RSS Feed

1 - Minha segunda infância




Contantino Augusto Peçanha, setembro de 2075

O procedimento estava concluído. Meu cabelo escureceu, minha pele alisou, tudo foi trocado. Eu sei que tudo leva um mês, mas o coma induzido faz as coisas passarem depressa mesmo dentro da interface onírica disponível no local. Aprendi o Swahili, que é a língua franca por lá enquanto toda a minha reconstrução era feita. Então depois, em casa me olhei no espelho e me senti realmente jovem. Nada espiritual nem físico propriamente. Eu apenas não fazia mais ideia do que queria. Reencarnar, antigamente, era pra mim uma noção bem mais simples do que acabou acontecendo.
Com essa nova legislação, idosos reconstruídos ganham, ao invés da aposentadoria, uma segunda infância, com a qual fazem o que quiserem e sem nenhum compromisso. Foi a solução perfeita pro rombo previdenciário, que acreditavam que seria a ruína do Estado. Mas lá estava eu, um velho cientista aos 90 anos com os tecidos tão jovens quanto quando tinha seus 20.
No começo eu quis ser precavido. Já tinha um bom emprego e uma posição relativamente prestigiada no meu meio. Eu poderia simplesmente continuar trabalhando ali. Mas já se passaram dois meses e, embora eu tenha acompanhado publicações relevantes e me mantido atualizado, não pisei em um laboratório desde então.
Dessa vez eu queria algo novo. Queria fazer o que nunca me vi fazendo, ir a lugares onde nunca pensei que iria. Eu queria um pouco de loucura, mesmo que não soubesse nada sobre esses ambientes na minha época e que, em 2075, as coisas tenham mudado tanto.
Pesquisei com meus óculos e achei uma boate: “Plasma verde – o Point do século 20”. A razão da primeira parte do nome é além da minha compreensão, mas a segunda me apeteceu. Pelo menos eu poderia começar num lugar minimamente familiar pra, a partir dele, ver se realmente é isso o que quero e depois ir adiante.
E foi o que eu fiz. Encontrei minhas roupas antigas, que guardei com vácuo por causa antiga promessa de emagrecer que eu nunca cumpri. Serviu perfeitamente. Senti-me estranho vestindo aquilo. Algumas pessoas vestiam roupas assim, mas tinha tecidos digitais. Lembrei da época em que ciborgues não existiam, robôs não estavam em toda a parte e nem tudo era monitorado. Aquele tecido que não se regeneraria, que não muda de cor, que não se conecta à internet. A simplicidade perdida me deixou nostálgico. Bem que poderiam ter inventado uma máquina do tempo!
Pessoas me olhavam com um ar de estranhamento na rua. Eu não tinha as marcas dos outros idosos, então achavam que eu era jovem. Mas estranhavam minha roupa e o fato de que ela não me identificava. Vi pelo menos duas pessoas me olharem enquanto claramente mandavam comandos pros seus óculos. Como minha tecnologia era superior, eu podia ver os caminhos pela web que eles transitavam. Queriam saber como tornar sua roupa indetectável. Se, por um lado, todos se monitoravam mutuamente, as pessoas pareciam secretamente querer reencontrar o anonimato perdido. Mal sabiam que basta parar de monitorar a vida, que ela deixará de entrar no processador central e o anonimato voltará. Mas tudo precisa ser tweetado!
O bar tocava música da metade do século XXI e eu não identifiquei ninguém nenhum idoso restaurado por procedimentos locais. Todos pareciam pessoas de uns 30 à 50 anos reconstruídas prematuramente pra parecerem adolescentes. Uma obsessão que sempre me deu nojo. Pra mim, aquilo era uma apologia à pedofilia, esse crime que só acabou quando a sociedade foi tweetada.
Mas uma mulher não aparentava com uma adolescente. Ela não tinha o rosto simétrico, muito menos dentes alinhados e brancos. Na verdade, ela parecia com uma pessoa que eu poderia encontrar há uns 40 anos atrás, antes da obsessão pela estática tomar as proporções que tomou. Parecia a Luíza. Simplesmente uma pessoa comum, e ainda assim linda. Pra minha decepção, vi que se tratava de uma mulher de 35 anos com a aparência de 30. Logo quando eu fui elogiar a naturalidade daquela beleza, percebi a pele de bebê. Ela apenas escolheu parecer mais velha e fez o procedimento prematuro como todo mundo.
Só que a artificialidade dela não me repeliu e ela notou minha modificação de linguagem corporal. Tudo aconteceu tão rápido que eu mal tive tempo de ver as coisas. Dei um gole na minha agua cafeinada e quando virei para olhar novamente ela já estava na minha frente. Beijou-me, como se isso fosse a coisa mais comum do mundo. Foi aí que eu realmente entendi o que significa ser velho. Se deparar com o comportamento de uma pessoa jovem e ficar completamente confuso.

- Você fala português brasileiro puro? – perguntou ela
- Sim, falo
- Tudo bem que você tem sotaque, mas fala bem! Impressionou-me!
- Tenho, é? O que te impressionou? – perguntei rindo por dentro daquilo tudo
- Primeiro que você se reconstruiu como uma personalidade importante da década de 30, o que me diz muito sobre sua meticulosidade. Segundo que você está com essas roupas e protegido contra meus escaneamentos, o que me mostra como você tem recursos e que sabe usá-los com o que interessa. Mas é mais do que isso. Você sabe imitar bem a maneira como as pessoas se comportavam no começo do século. Parece mortal, selvagem, destemido!
- E você acreditaria que eu sou mesmo daquela época?
- Olha, eu estou te elogiando, mas vê se não exagere. Já falei que seu sotaque é visível.

Aquela mulher conseguia uma coisa incrível. Ela se colocava numa posição ridícula de ignorância, acreditando conhecer coisas que de fato não conhecia, mas ainda assim ela me encantava. Mesmo que um pouco forçada, ela parecia com um dos meus grandes amores. Ela parecia uma mulher da minha época, algo que a tornava única em meio à beleza sintética e insípida que me rodeava no cotidiano. Era personalizada! Ela me convidou pra uma neuroconversa e começou a me transmitir um vídeo. Era um vídeo pornográfico feito com uma daquelas antigas câmeras digitais que tremiam a imagem. Uma parte do passado que em nada me apetecia. Ela comentou a imagem:

- Essas pessoas poderiam contrair doenças e morrer. Elas poderiam ser excluídas, perseguidas. Mas faziam isso! Veja só. É isso que o ser humano perdeu. Seu lado selvagem, que sabe que a vida é curta e vive tudo ao máximo! Elas não paravam no tempo, porque ele era curto. Amavam, fodiam, fumavam!
- Realmente as pessoas se tornaram brinquedos insípidos. E pensar que no passado essa dita imortalidade era um desejo supremo de muita gente!
- Mas não eram muitas não. Depois te passo minha literatura. As pessoas gostavam da mortalidade, porque ser mortal significava não ter tempo à perder.
- Não era bem assim não... – falei em voz baixa

Ela não pareceu ter escutado o que eu disse. Simplesmente pegou minha mão e me levou dali. Saí tão rápido quanto cheguei e paguei pela agua que nem bebi. Que esse meu vício em cafeína era fisiológico, ninguém tinha dúvidas. Mas meu sistema nervoso foi “resetado”.Tanto que só aqueles goles fizeram efeito. Mas eu estava cheio de energias. Juventude, talvez? Ou quem sabe apenas paixão?
Chegamos a um quarto e ela tirou a roupa. Nem sei bem como ela o fez, mas em alguns segundos, já estava nua. Dei um passo pra trás espantado.

- Sabe que essas suas imitações não são as melhores que já vi, mas me dão o maior tesão? Você faz uns gestos e às vezes parece que você realmente viveu naquela época.
- E as moças de hoje parecem mais precipitadas do que as de outrora. Você tirar sempre suas próprias conclusões assim?

Ela rasgou minha camisa. Minha camisa que minha mãe me deu. Mas eu não liguei na hora. Eu nem conseguia ligar pra nada, porque perdi a noção de tempo e espaço de uma maneira que nunca aconteceu antes. Sentindo aquilo e lembrando dos suicidas que foram jovens comigo, me perguntava se eles viveram de fato mais do que eu.
“Como eu nunca fiz isso antes?” pensei enquanto ela me beijava. Tudo até ali tinha sido calmo, tudo nos conformes, detalhadamente ajustado. Mas ali, estávamos dois loucos de óculos simplesmente entregues um ao outro. Bem, pelo menos eu estava entregue. Não quis controle nenhum, porque gostava de assistir as loucuras que ela fazia. Pelo menos até o momento em que eu vi uma novidade com a qual não me ajustei.
Enquanto ela tinha um orgasmo, suas unhas mudaram de cor e ela cortou o próprio peito. Uma cena verdadeiramente horrenda. O sangue dela era azul!
Eu conhecia a tecnologia que fazia aquilo, mas não imaginava que aquilo era realmente utilizado dessa forma. Ela deitou na cama e começou a espalhar o sangue, como se eu devesse me sentir estimulado por aquilo.

- Vem sentir meu gosto! – sussurrou ela

Eu me levantei e comecei a procurar meu nanocicatrizador. Derrubei minhas coisas no chão Ele estava no bolso da minha camisa, que ela arrebentou. Quando ela percebeu meu medo, sua expressão mudou de desejo pra desconfiança.

- Você entende o que plasma verde significa, cara? – perguntou com um tom de indignação
- Não.
- Então quer dizer que você simplesmente entrou aqui achando que é assim?
- Bem, eu me orientei pela segunda parte do nome.

Ela começou a procurar em seus pertences e tirou dali um nanocicatrizador velho. Ele falhou em mapear a ferida e sua luz vermelha piscava loucamente.

- Era só o que faltava. Essa porcaria não funciona e eu aqui com um cara que nem sabe onde está! Eu esperava tanto dessa noite! - Esbravejava ela enquanto reunia suas roupas

Finalmente encontrei meu cicatrizador e fechei a ferida dela. Os tecidos da cama já tinha absorvido a maior parte daquele sangue. Eu realmente detesto esse tipo de tecido. Uma vez sonhei que um desses ia me absorvendo, molécula a molécula, até não sobrar nada. Até cientistas têm suas superstições, não?

- Porque você tá tão preocupado com essa ferida? Você tem algum problema mental?
- Você não parava de sangrar! A ferida precisava ser cicatrizada!
- Então você não sabe de nada mesmo? Cara, isso aqui não é nada. Eu tenho reservas e tudo mais, sabe? Tenho cara de pobre assim, pro acaso?
- Não, é que...

Fiquei me sentindo um idiota completo. É claro que aquele sangue artificial seria reposto. É claro que todos os elementos do plasma sanguíneo seriam rapidamente sintetizados. Mas eu fiquei tanto tempo dentro dos laboratórios que perdi meu contato com o mundo lá fora. Nem sei se algum dia eu serei capaz de ver uma pessoas sangrar, vermelho, azul ou seja lá que cor for, e não reagir assim. Mas certamente espero nunca me sentir sexualmente estimulado por essa barbaridade!

- Que marca é essa no seu braço direito? – perguntou ela
- É um resquício de uma antiga tatuagem que eu tinha. De antes da pele ser tão loucamente personalizável como hoje. Nós colocávamos tinta debaixo dela com agulhas
- Eu sei que isso era feito! E também sei que você é um... espere um pouco... – ela consultou seus óculos – qual era a sua tatuagem?
- Era um tigre desenhado com traços de lápis

Ela fez cara de espanto, tirou um fio de cabelo da minha cabeça e saiu do quarto ás pressas. Alguns minutos depois ela voltou com meu DNA sequenciado e o rosto rubro.

- Você é o Peçanha! O Constantino Peçanha!
- Sim, esse é meu nome. Outra coisa que achei estranho é que não sei o seu. Porque você não me disse?
- Pensei que você consultaria na rede.
- Não. Não gosto disso. Qual é o seu nome?
- Luíza

Quando ouvi aquele nome, meu coração acelerou. Porque justamente aquele nome? Porque justamente aquele rosto? Fantasmas do meu passado tomaram conta de mim enquanto eu tentava me recompor.

- Você a conheceu, não foi? A Luíza de verdade? – ela perguntou empolgada
- Eu conheci uma Luiza sim...
- Quer falar dela?
- Não. Não quero.

Deitei naquela cama enorme e olhei pra tela do teto. Árvores, paisagem. Aquelas imagens parecem reais quando a sua mente está em outro lugar. Qual era o sentido de tudo. Será que se eu morresse ela estaria lá?

- Mas você pode falar de outras coisas? Coisas do cotidiano, pelo menos? – ela perguntou esperançosa
- Sim, claro. Mas antes que você comece essas fantasias de morte, a gente não queria não. Eu, por exemplo, tinha é o maior medo. E todo mundo tem sotaque!
- Eu quero ver músicas que você gostava da época. Que música está na sua mente agora.
- Ah... tinha uma da Norah Jones. Be here to love me.

Ela colocou a música nas caixas de som do quarto e eu chorei feito um bebe. Chorei o que ficou contido por trinta anos. Incrível como estar naquele ambiente com uma estranha me fez liberar tanto sentimento.

- Porque você está chorando? É a música?
- É e não é. As coisas que ela evoca, feridas que ela abre.
- Quer que eu tire?
- Não. –respondi quase sussurrando
- Mas você está triste por causa dela!
- E ficar triste é proibido hoje em dia?
- É ruim, não é? – ela perguntou confusa
- É humano, eu diria.

Ela deitou no meu peito e olhou as árvores. Começou uma ventania, as folhas voavam e os pássaros voavam pra longe.

- Adoro essa parte – disse ela apontando pra cima – olha só o que aquele esquilo vai fazer!

Na imagem, um esquilo foi levado pra cima pelo vento e parecia que ele em alguns instantes iria cair pra sua morte. Mas ele se agarrou no topo da árvore e apanhou uma frutinha. O sacana usou a força do vento pra chegar até o topo e conseguir a fruta enquanto os macacos estavam distantes, com medo da fúria dos ventos. Mostrou, com toda propriedade, como crises são também oportunidades. Feito um bipolar, eu sorri. Como se aquele esquilo estivesse ali pra isso. Pra eu aproveitar aquele momento e adentrar naquele novo mistério

- Olha só um vídeo que muita gente gostou quando saiu. Eu tinha uns 22 anos quando vi pela primeira vez. – falei num tom de quem recupera lentamente o ânimo

Coloquei meus óculos e mostrei a tragicômica cena do menino que perdeu o próprio pênis. Não conseguia encontra-lo. “Cadê?”, perguntava ele angustiadamente. Ela não viu nenhuma graça e, no fim das contas, nem eu. Na época, há 70 anos, a coisa parecia engraçada, mas tudo mudou, o mundo mudou e eu também. Nem lembro mais porque eu achei isso tão engraçado na época. Com o tempo, as mudanças ficam assim. Você vai lentamente perdendo a capacidade de lembrar como você foi, porque já caminhou, já tomou curvas e desvios. Quem imaginaria, afinal, que eu estaria tendo sexo com uma masoquista sem nem saber o nome dela? Justo eu, que tanto lutei pelos bons costumes, que fui contra excessos.

- Bem, na época era engraçado... – disse ela constrangida – Mas acho que essas câmeras tremidas me irritando demais.
- Era tudo o que tínhamos antigamente. Eis aí porque eu preferia simplesmente olhar pras coisas. Nada tremia, você podia ver tudo com calma. – falei enquanto acariciava seu cabelo cacheado
- Me diz, você é rico ou alguma coisa assim?
- Tenho mais dinheiro do que preciso, mas não acho que sou rico.
- Então como você não tem as marcas do rejuvenescimento tardio?
- Eu fiz o procedimento comi os Swahili.
- Aquele procedimento proibido?
- Proibido aqui. Nasci aqui, mas sou um cidadão do mundo.
- É verdade que vocês fazem clones de si mesmos e depois matam eles pra roubar as células?
- Não. Isso é bobagem religiosa. O que nós construímos é um protozigoto com todos os tipos celulares humanos. É bem diferente.
- O que? Procurei na rede uma explicação pra isso, mas não encontrei nada bem acessível. O que é esse protozigoto.
- Ele é como um zigoto comum, que um dia nós fomos, bem lá no momento da fecundação. Só que ao invés de ser uma célula só, ele tem aproximadamente 128. Então ele começa a se desenvolver e essas células vão se multiplicando, daí temos uma base pra fazer a cultura dos nossos tecidos.
- Mas então ele seria uma pessoa se vocês não tirassem o tecido pra usar?
- Duvido muito, porque o nosso desenvolvimento tem uma sequencia e a maioria daquelas células não poderiam existir numa fase tão precoce. Já tentaram isso, eu soube, e as células não conseguiram formar um metabolismo.
- Mas então porque isso é proibido?
- Não sei. As vezes penso que os religiosos são idiotas. Às vezes penso que, no fundo, temos medo dessa imortalidade. Afinal, hoje em dia você não sabe mais a idade de uma pessoa por sua aparência. Temos uma população de 10 bilhões só aqui no planeta e isso seria maior se há dez anos o direito de ter filhos não tivesse sido tão restrito. Algumas pessoas acreditam que nós simplesmente não fomos feitos pra ser o que nos tornamos.
- Era isso que a Luíza pensava. Eu li.

O silêncio tomou o local. Fiquei lembrando de todas aquelas entrevistas, de todas aquelas pessoas querendo saber sobre ela. Talvez seja uma coisa de hoje, ou talvez seja uma coisa de sempre, não sei. Mas as pessoas tratam da dor dos outros como se ela não fosse nada. Foi por causa disso que consegui minhas defesas cibernéticas como favor ao velho hacker que eu reconstruí. Pessoas comuns e empresários ainda não entenderam que dinheiro não é mais nossa moeda de troca. Que conhecimento é o que usamos pra nossas barganhas. Consegui minha ciberinvisibilidade assim, consegui minha reconstrução assim. Só não consegui salvá-la. Ou, nas palavras dela, não consegui condená-la à vida.
Entrei na rede, como costumava fazer a uns 20 anos, e procurei por ela. E-mail desabilitado, perfis apagados. Tudo o que se podia encontrar dela eram cópias das páginas antigas. Tinha uma página que eu gostava de acessar, onde um maníaco qualquer começou a reproduzir 5 anos de atividade virtual dela. Eu podia ver as discussões acontecendo, pessoas opinando sobre coisas. Até mesmo meus próprios comentários. Era como assistir a um filme do passado, onde você não podia interagir ou mudar o final.

- Dizem que você não lidou bem com a partida dela. Até agrediu um repórter – disse ela
- Aquilo não era um robô? – perguntei num tom meio apático
- Era uma pessoa. Eu conheço ele.
- Se comportou como um robô. Aliás, robôs hoje em dia sabem ser educados e respeitam. Aprendem melhor do que muito ser humano.
- Mesmo assim, um dia pode ser bom você se abrir sobre isso com alguém.

Comecei a chorar de novo. Um dia verdadeiramente emocional. Toda minha identidade foi virada de cabeça pra baixo. Eu chorando se tornou uma coisa que nem eu mesmo conseguia imaginar.

- Ela disse que estava realizada. Eu sorri pra isso, mas ela continuou. Ela falou que a vida dela já tinha dado o que havia de dar. Que o propósito dela estava realizado e que viver seria como continuar num sonho que já deu seu desfecho. Seria, ela disse, como ficar na sala de cinema depois do filme acabar, quando tudo o que restava eram letras subindo e escuridão. - sussurrei
- Parece mesmo com algo que ela diria – respondeu ela limpando minhas lágrimas
- Mas eu era feliz, e passei minha vida inteira lutando pra manter tudo daquele jeito. Em algum momento, dentre as várias horas que passei aperfeiçoando as culturas de tecido humano, perdi meu senso de sentido da vida. Eu só queria chegar em casa e saber que podia encontra-la, porque eu reconstruí seu coração e sem labirinto, então ela vivia bem.
- E qual é o sentido da sua vida agora?
- Não faço a menor ideia. Não é atoa que chamam isso de segunda infância. Você precisa rever tudo, precisa repensar tudo. Depois que a Mônica também se foi, um ano mais tarde, eu deveria ter ido também. Acho que sou apenas um covarde por não ter acompanhado meus amores.
- Amores? Pensei que na sua época a monogamia era lei.
- Mas era. Isso nunca impediu ninguém. Tivemos conflitos, sofremos e choramos, mas no fim do dia estávamos juntos e vivemos uma vida boa.
- Relações vitalícias. Isso é lindo, sabia? Deveria existir ainda.
- As pessoas ficaram aceleradas demais. Ansiosas demais. Desaprenderam a lidar com a frustração na medida em que nosso intelecto vencia todos os limites que sempre conhecemos. Talvez os jovens de hoje sejam maduros aos 100 anos de idade, ou talvez até lá a nossa tecnologia avance tanto que jamais seremos capazes de deixar essa condição de criança mimada.
- Te incomoda eu parecer tanto com ela?
- Não sei. Sinto nostalgia. Quero voltar no tempo. Quando eu era jovem, tinha uma fantasia de ficar preso num único dia ou ano. Conclui que seria o inferno, porque eu seria uma criatura processual num mundo estável e previsível. Mas não sei se o que eu vivo agora é melhor.
Pegamos no sono e entramos na simulação onírica. Aquela sensação de entorpecimento, relaxamento, tomou conta de mim. Ela saiu e foi fazer não sei o que, mas eu fiquei na base de uma árvore de papel que alguma criança fez e deixou ali. Pelo menos imaginação ainda temos...

1 comentários:

Maria Ligia Ueno disse...

eu amo esse conto

Postar um comentário