azul ou seja lá que cor for, e não reagir assim. Mas certamente espero nunca me sentir sexualmente estimulado por essa barbaridade!

- Que marca é essa no seu braço direito? – perguntou ela
- É um resquício de uma antiga tatuagem que eu tinha. De antes da pele ser tão loucamente personalizável como hoje. Nós colocávamos tinta debaixo dela com agulhas
- Eu sei que isso era feito! E também sei que você é um... espere um pouco... – ela consultou seus óculos – qual era a sua tatuagem?
- Era um tigre desenhado com traços de lápis

Ela fez cara de espanto, tirou um fio de cabelo da minha cabeça e saiu do quarto ás pressas. Alguns minutos depois ela voltou com meu DNA sequenciado e o rosto rubro.

- Você é o Peçanha! O Constantino Peçanha!
- Sim, esse é meu nome. Outra coisa que achei estranho é que não sei o seu. Porque você não me disse?
- Pensei que você consultaria na rede.
- Não. Não gosto disso. Qual é o seu nome?
- Luíza

Quando ouvi aquele nome, meu coração acelerou. Porque justamente aquele nome? Porque justamente aquele rosto? Fantasmas do meu passado tomaram conta de mim enquanto eu tentava me recompor.

- Você a conheceu, não foi? A Luíza de verdade? – ela perguntou empolgada
- Eu conheci uma Luiza sim...
- Quer falar dela?
- Não. Não quero.

Deitei naquela cama enorme e olhei pra tela do teto. Árvores, paisagem. Aquelas imagens parecem reais quando a sua mente está em outro lugar. Qual era o sentido de tudo. Será que se eu morresse ela estaria lá?

- Mas você pode falar de outras coisas? Coisas do cotidiano, pelo menos? – ela perguntou esperançosa
- Sim, claro. Mas antes que você comece essas fantasias de morte, a gente não queria não. Eu, por exemplo, tinha é o maior medo. E todo mundo tem sotaque!
- Eu quero ver músicas que você gostava da época. Que música está na sua mente agora.
- Ah... tinha uma da Norah Jones. Be here to love me.

Ela colocou a música nas caixas de som do quarto e eu chorei feito um bebe. Chorei o que ficou contido por trinta anos. Incrível como estar naquele ambiente com uma estranha me fez liberar tanto sentimento.

- Porque você está chorando? É a música?
- É e não é. As coisas que ela evoca, feridas que ela abre.
- Quer que eu tire?
- Não. –respondi quase sussurrando
- Mas você está triste por causa dela!
- E ficar triste é proibido hoje em dia?
- É ruim, não é? – ela perguntou confusa
- É humano, eu diria.

Ela deitou no meu peito e olhou as árvores. Começou uma ventania, as folhas voavam e os pássaros voavam pra longe.

- Adoro essa parte – disse ela apontando pra cima – olha só o que aquele esquilo vai fazer!

Na imagem, um esquilo foi levado pra cima pelo vento e parecia que ele em alguns instantes iria cair pra sua morte. Mas ele se agarrou no topo da árvore e apanhou uma frutinha. O sacana usou a força do vento pra chegar até o topo e conseguir a fruta enquanto os macacos estavam distantes, com medo da fúria dos ventos. Mostrou, com toda propriedade, como crises são também oportunidades. Feito um bipolar, eu sorri. Como se aquele esquilo estivesse ali pra isso. Pra eu aproveitar aquele momento e adentrar naquele novo mistério

- Olha só um vídeo que muita gente gostou quando saiu. Eu tinha uns 22 anos quando vi pela primeira vez. – falei num tom de quem recupera lentamente o ânimo

Coloquei meus óculos e mostrei a tragicômica cena do menino que perdeu o próprio pênis. Não conseguia encontra-lo. “Cadê?”, perguntava ele angustiadamente. Ela não viu nenhuma graça e, no fim das contas, nem eu. Na época, há 70 anos, a coisa parecia engraçada, mas tudo mudou, o mundo mudou e eu também. Nem lembro mais porque eu achei isso tão engraçado na época. Com o tempo, as mudanças ficam assim. Você vai lentamente perdendo a capacidade de lembrar como você foi, porque já caminhou, já tomou curvas e desvios. Quem imaginaria, afinal, que eu estaria tendo sexo com uma masoquista sem nem saber o nome dela? Justo eu, que tanto lutei pelos bons costumes, que fui contra excessos.

- Bem, na época era engraçado... – disse ela constrangida – Mas acho que essas câmeras tremidas me irritando demais.
- Era tudo o que tínhamos antigamente. Eis aí porque eu preferia simplesmente olhar pras coisas. Nada tremia, você podia ver tudo com calma. – falei enquanto acariciava seu cabelo cacheado
- Me diz, você é rico ou alguma coisa assim?
- Tenho mais dinheiro do que preciso, mas não acho que sou rico.
- Então como você não tem as marcas do rejuvenescimento tardio?
- Eu fiz o procedimento comi os Swahili.
- Aquele procedimento proibido?
- Proibido aqui. Nasci aqui, mas sou um cidadão do mundo.
- É verdade que vocês fazem clones de si mesmos e depois matam eles pra roubar as células?
- Não. Isso é bobagem religiosa. O que nós construímos é um protozigoto com todos os tipos celulares humanos. É bem diferente.
- O que? Procurei na rede uma explicação pra isso, mas não encontrei nada bem acessível. O que é esse protozigoto.
- Ele é como um zigoto comum, que um dia nós fomos, bem lá no momento da fecundação. Só que ao invés de ser uma célula só, ele tem aproximadamente 128. Então ele começa a se desenvolver e essas células vão se multiplicando, daí temos uma base pra fazer a cultura dos nossos tecidos.
- Mas então ele seria uma pessoa se vocês não tirassem o tecido pra usar?
- Duvido muito, porque o nosso desenvolvimento tem uma sequencia e a maioria daquelas células não poderiam existir numa fase tão precoce. Já tentaram isso, eu soube, e as células não conseguiram formar um metabolismo.
- Mas então porque isso é proibido?
- Não sei. As vezes penso que os religiosos são idiotas. Às vezes penso que, no fundo, temos medo dessa imortalidade. Afinal, hoje em dia você não sabe mais a idade de uma pessoa por sua aparência. Temos uma população de 10 bilhões só aqui no planeta e isso seria maior se há dez anos o direito de ter filhos não tivesse sido tão restrito. Algumas pessoas acreditam que nós simplesmente não fomos feitos pra ser o que nos tornamos.
- Era isso que a Luíza pensava. Eu li.

O silêncio tomou o local. Fiquei lembrando de todas aquelas entrevistas, de todas aquelas pessoas querendo saber sobre ela. Talvez seja uma coisa de hoje, ou talvez seja uma coisa de sempre, não sei. Mas as pessoas tratam da dor dos outros como se ela não fosse nada. Foi por causa disso que consegui minhas defesas cibernéticas como favor ao velho hacker que eu reconstruí. Pessoas comuns e empresários ainda não entenderam que dinheiro não é mais nossa moeda de troca. Que conhecimento é o que usamos pra nossas barganhas. Consegui minha ciberinvisibilidade assim, consegui minha reconstrução assim. Só não consegui salvá-la. Ou, nas palavras dela, não consegui condená-la à vida.
Entrei na rede, como costumava fazer a uns 20 anos, e procurei por ela. E-mail desabilitado, perfis apagados. Tudo o que se podia encontrar dela eram cópias das páginas antigas. Tinha uma página que eu gostava de acessar, onde um maníaco qualquer começou a reproduzir 5 anos de atividade virtual dela. Eu podia ver as discussões acontecendo, pessoas opinando sobre coisas. Até mesmo meus próprios comentários. Era como assistir a um filme do passado, onde você não podia interagir ou mudar o final.

- Dizem que você não lidou bem com a partida dela. Até agrediu um repórter – disse ela
- Aquilo não era um robô? – perguntei num tom meio apático
- Era uma pessoa. Eu conheço ele.
- Se comportou como um robô. Aliás, robôs hoje em dia sabem ser educados e respeitam. Aprendem melhor do que muito ser humano.
- Mesmo assim, um dia pode ser bom você se abrir sobre isso com alguém.

Comecei a chorar de novo. Um dia verdadeiramente emocional. Toda minha identidade foi virada de cabeça pra baixo. Eu chorando se tornou uma coisa que nem eu mesmo conseguia imaginar.

- Ela disse que estava realizada. Eu sorri pra isso, mas ela continuou. Ela falou que a vida dela já tinha dado o que havia de dar. Que o propósito dela estava realizado e que viver seria como continuar num sonho que já deu seu desfecho. Seria, ela disse, como ficar na sala de cinema depois do filme acabar, quando tudo o que restava eram letras subindo e escuridão. - sussurrei
- Parece mesmo com algo que ela diria – respondeu ela limpando minhas lágrimas
- Mas eu era feliz, e passei minha vida inteira lutando pra manter tudo daquele jeito. Em algum momento, dentre as várias horas que passei aperfeiçoando as culturas de tecido humano, perdi meu senso de sentido da vida. Eu só queria chegar em casa e saber que podia encontra-la, porque eu reconstruí seu coração e sem labirinto, então ela vivia bem.
- E qual é o sentido da sua vida agora?
- Não faço a menor ideia. Não é atoa que chamam isso de segunda infância. Você precisa rever tudo, precisa repensar tudo. Depois que a Mônica também se foi, um ano mais tarde, eu deveria ter ido também. Acho que sou apenas um covarde por não ter acompanhado meus amores.
- Amores? Pensei que na sua época a monogamia era lei.
- Mas era. Isso nunca impediu ninguém. Tivemos conflitos, sofremos e choramos, mas no fim do dia estávamos juntos e vivemos uma vida boa.
- Relações vitalícias. Isso é lindo, sabia? Deveria existir ainda.
- As pessoas ficaram aceleradas demais. Ansiosas demais. Desaprenderam a lidar com a frustração na medida em que nosso intelecto vencia todos os limites que sempre conhecemos. Talvez os jovens de hoje sejam maduros aos 100 anos de idade, ou talvez até lá a nossa tecnologia avance tanto que jamais seremos capazes de deixar essa condição de criança mimada.
- Te incomoda eu parecer tanto com ela?
- Não sei. Sinto nostalgia. Quero voltar no tempo. Quando eu era jovem, tinha uma fantasia de ficar preso num único dia ou ano. Conclui que seria o inferno, porque eu seria uma criatura processual num mundo estável e previsível. Mas não sei se o que eu vivo agora é melhor.
Pegamos no sono e entramos na simulação onírica. Aquela sensação de entorpecimento, relaxamento, tomou conta de mim. Ela saiu e foi fazer não sei o que, mas eu fiquei na base de uma árvore de papel que alguma criança fez e deixou ali. Pelo menos imaginação ainda temos...