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7 - Encruzilhada (parte 1 de 3)



Emanuel Peçanha - 2075

Emanuel Peçanha - 2075

Eu vi um demônio diante de mim. Pele vermelha, face do Deus celta e asas de morcego resplandecentes. Ele estava parado diante de mim com os olhos fixados no meu peito, confuso.

- Onde está? - ele perguntou
- O que você quer? - respondi confuso
- A escuridão do seu coração. Cadê?!
- Deve estar por toda parte. Não viu quantas pessoas eu massacrei?
- não, tem algo errado! Você já devia ter se corrompido!

O monstro colocou as mãos na cabeça e começou a gritar. Deu uns passos pra trás, tentando sacudir algo pra fora de si. Até que uma espécie de aracnídeo abriu o peito dele e saiu para fazer seu ninho em alguma árvore. Seu corpo foi se fazendo líquido e desapareceu como se nunca tivesse existido.
Liana apareceu, me assustando mais do que qualquer demônio. Passou por mim sem perceber minha presença e foi fazer carinho na aranha, que estranhamente foi ganhando cores e se transformando em algum tipo de mamífero até se fechar num casulo.

- O que é isso? - perguntei pra ela

Ela se virou pra mim como sempre fazia, sem dizer uma palavra, mas congelando todo o meu corpo com um sorriso. Veio andando na minha direção, me tomou como se eu fosse um bebê e me deitou no chão. Comigo deitado em seu colo, ela fez carinho na minha cabeça e eu chorei.

- Porque você me deixou, liana? Porque? - perguntei
- Se decide, manu. Quer saber o que é aquilo ou porque eu fui embora?

Esqueci toda a tristeza e sorri. Ela sempre me fazia tentar decidir as coisas só pra me fazer ver que eu não me dedicava a nada e sempre largava minhas coisas pela metade.

- Eu escolhi você. E nunca desisti, até o fim! Eu fiz essa decisão, li...
- Só que a decisão não era sua pra fazer, manu...
- Era de quem?
- Do destino, eu acho. Quem sabe?
- Porra de destino. E pensar que me lancei a mercê dele. Eu sinto tanto a sua falta, sabia?
- Eu sei. Já fez a sua decisão?
- Sim. O que é aquilo ali no casulo se movendo?
- Aquilo é um tigre branco
- O que? Mas era uma aranha e entrou no casulo!
- É um tigre branco. Você quis chamar de Baphomet e de aranha gigante, mas na verdade é um tigre branco.
- Mas...
- Acredita em mim, manu. É um tigre branco...

O filhote de tigre saiu do casulo como se tivesse acabado de despertar de uma longa noite de sono. E veio na minha direção. Não havia como ter medo daquela criaturinha. Chegando perto de mim, subiu na minha barriga e veio até o meu rosto me lamber.

- Isso é tigre ou cachorro? - perguntei
Um vulto de cachorro passou do meu lado, como se minhas palavras o tivesse materializado, mas logo sumiu.

- Você foi atrás de lobos, ovelhas, demônios e anjos, manu. Mas o tigre era o seu bicho de estimação.

Fiz carinho no tigre e percebi que tinha patas no lugar de mãos. De súbito, eu estava na tundra e era um tigre. Pisei suavemente na neve e caminhei um pouco até perceber que não havia nada de errado em ser um tigre.

Quando eu acordei, vi um aviso no monitor dizendo que estávamos no Rio de Janeiro. Fred e os caras da liga não me queriam perto do traje até conseguirem recuperar alguma informação a respeito do que aconteceu. Tudo tinha culminado até aquele momento e eu pensei que cometer aquele massacre ligaria algum botão dentro de mim. Era como se um monstro estivesse sempre ali dentro de mim, batendo na porta, pedindo pra sair. Quando eu vesti o traje, foi pra me entregar. Eu já estava sozinho no mundo e, afinal, porque seguir a vida negando que você é um monstro se na verdade é apenas isso que você é?
Mas quando eu abri os braços, meu peito doeu e não há nenhuma marca na minha pele ou qualquer tipo de lesão no meu corpo. Eu parei de matar as pessoas porque alguma coisa dentro de mim me trouxe uma dor horrível. A pior que já senti, pra falar a verdade. Eu não sou um assassino. Nunca fui, nunca serei. Só, quem sabe, um cara com um pouco de raiva, mas isso não faz de mim um psicopata. Tive que sair e matar dezenas de pessoas pra perceber que todo esse papo de “lado negro” nunca passou de uma fantasia minha, uma coisa que eu temia tanto que tomou proporções irreais. Eu não senti prazer em matar. Minha única diversão mesmo foi desafiar as barreiras do espaço e do tempo. Apreciei, em suma, a loucura, não a morte. Não que eu tenha me sentido especialmente culpado pela morte de todas aquelas pessoas, é claro. Não sou nenhum salvador da pátria, mas também não sou do tipo que mata por puro prazer. Um tigre, como aquele que liana tinha tatuado nas costas. Era lindo, porque, apesar de ser uma fera, estava olhando pro horizonte tranquilamente.
Fosse o que fosse, minha cabeça estava cheia demais. Eu precisava esquecer tudo aquilo e ser o que nasci pra ser. Um Indulger. Só de imaginar eu já senti aquela sensação de queimadura no peito que dá quando você acende a tatuagem reluzente. Ela diz “indulge” e significa que passei por todas as provas e sou um Indulger por vocação. Minhas roupas estavam saturadas e eu precisava trocar, então fui à minha casa no Centro com o bom e velho transporte público. Engraçado como o moderno foi se misturando com o arcaico. Eu imaginava que tudo seria diferente, mas aquilo parecia com o trem de antes e alguns muros velhos e quebrados tinham várias décadas de existência, seus construtores já perdidos no tempo. Prédios velhos, lembrando o fato de que a cidade tem sua história, misturados com maravilhas da bioarquitetura formavam uma cidade exuberantemente bizarra. Era bom estar em casa, depois de todos aqueles anos rodando o mundo atrás de alguma bobagem imponderável ou quem sabe só fugindo da minha própria sombra.

Minha casa estava impecável, mas o robô estava com claras falhas. Nem mesmo a mais sofisticada peça tecnológica consegue se manter íntegra quando colocada diante do abandono. Foram dois anos sem pisar na casa e eu só lembrava que ela ainda existia por causa dos gastos que o robô dava pra manter a casa exatamente com a mesma desordem em que a deixei. Minhas notas ainda estavam espalhadas pelos chão e meus brinquedos também. Peguei roupas do chão mesmo, porque o robô lavou tudo e depois colocou no mesmo local onde as encontrou. Eram ainda roupas daquelas que apenas mudam de cor, não têm telas no ventre ou processadores na etiqueta. Apenas uma camisa que muda de cor, coisa das antigas.
Vestido, bebi quase um litro de água, comi minhas últimas conservas e fui até o Plasma mais próximo. Passei um ano naquele treinamento virtual louco e passei todo tipo de privação, mas a única que realmente me marcou foi não poder satisfazer ninguém. Quando você aprende o valor de dar prazer, amor pra outro ser humano, viver sem isso se torna um suplício quase insuportável. A coisa fica ali naquele lugar entre paixão, vício e obsessão. Quando cheguei no lugar e ativei, finalmente, a tatuagem, lembrei do que aquela dor significava. Meu coração acelerou e respirei fundo. Eu estava em casa!

- Heeey, love! Quanto tempo, em? - uma voz feminina falou no meu ouvido
- Martha fucking Stewart! - respondi
- Ah não, cara, já mudei esse nome. Mas pode me chamar assim se quiser!
- E o que você faz por essas partes, Martha?
- Só vivendo o sonho! Escuta, é perfeito que você tenha chegado aqui. Tem uma garota ali que confirmei que está aqui por pegadinha.
- Como você confirmou isso? - perguntei incrédulo
- Eu vi os registros de comunicação dela e tudo. Mas esqueça isso e veja a cara dela. Está tomando água com a bolsinha dela e esperando alguma coisa. Ela é do tipo religioso, cara. Vem destravar ela comigo?
- Dois indulgers pra uma pessoa só? Sério?
- Qual é, man! Vamos lá, em nome dos velhos tempos!
- Ah, Martha, quando vou reunir forças pra te dizer não?
- Talvez agora que eu vou destruir seu orgulho com meus novos truques!
- Boa sorte destruindo o que não existe! Vamos lá, então!

Enquanto andávamos na direção da moça, um cara que estava tentando conversar com ela pareceu desapontado pelas respostas que ela dava e se afastou frustrado. Que tipo de aberração seria aquela? Uma religiosa em um Plasma no auge do século 21?

- Hello, darlin' – disse Martha
- Desculpe, eu já falei com aquele moço ali. Eu não bebo e não quero transar com ninguém. Eu estou aqui pra uma reunião.
- Se importa se eu beber por aqui? - perguntei
- Você tem seu livre-arbítrio, não tem?
- Ah, cristã! Coisa rara hoje em dia - Respondi
- Olha, se você veio aqui pra fazer piada da minha fé, por favor pare. É sério, já chega disso.
- Ninguém está fazendo piada da sua fé, love – disse Martha
- Talvez vocês não, mas meu parceiro de negócios acaba de me dizer que não faz negócios com cristãos me mandando aqui. Estou aqui porque eu não quero acreditar nisso, esperando que ele entre por aquela porta.
- Tem um terraço onde a gente por sentar ver quem entra e sai daqui. Não tem barulho pra agredir seus ouvidos e nem bebida pra te oferecerem. Quer vir com a gente e conversar? - Martha disse fazendo carinho no cabelo

A mulher tirou a mão de marta de sua cabeça e começou a respirar fundo. Alguma coisa a respeito nela me fazia querer dar um beijo grego longo e elaborado. Talvez aquele vestidinho e aquelas roupas sem nenhuma tecnologia. Como se não existisse nenhuma merda nela, dentro ou fora. Finalmente ela concordou.

- Tudo bem, eu vou lá, mas não fica fazendo carinho na minha cabeça assim. Eu não gosto, tá bem? - disse a mulher

Nós dois abraçamos a moça e fomos andando até a saída.

- So... qual é o seu nome, love? - Martha perguntou
- Jussara de almeida
- Bem, Jussara de almeida, se a nossa companhia te incomodar é só você avisar, tudo bem? - Martha falou
- Não, tudo bem. Meu santo bateu com o de vocês dois.

Subimos por aquela escada espiralada e fui logo abaixo dela. E, nossa, como a minha imaginação foi longe. Fiquei me sentindo como o Indulger carente do poema na parede da nossa sede lá em Dubai. Uma vergonha! Chegamos lá em cima e logo Jussara deitou no colo de Martha. Certamente ela estava mais rápida, mas se ela estava se gabando tanto, não podia ser que ela estivesse dizendo que se tornou profissional em consolar cristãos. Sentei na outra extremidade e ela pôs a canela no meu colo. Dei um gole no meu Big Apple e acendi um cigarro de maconha.

- Por favor, não fuma isso perto de mim. Eu não gosto dessas coisas. Legal ou não, eu não gosto. - Jussara falou

Joguei o cigarro e dei mais um gole olhando pra ela com uma pergunta no rosto.

- Beber pode, tudo bem. Só não bebe demais.
- Posso fazer massagem no seu pé? Você parece tão triste. Se seu sócio chegar eu ponho rapidinho seu sapato de volta.
- Ah, não sei...
- Tudo bem, o pé é seu...! Mas conta pra gente o que aconteceu aqui.
- Pois é, love – Martha falou e virou seu copo de caipirinha – como você veio parar aqui?
- Ah, mas a história é tão longa...
- Você tá com tempo, man? - martha perguntou
- Todo tempo do mundo – respondi
- Bem, talvez você esteja com pressa, jussara, mas nós não.
- Qual é o nome de vocês?
- Oi, meu nome é Martha e eu sou uma viciada! - martha disse erguendo um segundo copo de caipirinha que tinha acabado de chegar
- E você, man? Seu nome não pode ser Man – esboçando um leve sorriso
- Meu nome é Emanuel...

Martha arregalou os olhos. Ela entendia o risco que significava dar o nome verdadeiro pras pessoas. Ser capaz de desaparecer era a regra mais fundamental da nossa ordem. Mas eu sabia que aquela ali, sendo cristã, mais cedo ou mais tarde chegaria à conclusão de que escolhi aquele nome pra agradá-la

- Emanuel é Deus conosco, sabia? Deus conosco, nessa noite triste!
- Mas triste, love? Olha só pro céu, que desafia essa cidade que nunca dorme com suas estrelas. Ouça o silêncio desse cantinho.
- Eu não sei como vim parar aqui, sabe? Não era pras coisas serem assim.
- E qual era o plano? - perguntei
- Eu devia estar me casando amanhã... Estava tudo marcado, sabem?
- Você fugiu do seu casamento e veio parar aqui? - Martha perguntou
- Ah, eu queria mais pra minha vida. Queria ser uma mulher independente e respeitada, como aquela Luiza, sabem?
- Ah sim, conheci ela – disse martha – realmente uma mulher e tanto

Ela olhou pra mim naquele tom sarcástico que só ela sabia fazer. E que sempre me fazia sorrir, não importando quantas vezes ela repetisse.

- Também conheci a Luíza. Ela veio numa passeata que nós realizamos pela paz. E sabe, eu vi que ela podia ir onde quisesse e fazer o que queria. Não que ela fosse uma pecadora por isso sabe?
- Então você queria estudar e tudo? - perguntei
- Não, não é exatamente como ela. Eu queria sair e fazer a diferença no mundo. Não escrevendo livros nem estudando. Eu quero ser uma empreendedora.
- E seu noivo não te apoiava nisso? Que besta! - martha falou
- Não, ele me dava todo o apoio do mundo, Martha. É que eu comecei a ter sucesso e daí meus produtos foram além do universo cristão.
- Como é? Universo cristão? - perguntei confuso
- É que por lá a gente diz que existe uma separação entre o mundo e a igreja de Deus. É coisa nossa, você não entenderia. Mas daí as roupas que eu desenho começaram a vender pra gente de fora e aparecer em lojas não-cristãs.
- E qual foi o problema? - perguntou martha
- O problema é que, mesmo apreciando as roupas que eu desenho e produzo, os empresários não são cristãos. Eu tinha que fazer sociedade com eles pro meu produto ganhar o mundo.
- E ele não aceitava que você saísse pelo mundo, então? - Martha perguntou quase sussurando

Ela começou a chorar, virou de lado e escondeu o rosto no colo de Martha.

- Não, ele aceitou tudo. Ele é um anjo, martha – ela falou lutando contra o soluço – mas ele é cristão. Os sócios começaram a me chamar de noivinha virgem e nunca me chamavam pra nenhuma confraternização. Eles diziam que não tinha lugar pra mim nos antros de perdição onde eles iam, mas eu tenho Jesus no coração e não ia fazer nada de errado. Eles me disseram que não queriam problema com meu noivo nem com a minha família.
- Porque eu não sinto paixão na sua voz quando você fala dele? - ousei dizer
- Eu amo aquele homem, do que você está falando?!

Mas a tensão nos pés dela não enganava. Ela se contorceu pra falar isso, como quem faz um esforço pra ditar algo pro próprio coração independentemente do fato de que ele diz o contrário. Quando vestimos armaduras de razão, eu descobri, isso se reflete no nosso corpo inteiro. Desde as costas até a ponta dos pés. E um segredo de ser um indulger é aprender a ouvir do corpo o que a voz não expressa.

- Olha, eu sei o que vocês são. Eu não quero transar com vocês, tá bem? - ela falou logo depois de o corpo dela dizer o contrário
- E porque você assume que nós queremos isso de você? - Martha perguntou
- Porque vocês são indulgers, né? Não são como se fosse prostitutos que trabalham de graça?
- Meio contraditório um prostituto trabalhar de graça, não é?
- Ah, mas daí vocês transam e as pessoas vivem falando disso. Que vocês são os reis da luxúria. Só que a luxúria é um pecado!
- Nós não somos reis da luxúria – Martha disse – apenas cedemos o que nos é pedido.
- Mas mesmo quando o que é pedido vai além do que vocês podem dar?
- É exatamente esse o ponto, Jussara – falei – nós corremos o mundo atrás de pedidos que vão além do que nós podemos dar. E vamos atrás de situações que contrariam nossos desejos mais egoístas. Ser um indulger, na realidade, é um exercício de entrega. É você conseguir dar ao outro algo que você nunca pensou que poderia, expandir os limites do seu corpo e da sua alma!
- Isso é uma coisa que todo indulger precisa saber e sentir – completou martha – é por isso que temos essas tatuagens doloridas no peito. Nós somos a reação, exatamente o outro extremo de um mundo onde as pessoas vêm se tornando cada vez mais egocêntricas.

A princípio Jussara não esboçou resposta, mas parou pra pesar aquelas palavras. Abraçou Martha e abriu mão de olhar pra entrada do plasma, como quem já não se importa se virá alguém ou não.

- Então é isso, né? Vocês não vão transar comigo porque sabem que não é isso que eu quero. Mesmo que vocês queiram – ela disse olhando pra mim
- Mesmo que queiramos com todas as nossas forças – respondi olhando nos olhos dela

E ela sorriu um sorriso que inundou meu coração. Que me fez lembrar que eu tenho sim um motivo pra estar vivo. Eu estava exatamente onde queria estar fazendo apenas o que eu queria fazer: amando incondicionalmente. Um homem chegou na entrada e olhou diretamente pra bunda dela, sem o mínimo de pudor. Achei engraçada a maneira como ele arregalou os olhos, porque não tinha entendido que ele reconheceu quem era. Alguns minutos depois ele estava lá conosco e só então ela soube que ele estava lá.

- Carlos, você veio! - ela falou limpando as lágrimas quase secas do seu rosto
- Ju, eu não sabia. Você tem que acreditar em mim. Eu já expulsei o Vitor da sociedade por ele ter feito isso com você.
- Mas... Não foi você que marcou essa reunião?
- Não, ju. Ele pegou meu computador e fez isso com você porque ele é um babaca. Eu falei que se ele não saísse eu sairia e todos concordaram em expulsar ele. Eu não vou mais deixar ninguém te desrespeitar nem rir de você pelas suas costas, porque você é espetacular e talentosa e não importa que você seja religiosa. Sei lá se é Deus que te dá toda essa força, Ju. Eu planejei mil coisas pra te falar, mas nada tá saindo como planejado. Então agora tudo o que me resta é dizer que eu te amo.

Todo o pé dela se contraiu e quase senti a adrenalina dela. Nós sabíamos o que fazer. Coloquei o sapato dela de volta enquanto Martha a ajudou a se levantar devagar. Porque ela se sentia confortável com a nossa presença, nem falou nada. Apenas foi na direção dele e o abraçou forte. Aí sim eu vi paixão no rosto dela. O homem chorava, parecia bêbado, mas isso não afetava a maneira digna como ele se recusava a aceitar um fim pro abraço. Decidimos sair, mas antes que conseguíssemos ela segurou nossas mãos.

- Obrigada por esses momentos. Eu estava errada por ter julgado vocês. Vocês são muito mais cristãos do que imaginam...
- Espera ai, eles são... indulgers!? - Carlos perguntou
- São sim – ela respondeu – e eles têm respeito, diferente do que falam por aí!
- Jussara, eles não têm respeito. Eles apenas reconhecem e aceitam o respeito que você dá pra você mesma. Porque você é uma mulher forte e uma mulher correta, nem mesmo um indulger poderia te convencer a ir contra suas próprias convicções! Você não sabe como eu te admiro!

Ela largou as nossas mãos e deu um beijo leve na boca dele. Aproveitamos a oportunidade e saímos, porque aquilo era o momento deles. E já estava na hora de nos separarmos, porque nossa missão ali já estava cumprida. Eu e ela passamos pelas provações juntos e fomos instruídos a manter certa distância porque senão começaríamos a interferir no trabalho um do outro. Sempre acabávamos seduzindo um ao outro, era uma coisa tão natural que parecia inevitável.
Nos despedimos com nosso bom e velho “aperto de mão”. Sempre fazíamos daquele jeito: segurávamos nos braços um do outro e íamos deslizando até nossas mãos se encontrarem apenas pra tentarem se segurar em vão. Ela deu as costas e foi embora do plasma, mas a noite não tinha acabado pra mim. Aquelas luzes e aquela música me convidavam pra uma segunda rodada, dessa vez talvez mais violenta.

Foi quando me deparei com mais uma daquelas fãs da minha mãe. Elas sempre me davam calafrios com suas tentativas de copiar os traços físicos e comportamentais da famosa Luíza e sempre me vi incapaz de satisfazê-las porque acabava sendo levado de volta a um passado que prefiro esquecer. Mas essa estava tranquila com os cotovelos pra cima e bagunçando o próprio cabelo no ritmo da música, coisa que a minha mãe nunca faria. Isso seria um insulto ao seu “charme”, afinal. Isso me deu coragem. Eu tinha que enfrentar essa minha resistência, porque assim eu retornaria à trilha do progresso, coisa que ficou abandonada já há tanto tempo. Afinal, não existe indulger completo e se você para de caminhar é porque se perdeu. Quando ela percebeu que eu estava olhando pra ela, viu minha tatuagem e arregalou os olhos. Provavelmente foi falar com algumas amigas ou algo assim e logo estava de volta, ávida pelo meu toque. A fama da nossa ordem me garantiu o princípio desse encontro, como tantas vezes já aconteceu, mas a partir daquele momento era eu lutando contra os meus demônios pra satisfazer exatamente a pessoa que mais me intimidava em todo o ambiente. Quando senti meu coração acelerar a minha dor da tatuagem se intensificar, aí sim relembrei a razão de tudo. Eu estava vivo, centrado e a noite seria longa...

6 - Yin, Yang e um mundo novo



Yin, Yang e um novo mundo

Constantino Peçanha, 2075

Era ainda a década de noventa do século 20, mas ele estava em um daqueles elevadores que também funcionam na vertical. Só que esse parecia mais com o da Fantástica Fabrica de Chocolate, porque voava aí com propulsores antigos que pareciam ter a eficiência de sistemas modernos de voo. E ele via a cidade do Rio de janeiro, cada canto em uma época diferente, quase como uma progressão, como se ele estivesse viajando no tempo além de no espaço. E aquela viajem começou a me deixar angustiado. Especialmente porque o elevador parecia inoperante e incapaz de fazer o caminho inverso. E mesmo assim, olhando pra trás naquele bloco de vidro e via que o futuro estava tomando conta de tudo como praga assolando a terra. Apareceu uma garrafa de uísque jogada no chão e ele correu ávido pra tomá-la. Queria beber, queria ficar com os sentidos alterados e esquecer que aquele tempo estava passando e não voltaria mais. Todo o elevador balançou, mas ele não parava de beber. A bebida escorria pelo pescoço dele mas, de alguma forma, sua pele absorvia tudo.

- Sai dessa, tino! Sai dessa, augusto! - disse Luíza

Mas ele não sabia qual delas estava diante dele. Se a nova, se a antiga, tudo estava misturado. Uma combinação de expressões faciais no rosto dela dava-lhe um tom macabro, mas, ao mesmo tempo, irresistível. O whisky saia pelo teto, pronto pra afogá-lo, mas acabou derrubando todo o elevador no chão. Luiza desapareceu e ele desmaiou ali mesmo, em uma rua cheia de prédios sem janela. “Cavernas de aço”, ele delirava no chão, “vivemos em cavernas de aço! Isso foi previsto, eu digo, nós já sabíamos! Cadê o amor?”
O mundo sacudiu mais uma vez e ele apareceu em seu laboratório. Logo no começo, quando ele cruzou a primeira fronteira. Aquele primeiro grupo de cobaias humanas, todos estupradores condenados. A equipe sabia bem o padrão de impulsos elétricos no cérebro e como induzir as convulsões. Só assim eles poderiam coletar dados capazes de gerar a solução. Os campos eletromagnéticos foram acionados e os prisioneiros começaram a convulsionar nas macas enquanto eles registravam toda a atividade do cérebro. Ele sentiu novamente aquele pavor de ser descoberto e depois a euforia de perceber que dois dos protocolos de indução de corrente cancelaram a convulsão independentemente da etapa. Eles criaram um grupo de 50 epiléticos, porque todo a convulsão causava a epilepsia, mas conseguiram criar um mecanismo que suprime convulsões antes mesmo que os pacientes pudessem perceber. Um pesquisador sem rosto veio falar pra ele exatamente o que ele pensou na época:

- Olha só isso! Olha só o que nós somos capazes de realizar quando pesquisamos com liberdade! Nós curamos a epilepsia em um dia! Puta que o pariu, nós curamos a epilepsia!

Mas luíza estava em uma das macas convulsionando. Ela tentava estender o braço pra ele, mas a cada segundo que passava ela piorava e os equipamentos estavam funcionando. =

- Porra, porque ela não se recupera, porque!? Porra, tráz ela de volta, vamos resolver essa merda! - ele gritou desesperado

Mas os cientistas desapareceram e ele já estava no meio da savana, onde os prisioneiros foram abandonados. Na época, ele pensou que eles estavam bem, porque agora eram livre e escaparam da sentença de morte. Mas eles não passavam de indigentes com defeito cerebral no meio de uma selva repleta de grandes predadores. Eles estavam condenados à morte do mesmo jeito e certamente o governo ditatorial daquele país não deixaria que eles vivessem normalmente em sociedade. Foram expulsos do convívio humano, mas não antes de tirarem deles tudo o que tinham. Até mesmo a sanidade, como no caso de um grupo em que o pior tipo de epilepsia foi induzida, gerando até evidências de alucinação visual. E Luíza estava no meio desses, sendo devorada por hienas enquanto convulsionava e a espuma saia de sua boca. Ele tentou correr na direção dela, mas suas pernas estavam amarradas a uma bola de ferro e mais uma vez o mundo começou a tremer. Dessa vez foi forte demais e ele caiu.

- Tino, acorda pelo amor de Deus! - Disse luíza

Eu estava em uma cama com a roupa molhada de suor e Luíza em pânico diante de mim.

- Cara, nunca mais vou deixar você beber! Você estava se sacudindo todo e gritando. Parecia que iam te matar e você não acordava. Eu fiquei te sacudindo feito louca e bati em você até, mas você não acordava.
- Não acho que tenha sido a bebida – respondi enquanto meu endocomputador negociava com meu cérebro recém-desperto
- O que foi então? Sério que você me assustou muito!
- Foi só um pesadelo. Nem to lembrando direito mais como ele foi. Mas meu corpo deve ter bloqueado seu estímulo sensorial. Foi só um probleminha de ajuste tecnológico, porque meu corpo estava programado pra despertar apenas no horário estabelecido por mim antes de ir dormir.
- O que? Como assim, cara? Que isso? Nunca ouvi falar disso.
- Esse tipo de tecnologia não está no mercado financeiro. - falei enquanto levantava da cama – mas como foi a noite como o indulger lá?
- Nossa, eu gozei de verdade! Eu queria me convencer de que era a mesma coisa, porque até hoje eu só tive orgasmo por indução, sabe? Mas não é a mesma coisa, cara! Sério, ele tá até lá no quarto ainda, vem que eu vou te mostrar.

Ela me puxou e fui junto, ainda tentando me recompor. Meu sistema estava com dificuldade pra desacelerar meu coração, tudo foi rápido demais. Uma sensação de desespero tomou conta de mim. Um senso inexorável de urgência que me dizia que algo tinha que mudar, algo muito profundo tinha que mudar. Eu precisava recuperar alguma coisa perdida, voltar atrás. Mas eu já não tinha o costume de pensar nos meus sonhos e já era materialista demais pra acreditar que eles tinham significado.
Quando chegamos no quarto e ele estava vazio.

- Droga, ele foi embora e nem se despediu...! - ela disse num tom desapontado – mas eu já sei quem ele é, eu vou achar ele. Ele vai ver só!

Pus meus óculos, que estavam no meu bolso, e vi a mensagem de Mark avisando que o transporte estava pronto. Meu coração disparou, porque aí eu já sabia o que fazer.

- Amanhã você me apresenta ele, pode ser? - falei pra ela enquanto desbloqueava um canal especial de comunicação no meu sistema
- Que foi, já vai embora? Poxa, mas porque?
- Tenho umas coisas que eu tenho que fazer, Luíza. Mas amanhã prometo que conheço seu indulger. Se você sabe achar ele, não precisamos ter pressa, certo?
- Ah não, eu vou com você! Que isso, que você tem que fazer se você tá aposentado?
- Você não entenderia. É coisa minha...

Mas ela não se contentou e veio comigo. Em uma virada estranha de comportamento, ela parou de falar por completo, como quem não quer conversar, mas, ainda assim, me seguia como se estivesse fazendo algum tipo de protesto. Aquilo era perigoso demais pra ela, mas por algum motivo eu não conseguia mandá-la embora. A presença dela me trazia um tipo estranho de tranquilidade. Fosse como fosse, qualquer coisa que trouxesse um pouco de paz naquele momento eu aceitaria...

- Já viu que não sou do tipo de aceita um não como resposta, né? - ela disse com ousadia
- Porque você não vai atrás do seu indulger, Luíza?
- Ah, depois eu vejo isso. Você tá muito estranho, quero saber o que está acontecendo.
- Querida, confie em mim. Tem coisas que é melhor você nunca saber. Porque não há o que faça você esquecer, fica ali registrado em algum canto da sua cabeça e sempre volta pra te atormentar.

Recebi uma mensagem do Creed. Por incrível que pareça, escreveu em texto corrido.

“Tenho coisas urgentes pra discutir com você. Estamos numa encruzilhada, amigo. Chegou a hora de mudar isso. Se livre dessa garota. Esse mundo já não pode nos abrigar e eu tenho um plano pra conseguirmos um novo começo, uma segunda chance pra fazermos tudo diferente. Nós vamos abandonar esse mundo doente, cara, eu achei a resposta!”

Então eu respondi.

“Pode falar, cara. Cansei de segredos e essa menina aí me deixa calmo.”

Nesse ponto já estávamos na minha casa e, estranhamente, ele se mostrou por holografia na sala. Considerando que Luíza estava ali, algo estava muito errado, porque o Creed que eu conhecia protegia sua identidade agressivamente.

- É bom te ver, Constantino. Muitos anos já passaram! - ele falou
- Você está mudado. Expressando emoções assim, mostrando seu rosto na frente de estranhos. Aliás, como você tá me vendo.
- Essa moça aí, auto-denominada luíza, não tem defesas razoáveis nos óculos.

Luíza começou a operar nervosamente os óculos ativando seus sistemas de defesa inutilmente. Achou que algo ruim aconteceria por causa dela, aparentemente.

- Não se preocupa, Luíza. Ele não vai te fazer mal – falei em tom nostálgico
- Porque agora, depois de todos esses anos, você quer falar comigo? Resolveu se desculpar?
- Já te falei que esse seu maniqueísmo é maluquice sua. Você quer achar alguém pra culpar porque no fundo acha que a culpa é sua. Mas não é culpa de ninguém, cara. Foi escolha dela, entende?
- É verdade, Tino. Eu li tudo sobre isso e não é culpa de ninguém. Ela viveu o que tinha que viver, já estava pronta pra ir.

Eu não conseguia mais falar. Minhas energias foram drenadas pra algum lugar onde eu não podia alcançá-las. Ele continuou.

- Eu vim aqui porque consegui concluir um plano louco que considerava impossível. Eu construí um banco de dados extenso com os mais recentes avanços tecnológicos da liga e outros lugares do mundo. Todos os dados são detalhados suficientemente pra serem interpretados. É uma fonte de transferências tecnológica!
- Você fala como se a liga não fosse simplesmente desmantelar qualquer tentativa de implementação dessa tecnologia! Você tem boa memória, Dwain, e não é nada ingênuo. Ta tendo surto de democracia agora?
- Não é nada disso, cara, deixa eu terminar. Lembra daquela antiga colônia de marte, que estava sobrevivendo basicamente de vender marsídio depois que deixou de ser apelativa pra mídia?
- Sim. Já tinham 800 pessoas e parece que tinha gente querendo voltar, mas ninguém pra financiar um projeto espacial marciano ou mandar naves de “resgate”
- As coisas não estavam acontecendo bem assim. Eles passaram informações desse tipo pra desacreditar o potencial marciano, mas eles estão avançando a ciência e expandindo a colônia. Tem bastante espaço lá, mas eles têm alguns fatores limitantes, que são basicamente a escassez de recursos básicos encontrador em abundância na terra e algumas tecnologias que foram inventadas apenas recentemente pela liga, que também podem auxiliar a colônia. Eu preparei tudo, cara. Matéria prima, um banco de dados de patentes e descrições metodológicas meticulosas, tudo!
- E você acha o que, que a liga não pode chegar até lá?
- Eu acho que a liga não sabe que eu tenho o que tenho. Se soubessem, estariam atrás de mim, mas não estão. Eles não conseguem lidar com meus novos protocolos da randomização superposta.
- Cara, só um comentário à parte: você devia dar uns nomes mais poéticos pra esses algoritmos. Sério, você mesmo disse que os nomes não caracteriza as ideias.
- É, eu não sou bom com os nomes. Mas eu também sou bom em física, cara. Eu criei um sistema que cortou a comunicação entre terra e marte por um dia inteiro. Fora os inconvenientes, esse sistema tem a vantagem absurda que propiciar um corte total de comunicação, já que não há meio físico de acontecer o transporte de informação. Eu vou levar toda a tecnologia de pona de 2075 pra marte e os recursos necessários pra humanidade prosperar nesse novo mundo. Eu estudei com calma a forma que eles vivem, e é um absurdo. As pessoas por lá são, por definição, estranhas, alienígenas e não julgam umas as outras. Porque partem de todo tipo de contexto cultural, têm visões flexíveis e pluralistas. Nunca houve sequer um assassinato naquele planeta e eles nem têm planos pra produzir armas. É aquele efeito do vridro quebrado, lembra? As pessoas não depredam nada! Acima de tudo, todos se unem diante das adversidades de um planeta em que a vida não poderia existir nesse nível de complexidade, tudo isso sem existir um único líder!
- Sem líder? Mas eles tinham líderes, se me lembro bem.
- Sim, mas isso era na época do reality show, quando eles recebiam recursos financeiros e tudo partindo da terra. Quando pararam de receber ajuda da terra, pararam também de cumprir com as regrinhas boçais que deram a eles. Começaram a fazer ciência, tecnologia, arte, tudo próprio de um novo mundo.
- Tá, você tem aí suas idealizações. Mas o que eu tenho a ver com isso?
- Não são idealizações, cara. Eu tenho evidências pra isso, monitorei eles extensivamente e posso provar o que estou falando. E o que você tem a ver? Vou te dizer! Você é um outsider e nunca fez parte desse mundo. Se casou, teve filhinhos, mas isso só fez deixar mais claro que você não pertence aqui. Seus filhos estão espalhados por aí e vivem melhor sem você, pelo que você mesmo disse, porque você nunca foi capaz de dar a eles qualquer ferramenta que fosse pra que sobrevivessem no mundo real. Não sei se essa nova Luíza aí também te resgatou de uma ponte onde você escolheu pular, eu não sei se você está apaixonadinho novamente, mas acho que agora você já é velho o bastante pra entender que nenhuma buceta vai mudar o fato de que isso não é o seu lar.
- Caralho, creed, você realmente mudou muito. Cheio de lições e filosofias. Que porra é essa?
- Ah, eu fiquei assim por causa do meu ex-namorado. Ele que era assim e, quando fui ver, assimilei pra mim.
- Aconteceu algo com ele?
- Eu prefiro não falar disso. Mas ele já se foi desse mundo.
- Tá, mas e aí, porque eu deveria aceitar que esse novo mundo é a resposta? Não pode ser só mais uma África central?
- Não é, cara. As pessoas naquele lugar pensam muito parecido com a gente. Marte se tornou o refúgio daqueles que não conseguiram encontrar seu lugar no mundo mas que, ainda assim, conseguia produzir coisas geniais de uma maneira ou de outra. Com uma população de 872 pessoas, eles têm 6 neurocientistas e um amplo sistema de educação. Você entende que quase 1% da população é de neurocientistas? Meu amigo que também é hacker está morando lá e me disse que nunca se sentiu tão bem em um lugar. Que realmente as pessoas não te julgam pelas suas ações, mas antes ficam curiosas e te perguntam se você faz algo que elas não esperavam. Os outsiders se reuniram ali do lado de fora e forjaram um novo lado de dentro. É sério, cara.
- Eu não posso deixar esse mundo, Creed. Eu tenho meus filhos aqui, eu tenho minhas pendências e meus planos. Até plano de curto e médio prazo eu já tenho.
- Você pode levar esse moleque se quer dar uma de herói. Mas ele se escondeu numa tubulação e tive que usar uns robôs bem avançados pra achar ele ali dentro. Sabe que estão atrás dele e não vai se entregar. Mas se eu passar a localização dele, você fecha seu acordo com essa escória com quem você se envolveu.
- E você já entendeu meus motivos? - perguntei desconfiado
- Não exatamente. Mas imagino que essa menina aí não pode saber sobre eles. O que vocês têm, afinal?

Ela pareceu querer falar, mas ao invés disso se sentiu no sofá exatamente no mesmo lugar em que a outra Luíza se sentava e começou a respirar fundo. Rapidamente identifiquei o que estava acontecendo. Ela estava tendo uma crise epilética e o equipamento de indução de campo interno estava impedindo as convulsões. Lembrei do meu sonho e tive um calafrio na espinha. Ela estava apenas parcialmente consciente enquanto o equipamento impedia a crise dela, que seria severa. Ela sabia bem o que estava acontecendo e parecia inclusive seguir o protocolo de meditação que estabelecemos como eficazes na fase de testes clínicos abertos.

- Foi aí que tudo começou, não foi? Aquela bendita cura da epilepsia que originou os ideais insanos de liga! - Creed falou
- É, foi quando sentimos o real poder da ciência. Foi um veneno que nos consumia e nos atraia impetuosamente. Nenhum de nós resistiu...
- Mas então, qual é o plano que você tem com essa adoção? Eu sei que você nunca faz algo assim sem ter alguns motivos, mas o que você pretende fazer agora, qual é o próximo passo?
- Eu vou vestir aquele traje experimental e matar todo mundo enquanto ele estiver preso em realidade virtual. Esse é o plano.

Luíza esboçou uma reação, mas teve uma leve convulsão e voltou a se concentrar no exercício de meditação. Achei curioso que ela estivesse prestando atenção na conversa, já que o propósito da meditação era especialmente o de reduzir os estímulos sensoriais.

- Eles vão conseguir se defender de você. Especialmente se você lançar o segundo traje com um robô. Falo isso porque eles são muitos e você demoraria meses fazendo isso.
- Você parece que já tinha previsto que essa era a minha intenção. Se isso for verdade, então você já deve ter alguma sugestão pra dar...
- Sim, eu tenho. Estudei a estrutura organizacional como um todo e descobri que há dois eixos nessa facção. Estão todos subordinados ao mesmo líder, mas eles partiram de pontos diferentes: uns começaram a partir de negócios legítimos e outros eram criminosos que foram englobados da antiga União. Creio que não preciso explicar que esses dois grupos possuem dois sistemas de crença bem diferentes, certo?
- Sim, onde você quer chegar com isso?
- Você pode fazer com que os dois grupos entrem em conflito lançando um único ataque bem planejado. Hoje mesmo é um dia em que tradicionalmente as metades dessa facção comemoram algum tipo de feriado. Se você atacar os dois e matar figuras centrais, isso pode causar uma guerra na cidade.
- Que figuras centrais? - perguntei - e como você pode saber quais são essas figuras?
- Eu criei um novo sistema heurístico pra interpretar relações de grupos com base num esquema antigo de psicologia social. Essas figuras centrais são de pessoas que se opõem ao conflito entre as metades e que possuem elevada influência no grupo, seja oficial ou apenas casual. Sem a influência delas e com sua morte sendo atribuída ao outro lado, o rancor vai gerar um enorme conflito que vai causar um rápido declínio no número e na organização deles. Aí você pode resgatar seus órfãos e compensar sua culpa.
- Porra, cara, esse final aí da sua fala foi desnecessário. Na boa...
- Desnecessário, doloroso! Cara, depois de todos esses anos eu esperava que você já fosse menos hipersensível! Mantenha o foco no plano: Um dos lados possui defesas compostas basicamente pro robôs que eu posso adulterar de diversas formas, mas eles sabem que o outro lado da facção não tem capacidade de fazer isso, então tudo o que vou poder fazer é criar pequenos defeitos que vão tornar sua vida mais fácil. Só que, no fim do dia, você vai ter que enfrentar todo tipo de robô de guerra e eles fazem um estrago considerável, mesmo com o manto de marsídio do traje, pois podem te lançar a centenas de metros de distância. Então...

Creed foi falanso seu plano e lembrei da surpresa com que vi essa característica dele pela primeira vez. O cara simplesmente não precisa pensar: sempre tem um plano pra enfrentar organizações pelo mundo, sempre mantém tudo sob vigilância. Eu costumava chamá-lo de conspiracionista neurótico por causa desse hábito, mas agora tudo começou a parecer bem mais conveniente. Eu ouvi o plano e entendi todas as suas etapas, mas não podia evitar que meus olhos fossem de volta pra Luiza. Engraçado como tudo aconteceu. Eu saí perdido e sem rumo, uma moça sangrou sobre mim fisicamente e acabou abrindo as feridas da minha alma. E o mais estranho: de alguma forma a simples presença dela me acalmava como se fosse uma droga desenhada especificamente pra todas as minhas ansiedades e medos.

- Você tá ouvindo, Constantino?
- To aqui Dwain, to ouvindo sim...
- Cara, meu nome é Creed.
- Ok, desculpa. Com esse negócio de mudança de nome eu nunca sei como te chamar. Por muito tempo o nome Creed me parecia apenas como um apelido, não um nome. Enfim, quer que eu espere pra você trazer sua nova unidade de processamento, é isso?
- Sim, ela é imune a pulsos eletromagnéticos. Então eles não podem desligar o processador central do seu robô e vão inclusive pensar que é uma pessoa, do jeito que são burros. Mas tome cuidado, porque eles têm artilharia pesada e vão causar estrago pelo lugar todo!
- A... Água! - luíza sussurou

Eu já sabia o que fazer e até alguns detalhes sobre a epilepsia dela pelos padrões de convulsão que estavam sendo suprimidos. Um efeito colateral da supressão desse tipo de crise é justamente a desidratação das vias aéreas, e do sistema gastrointestinal superior, então a pessoa fica com uma sensação absurda de sede quando a crise acaba. Nem chamei o Wallie e quando me dei conta eu já estava com uma garrafa de água e um copo grande. Fui tomado por um leve senso de urgência, daqueles que se tem no cotidiano sobre uma coisa que é importante, mas comum demais pra ser excepcional. Como se ela fosse da minha família!

- Obrigado, tino. Olha, eu posso vestir o traje, viu?
- O que? Você enlouqueceu, menina? Isso é perigoso! - gritei
- Olha o respeito, tino, que eu não sou menina coisa nenhuma! Já passei dos trinta, sou balzaquiana e sou top 10 no Gear of war e sei operar todo tipo de traje de guerra!
- O que? Olha, isso não é jogo e nem realidade virtual. As coisas são diferentes!
- Na verdade não sou, constantino. Esse jogo aí ao qual ela se refere possui réplicas idênticas de praticamente todo tipo de traje que existe. Existem pelo menos três trajes com a mesma interface que o seu, porque ela foi vendida, e dois deles têm versões virtuais no GW.
- Que tipo de absurdo é esse? Vocês não podem estar falando sério!
- Falo muito sério, cara. Hoje em dia os soldados são treinados em realidade virtual pra aprenderem a controlar robôs e operar trajes especiais. E esses programas de treinamento viraram jogos. Na realidade, as primeiras realidades virtuais complexas foram desenhadas especificamente pra treinamento militar e é por isso que a maioria dos ambientes virtuais hoje são de jogos de guerra.
- Seja como for, ela não pode participar disso. Não, isso é perigoso demais.
- Deixa de hipocrisia, porra! Você pode sair pro aí dando uma de herói sem nenhum treinamento colocando a SUA vida em risco mas eu não posso? Vai pra merda cara!
- A menina tem um ponto... - disse Creed
- Cara, você não está ajudando – respondi mais impaciente – Não se trata só do perigo. A questão é que eu já vivi a minha vida, Luiza. Você ainda tem um mundo pela frente e merece mais do que morrer por causa de uma queda em algum beco cheio de viciados!
- Cara, não é você quem tem que decidir o que eu mereço ou não. Eu sou dona do meu próprio nariz e pro seu governo eu estou a meses sem morrer uma única vez no GW!
- Luiza, qual é o seu nick por lá? - Creed perguntou
- Vandan697
- Caralho, você é aquela que ativou a dor em 100% e matou 50 na batalha por Solaris?!
- É sou eu mesma!
- Nossa, eu juro que nem procurei saber, mas pensava que era um homem! Até assisti o que você fez naquela batalha com gente comentando suas táticas. Top 10 com certeza!
- Quando as duas crianças estiverem satisfeitas com todo esse papo de jogos e guerrinhas virtuais, podemos voltar ao fato de que isso foi ideia minha e de que não vou arriscar a vida de ninguém por causa dessa loucura?
- Loucura, você diz? Você pensa que eu nunca sonhei com fazer algo assim? Pensa que eu nunca me senti desamparada quando soube de gente que tentou e foi massacrada por falta de recursos? Eu comecei a jogar isso e sempre tive esses caras na minha cabeça, tino. Eu me mudei pra esse buraco porque eu tinha a vã esperança de que conseguiria encontrar alguma falha nessa facção e prejudicar seus negócios, mas eles têm tudo organizado e são muito mais brutais do que eu pensava. Eu larguei o curso de ciências sociais e fui pra arquitetura porque já não suportava mais as análises sobre essa realidade sendo tratada como um simples fenômeno social, cara. Não é! É algum filho da puta, ou um grupo de desgraçados, que deu origem a essa merda. É planejado demais pra ser um mero fenômeno social, entende? E agora eu tenho diante de mim a oportunidade de dar um golpe fatal neles e você vem me dizer que é perigoso demais porque eu sou uma garotinha? Vai tomar no seu cu, tino. Vai tomar no cu!
- Se serve pra alguma coisa, acho que ela assim de TPM pode realmente causar estrago nos caras – creed falou
- Eu não tenho TPM, caralho!
- Mas parece que tem! Vai que constantino encontra evidências bioquímicas de que você continua tendo flutuações hormonais depois de desligar o ciclo menstrual?

Luíza ficou confusa. Não sabia se ele a apoiava ou não. Pareceu esboçar coisas pra falar, mas parou antes de pronunciar a primeira palavra todas as vezes até que finalmente optou pelo silêncio.

- Luiza, eu não sabia dessas coisas. Pensei que morava naquele lugar porque seus pais se recusavam a pagar coisa melhor.
- Meus pais reduziram minha mesada como protesto por eu escolher aquele lugar. Disseram que vou viver de acordo com minhas escolhas. Sabe como é, têm mania de achar que sabem tanto da vida que as lições deles são mero treinamento, um reflexo da realidade imutável e objetiva que é o desenvolvimento humano.
- Você não fica desorientada depois das crises, luíza? Desculpa mudar de assunto, mas que você voltou falando muita coisa intelectual, sabe?
- Não, eu sou diferente. Depois das crises eu me sinto muito melhor. E isso não é nada intelectual cara. Acadêmicos podem sentar em seus cantinhos, cada um com seus livros discutindo sem fim uma explicação pro inexplicável! Isso pra mim é emocional, e é por dois motivos!
- Por causa das crianças, imagino? Eu vi como você ficou quando decidi adotar o menino. Eu sei que você gostou.
- sim, por causa das crianças, por causa dos adultos que têm suas vidas destruídas. Porque eu acredito nas coisas que a Luíza falava. Mas não é só por isso.
- Porque, então?
- Porque eu devo a minha vida a você, tino. Você não sabe a quantidade de coisas que passou pela minha cabeça quando eu tive certeza que era você mesmo.
- O que eu fiz?
- Porra, como assim? Você basicamente curou a epilepsia com seus experimentos. Inclusive é o seu modelo experimental que deu origem à cura específica do meu problema. Eu estaria morta ou então pelo menos incapaz de viver se não fosse você. E você nem ganhou dinheiro nenhum com isso, pelo que disseram!
- Ah, não ganhei mesmo. Mas ganhei bastante recurso pra pesquisa dentro da liga. Isso é meio que uma moeda de troca lá dentro, sabe?
- Sim, mas saindo de lá você não ganhou. Nem ganhou o prêmio nobel que todo mundo acha que mereceu! Cara, mesmo sem acreditar no que você tá fazendo, eu faria por você. Pra te agradecer. Pode não ter sido tão pessoal pra você desenvolver isso, mas pra mim foi completamente pessoal.

Lembrei da antiga Luíza. Eu vi nos olhos dela que não conseguiria convencê-la do contrário. Eu não queria que ela fosse porque queria encontrá-la depois que tudo acabasse. Que ela desconsiderasse meu pedido, no entanto, era o que eu realmente queria. Ela mostrou que, mesmo com todas as diferenças da Luíza original, o mais fundamental era comum às duas: uma impetuosa sede de justiça misturada com a esperança de que, no fundo, o ser humano é essencialmente bom. Ela ainda tinha aquele brilho nos olhos de quem acredita no ser humano. Eu não tinha como resistir.

- Mas... Eu não quero que você se machuque, luíza.
- E eu não quero que VOCÊ se machuque! Como eu vou ficar aqui sabendo que deixei você sair numa missão suicida? Não é só você que tem o direito de se importar, cara. Não é só você que sente as coisas.

Eu não tinha palavras. Mas ela viu pelo meu olhar que eu desisti de resistir e se virou pro Creed.

- O modelo é o 267, né?
- Sim, mas tem algumas modificações. Tem um tutorial específico pra mostrar isso.
- Porque tem modificações?
- Porque eu encaixei funcionalidades novas sem mudar o básico do sistema operacional pra ser mais fácil pros soldados se adaptarem. Acabou que isso vai te ajudar.
- Quais são as funcionalidades?
- Tem algumas turbinas pra mobilidade, esquiva automática de projéteis grandes e pulso fotoelétrico embutido.
- Caralho, sério que tem pulso fotoelétrico nesse traje! Que foda, cara!
- Tem sim, mas se lembre de usar apenas se for detectada. O sistema de camuflagem funciona bem e sei que você sabe como navegá-lo.
- Ah, eu sei sim. Só enfrento os melhores!

Comecei a me sentir idiota por não ser treinado pra fazer o que eu queria fazer. Meu plano era bem fraco e sem o Creed eu realmente acabaria morto. Novamente íamos nós em uma missão suicída que, a cada segundo, parecia mais com um plano da Luíza e não meu. Foi como ver a história se repetir. Só que dessa vez ela estava armada e pronta pra guerra. Dessa vez eu já não tinha necessidade de proteger ninguém e acreditava no que estava fazendo. Tudo isso se reforçou quando ela falou pela última vez antes de entrar no quarto dos trajes.

- Aliás, tino, eu sei que você usou cobaias humanas. Ninguém declarou nem documentou isso, mas todo mundo sabe que era necessário um modelo experimental robusto com seres humanos. E todo mundo se cala sobre isso justamente porque você salvou muito mais vidas do que tirou. Não sei se onde você tirou suas cobaias e sinceramente espero que elas tenham sobrevivido, mas eu entendo a sua motivação, sabe? Você ajudou muita gente cara. Não precisa olhar pra trás e pensar que fez alguma coisa errada. Você fez o que tinha que fazer, assim como vamos sair agora pra fazer o que temos que fazer.

Eu tentei segurar e até consegui até ela entrar no quarto, mas acabei chorando quando ela entrou no quarto.

Pela primeira vez na minha vida, aconteceram as duas coisas ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo em que me senti acolhido, diante de uma pessoa que não estava sempre pronta pra me julgar, também senti que podia contar com a presença dela. Com minhas relações do passado, cristalizei uma visão dicotômica sobre o amor. Que ele poderia ser estável, sólido e exigente ou então leve, perfumado e volátil. Mas quando ela entrou no quarto, meu ventre queimou e congelou e eu quis fazer o tempo parar exatamente naquele momento. O tempo estava acabando, o menino estava quase sendo encontrado porque parou de mudar de esconderijo e o holograma que Creed projetou mostrando as localizações dele e dos viciados que o procuravam indicava que estava na hora. Na ausência dele, Luíza sairia pra atacar seus homens e eu sairia pra atacar os homens do outro lado da facção. Surpreendentemente, aquilo foi ideia minha, o cara que sempre quis se abster das lutas políticas e pela justiça. É verdade o que Liana me disse: pra cada amor que temos na vida, surgem lições, novidades psicológicas na nossa vida. E esse era o legado da antiga Luíza dentro de mim. Mas e o da nova, qual seria? Poderia o desejo falar mais alto do que o medo?

Peguei a taça de vinho, mandei o Wallie dançar e apreciei minha introspecção enquanto Creed explicava os detalhes do traje pra ela. O mundo girou e fechei meus olhos. Meu sorriso se abriu sem que eu tivesse intenção: meu medo desapareceu...

Gênese de opostos - Parte 2 (extra)


Frederico Peçanha - 2041

A vida deu voltas, girou com o mundo. Certamente ela não aprovaria o que estou fazendo, o que eu me tornei. Mas o que começou como uma reação à morte dela se transformou na minha libertação. Seria muito irônico se eu me transformasse em uma pessoa melhor por uma pessoa que, no fim das contas, me usava como uma ferramenta. Finalmente cheguei num ponto em que tudo o que era belo nela se transformou num retrato da sagacidade feminina: nós dois éramos dependentes dela e, sob seu feitiço, fazíamos tudo o que ela precisava. A quantidade de tempo que perdi me revoltaria se hoje não me servisse de lição.
Tudo começou com aquele tiro na cabeça, que virou meu mundo de cabeça pra baixo. Nós tínhamos nossas indas e vindas numa relação escondida e eu não esperava um final feliz, mas também já tinha desenvolvido certa dependência por ela. Meu mundo se desestruturou. Fiquei pensando em tudo que eu podia ter feito, já que eu tinha me transformado efetivamente no guardião dela, resolvendo seus problemas e suas ânsias. Mas não pude protegê-la da morte, porque aceitava as barreiras morais dela. Se eu tivesse dado passos além das exigências que ela fazia, estaria armado naquele dia. Porra, eu teria alguém de olho nela o tempo todo e pronto pra neutralizar qualquer risco junto comigo. Mas lá estava eu, sem o recurso da violência, sem segurança particular, sem ódio: desempoderado por uma mulher.
Quando comecei essa “escalada” que é minha vida hoje, a minha desculpa era que eu precisava de poder pra nunca mais deixar algo assim acontecer. Mas o tempo passou e eu fui percebendo que isso nunca mais ia acontecer simplesmente porque eu nunca mais amaria ninguém como a amei. Na realidade, as únicas relações honestas que eu pude ter foram com prostitutas e elas duraram a quantidade de dinheiro que eu investi. Com o tempo, fui aprendendo sobre as mais diversas formas de se exercer poder e entendi a sedução. Reconheci que ela efetivamente mudou seu comportamento pra me seduzir e me usou. Não que tenha sido ruim, muito pelo contrário, mas não era coerente com aquela aura angelical que ela gostava de passar e que Emanuel comprou. Ela era um diabinho e nos fazia de marionete para suas conveniências. Sabe-se lá quantos mais ela tinha!
Eu pensei que sentiria desprezo, mas isso tornou a memória dela muito mais admirável. Ela deixou de ser a menina indefesa que eu protegia e comia pra passar a ser uma mulher que me manipulou e usou meu poder como bem entendeu. Ela me fez entender que poder é um fenômeno amplamente psicossocial: ele está exatamente onde as pessoas acreditam que ele está. Dinheiro, conhecimento, sedução, networking! Ela foi minha mestra e me ensinou a brincar...
Naquele dia eu dei o meu primeiro grande passo na minha escalada. Esperei a morte dela completar um ano pra fazer tudo acontecer, com todos os documentos prontos. Disse pra toda a equipe que estava ocupado, mas que hoje tudo sairia. Eles desenvolveram um sistema bem eficiente para a manipulação de recursos hídricos capaz de converter grandes quantidade de água salgada ou até poluída em água potável. O projeto mais promissor de toda a universidade, idealizado e abandonado por Emanuel. Nanorremediação tão eficiente que a liga demonstrou interesse em comprar a patente do projeto. Claro que a equipe era estúpida demais pra entender que você não bate de frente com a liga. Convenientemente, entrei no grupo por indicação do Emanuel bem antes de ele abandoná-lo e passei a cuidar de suas burocracias. Vivemos no Brasil, a nação das burocracias onde você precisa ser artista pra manejar todas as regrinhas, fichas e subornos necessários pra fazer tudo fluir bem. Eles passaram a me amar por eu fazer tudo funcionar tão bem e conseguir levantar recursos pro projeto dentro da universidade. Não entendiam o jogo que eu estava jogando e nem o envolvimento da maior facção criminosa do país naquilo tudo. Pra eles, era só a ciência, eram só resultados, era o fim da sede no mundo. Como eles chegaram a acreditar num absurdo desses eu honestamente não entendo.
Fiquei sentado dentro do meu carro depois de tudo estar pronto, esperando Reginaldo chegar com seus protestos. Deixei que ele descobrisse que a patente do projeto estava sendo registrada no meu nome exatamente quando todos os outros membros do grupo estavam numa excursão pro Piauí. Ele não era exatamente o tipo de pessoa que para pra pensar e, pior de tudo, era ex-militar treinado. Ele chegou mais ou menos uma hora antes do que eu planejei, mas tudo já estava pronto.

- Fred, que porra é essa aqui? Tá de sacanagem com a minha cara?! Você criou a tecnologia sozinho, agora? Um administrador especialista em nanotecnologia?
- Calma, Reginaldo, eu posso explicar – falei tentando fingir medo
- Explicar? É o caralho, filho da puta! Eu vou acabar com a sua raça!

Quanto mais eu pedia pra ele se acalmar, mais nervoso ele ficava, exatamente como eu esperava. Estávamos numa rua deserta e eu precisava que ele parasse de perceber as coisas em sua volta pra fazer as coisas funcionarem. Não foi muito difícil: em alguns minutos ele correu na minha direção. Nem precisei correr muito: ele veio na minha direção, seu foco em seu alvo, e finalmente deu abertura pro meu atirador de elite aparecer numa janela e atirar o dardo tranquilizante.
Matá-lo foi uma pena: ele era único. Fizeram alguma coisa com ele no exército que o tornou extremamente alerta e detalhista. Ele conseguiu matar dois atiradores meus de maneiras absurdas que desafiam as crenças gerais sobre a capacidade perceptiva humana. Se ao menos eu pudesse fazê-lo entrar na minha equipe! Mas não, o desgraçado era filho de dois advogados e, por incrível que pareça, eram honestos e viviam numa luta contra a União. Aquela facção, que, com seu nome, pretendia desafiar a própria soberania do estado com seus atos de terrorismo por todo o país, estava dificultando os meus negócios com a liga praticamente em toda a região sudeste. Eles precisavam cair, mas não queríamos guerras sem fim. Eles tinham um ciclo de vida curto, morte fazia parte da estrutura da facção. Aos 20 anos de idade, boa parte dos homens já tinha dois ou três filhos e a maioria deles seguia o legado do pai até a morte. Era necessário eliminá-los com alguma estratégia mais estrutural, então entrei em acordo com eles pra resolver esse problema e cimentar de vez minha relação com a liga. Conheci muitos que não confiaram no poder que essa instituição estava construindo, especialmente porque não tinha tanto conhecimento sobre a quantidade de acordos lucrativos secretos que eles estavam estabelecendo. Pensavam que se tratava de um grupo inofensivo de cientistas, mas, pelo que eu vi na minha vida, cientistas nunca são inofensivos. Criaram a boma atômica, robôs de guerra, neuralização! O colete à prova de balas que uso todos os dias é a prova de que, nos dias de hoje, quem possui conhecimento e tecnologia é quem dita as regras. E eles sabiam muito bem disso. Disponibilizaram 50 homens treinados e bem pagos pra eu realizar a limpeza da cidade e, posteriormente, do país desse empecilho. Bem mais do que eu precisava, é claro, mas eles não sabiam qual era meu plano. Cientistas têm o hábito de não entender tão bem a sociedade que os rodeia...
Com Reginaldo preso, sua família estava toda desprotegida e convenientemente reunida num churrasco de páscoa. Muitos, inclusive, estavam tão bêbados que foram apenas carregados pra fora da casa. Fiquei esperando no carro enquanto a casa era cercada e todas as pessoas eram levadas em plena luz do dia. Pessoas na rua viam o que estava acontecendo e se limitavam a correr por suas vidas, confirmando o que eu esperava. Sob efeito de tranquilizante, álcool ou simplesmente pancadas na cabeça, todos foram levados desacordados e a polícia local estava devidamente “à bordo” da situação, de maneira que liberaram todas as estradas para as diversas rotas que as vans tinham planejado e tudo correu bem, fora em um dos casos em que um dos nossos motoristas foi morto por um passageiro. Não havia seguranças no veículo e ele carregava outros membros da família, mas decidiu ser herói e seguiu a rota indicada no GPS do carro. Foi cômico ver o homem sair da van atirando com um velho M-17 como se fosse causar algum dano com aquela arma. Acabou causando nosso primeiro acidente de percurso, quando a van em que ele estava acabou explodindo no meio da troca de tiros, matando ele e os demais tripulantes. Ficaram torrados, é verdade, mas não conforme o planejado. Mas, como dizia mamãe, tudo tem um lado positivo: com essa morte, os homens ficaram cheio de ódio e fizeram seu trabalho de tortura com mais vontade, deixando belas marcas no corpo.
O local onde tudo foi realizado era uma grande fazenda de propriedade da Liga enquanto instituição, o que mostrava a consideração que eles tinham sobre a autoridade do Estado. Ela ficava no interior de Minas Gerais e tinha um depósito com exatamente o tamanho necessário para manter 50 pessoas cativas e bem presas. Todos os ferros estavam prontos e aquecidos com o símbolo da união: duas mãos e uma corrente as prendendo. Nunca me perguntei o que essa merda significa até o dia em que vi pessoas esquentando ferro na brasa e marcando toda uma família como gado. Aquele cheiro de carne queimada era estranhamente apetitoso. Não que eu tenha pensado em comer carne humana, é claro, mas quando você sente o cheiro de uma pessoa queimando na sua frente, você lembra que não somos mais do que animais como qualquer outro: E estamos no topo da cadeia alimentar. Ouvimos todos os gritos, todas as súplicas desesperadas por piedade. Pessoas tentando morrer no lugar uma da outra como se alguém fosse sair dali vivo. Seria comovente se não fosse cômico. Deixamos Reginaldo por último, porque eu queria ver até onde o treinamento militar o ajudaria a suportar a tortura. Infelizmente, no entanto, ele não durou muito. Acordou gritando, parecia raivoso e confuso, até olhar em volta e começar processar a informação. Alguns segundos se passaram e a luta dele acabou. No momento em que aceitou que toda a sua família havia sido torturada e morta pelos meus homens, todo o brilho desapareceu de seus olhos. Ele estava morto em vida e aquilo de alguma forma me incomodou tanto que acabei dando um tiro na cabeça dele antes de fazerem as marcações, contrariando o plano. Ver aquele cara que era tão cheio de vida se entregar daquele jeito foi desagradável em um nível intenso demais e eu nunca mais esqueci aquele olhar perdido. E bem, o plano era meu: qual é o sentido de se criar um plano se você não pode modificá-lo segundos suas próprias conveniências?
Depois disso, o plano continuaria sem mim, então fui resolver meus problemas menores. Em uma das minhas franquias de fast food, meu gerente decidiu abrir mão de seu cargo e estava apontando outro funcionário para ocupar seu lugar. Foi quase premonitório que ele tenha saído justo no começo dos anos de sangue, se livrando de todo o perigo que estava bem diante dele. De qualquer forma, eu precisava fazer meu papel e informar o novo gerente sobre suas novas atribuições. O homem baixinho e já ganhando peso com o novo emprego parecia apavorado com a minha presença. Seu cumprimento foi quase uma homenagem, com cabeça baixa e olhos no chão.

- Bom dia, senhor – ele disse
- Vejo que você está assustado. É bom mesmo que você demonstre o mínimo de sabedoria.
- Desculpe, eu não entendi?
- Geralmente eu tomo mais tempo pra apresentar suas condições, mas hoje não vou ter como. Aqui estamos na sua reunião de promoção e são quase 4 da manhã. Eu quero dormir, então vou ser rápido e explicar sua situação. Você estará sob constante vigilância de câmeras e todas as transações e lanches servidos serão registrados pelo robô central. Se for verificado deficit entre o caixa e as transações, você vai pagar com a sua participação de lucro e descobrir quando e como ele foi produzido. Identificado o funcionário, ele deve ser entregue a mim. Se você proteger seus funcionários, será tratado como o culpado.
- E o que acontece com o culpado?
- Bem, esse é um tipo de coisa que você entenderá melhor vendo do que ouvindo. Mas deixe que eu coloque dessa maneira: não é nem um pouco agradável e é irreversível.

O homem pareceu assustado. Provavelmente ouviu boatos de funcionários desaparecidos, mas, como nunca foram feitos boletins de ocorrência, foi como se nunca tivessem ocorrido. Viraram aqueles boatos que ninguém sabe de onde saíram e que provavelmente são um exagero da imaginação coletiva. Não nesse caso, é claro.

- É pra eu desistir do cargo que você está falando isso?
- Não, é pra você entender o que está em jogo. O risco grande vem com recompensa grande. Você tem total liberdade para deixar o cargo, dado que comprove que não houve nenhum desvio de caixa, se você encontrar alguém pra te substituir. Nesse cargo, seu pagamento será uma participação de lucro de 40%. A média mensal desse mês foi de 20 mil, certo Messias?
- Isso mesmo, seu Fred. O negócio melhorou depois da reforma.
- Então eu ganharia o que, 8 mil por mês?
- Não, 20 mesmo. Isso é 40% do lucro mensal. É uma franquia grande, sabe?

A mistura de cobiça e medo nos olhos dele me disse o suficiente. Ele estava contratado e teria exatamente a mão de ferro que eu precisava.

- Então porque o seu Messias está saindo?
- Ele ocupou esse cargo por 5 anos e economizou bastante. Eu admiro homens de ambição e ele quer andar suas próprias pernas. Está cumprindo nosso acordo até o fim e terá meu suporte com seus empreendimentos futuros. Entenda, Joaquim: você vale tanto quanto a sua palavra. Se você a quebra, eu te quebro e ponho alguém confiável no seu lugar. Não é nada pessoal, entende. Eu tenho projetos maiores e preciso manter essas franquias como uma fonte estável e constante de renda pra usar como capital de giro. Estou certo de que você entende não tenho tempo pra perder administrando franquia de fast food e lidando com vegans protestando.
- Entendo. Eu aceito o cargo de bom grado e faço da minha palavra o meu valor.
- Haha! Você mandou ele dizer isso, Messias?
- Eu falei que disse isso pra meter um medo nele. O cara decorou! Esse aí quer mesmo o emprego!

Coloquei a caixa de cerveja na mesa e dei uma larga risada daquelas bem treinadas.

- Bem, chega desse papo chato. Vamos jogar um truco, porra, porque a noite já tá acabando!

Cada um deles pegou uma lata e bebemos e jogamos pra assistir o tempo passar. Lá pras 5 da manhã os dois estavam dormindo nas mesas do estabelecimento, que não abriria em virtude do feriado e eu liguei a TV. Era minha mãe falando:

- Mas é exatamente isso que estou propondo, Arnaldo. O hábito de lutar contra as influências nocivas do poderia econômico nos deixou cegos, deixou nosso pensamento estereotipado. Esse maniqueísmo absurdo está nos impedindo de perceber essa nova classe de poder que parece estar chegando pra ficar: os cientistas! - ela disse
- Os internautas estão perguntando, em tom de brincadeira, o que o seu marido acha dessa sua resistência aos cientistas!
- hahahahahahaha! Bem, casamento nenhum é perfeito, certo?

As risadas foram intensas, mas com a insipidez típica dos acadêmicos com sua polidez intelectual.

- Negócio familiares à parte, você pode elaborar melhor essa conversas de cientistas do mal? - perguntou o jornalista.
- Sim, claro. São inúmero exemplos! Pense nas atividades recentes dessa tal liga dos cientistas.
- Da qual seu marido faz parte e que foi responsável pela cura da epilepsia?
- Sim, meu marido faz parte e ele mesmo me explicou, em termos simples, que essa cura ainda carece de testes de longo prazo. Reclamou, inclusive, a forma sensacionalista que o tratamento foi mencionado na mídia, apesar de que eu vi a diferença na vida de dois amigos epiléticos que tenho. Mas não é disso que estou falando. Por trás de curas e soluções energéticas, ele têm acumulado conhecimento, informação, que não está se tornando patrimônio público.
- Você tem algum exemplo disso?
- Sim, claro, tenho vários. Pense nesse novo elemento que está sendo extraído de marte. Está sendo chamado de Marsídio e, aparentemente, pode formar ligações mais fortes do que qualquer outro elemento na terra. Se entendi bem, com caldeiras bem quentes você consegue desfazer ligações que ele forma e evaporar todos os elementos comuns que ficam ligados a ele, fazendo com que ele forme cadeias literalmente inquebráveis. E o mundo ficou chocado quando um grupo de terroristas jogou um avião contra o prédio central da liga e ele teve apenas vidros quebrados. Que metal é esse, que só esses cientistas usam?
- Bem, é comum que materiais novos em fase experimental sejam de uso apenas dos cientistas.
- Com todo respeito, Arnaldo, você não pode estar querendo sugerir que o Marsídio é “experimental” e, ainda assim, é usado como escudo a prédios vitais. E não pode também estar sugerindo que os únicos cientistas do mundo pertencem à liga, já que são apenas esses cientistas que trabalham com esse metal.
- Mas diversos países também compraram Marsídio do assentamento um em marte. Não são só os cientistas da liga que possuem esse elemento.
- Acontece que o cientista que foi responsável pela descoberta desse elemento é da liga e não está compartilhando a informação. E mais: apenas China, Coreia e japão não venderam suas reservas de marsídio pra liga. O material é extremamente pesado e foi comprado de outro planeta, acarretando gastos imensos que não foram compensados, já que só a liga conseguiu o nível de pureza adequado pra dar a este as suas propriedades mais assombrosas. A caudeira que eles construíram é tão grande que você pode vê-la por satélite de baixa resolução. O que me assombra mais é que tem um grupo de cientistas dominando uma tecnologia tão importante, retendo para si próprios os benefícios dessa tecnologia e ninguém diz nada! Eles poderiam ganhar bilhões comercializando Marsídio, mas não parecem estar fazendo um investimento econômico.
- Exatamente esse é o ponto. Com os gastos elevados que eles estão tendo na produção desse metal, é bem óbvio que dinheiro de premiações nobel e patentes não segurará a estabilidade econômica da instituição. Eles vão falir muito em breve e os investidores estão começando a ser dar conta disso.
- É exatamente aí que está o ponto do meu livro, Arnaldo. Eles não vão falir. Se você retomar o significado mais basal do dinheiro, vai entender que ele significa poder. Se você o possui, você adquire produtos e faz coisas acontecerem. Houve um tempo em que se usava outros tipos de influência, como a religiosa, pra realizar interesses de indivíduos, mas chegamos num ponto em que até os líderes religiosos precisam retirar dinheiro dos fiéis, porque a religião como fonte de poder está entrando em extinção. O que as pessoas não estão percebendo é que, com tecnologia da liga e de fora, estamos chegando na era da abundância. Continuamos melhorando nossos métodos de produção e distribuição de bens de consumo enquanto que um fenômeno cultural fez com que nossa população não aumentasse proporcionalmente. Com a abundância de recursos, reduziu-se a desigualdade social e foi se tornando cada vez menos importante ter dinheiro. Hoje nós temos que até os empregos pior remunerados são suficientes pra um indivíduo ter casa própria, um carro, alimentação de qualidade! Os nanomateriais revolucionaram todos os mercados mais restritos e isso mudou os eixos de poder do mundo. Tanto isso é verdade que o Marsídio da Arábia Saudita foi vendido não em troca de dinheiro, mas de informação: eles queriam ter cientistas treinados pra produzir água potável em abundância pra sua população. Foi um acordo em que os investimentos financeiros se resumiram em gastos de transporte, alimentação e hospedagem! Você, há décadas atrás, imaginaria que uma transação dessas envolveria bilhões de Dólares e especulações do mercado, mas não foi isso que aconteceu. Foi uma troca direta, uma troca que desconsiderou por completo a importância do dinheiro! Talvez seja essa a mensagem da Liga com esse mega-projeto do Marsídio. Mostrar pra Wall Street que suas muralhas de dinheiro já não são fortes o bastante. Minha proposta, Arnaldo, é que estamos diante de uma revolução, uma mudança fundamental nas estruturas da sociedade. Se passamos, e certo ponto, da Era de Reis para a Era do capital, estamos agora chegando em uma Era tecnocrática, que pode ser ainda mais impiedosas do que aquela que a precedeu, porque não só controlará os recursos e monitorará toda a nossa vida, mas também terá controle sobre o desenvolvimento de nossas crianças pra decidir o que elas podem ou não pensar. Estamos diante de uma enorme ameaça a qualquer ideal de sociedade livre, de uma besta logosófica que ameaça nos devorar sem o mínimo de aviso!

Já perdi a conta de quantas coisas eu já aprendi com a minha mãe. As vezes, eu ficava com a impressão de que eu era o único que realmente entendia essas ideias dela, que leu mais de uma vez os livros que ela escreveu. Depois de toda a tragédia da família, ela fugiu pro trabalho e eu fui atrás dela pra descobrir todos esse segredos magníficos que ela investigava. A sociologia do poder, que Mistura Foulcault com Marx e Feyerabend pra mostrar pro mundo que os heróis da civilização estão se transformando em algozes, em tiranos! É claro que ninguém ouve o que ela diz e que 500 páginas são algo inaceitável pra uma geração que cresceu lendo apenas 144 caracteres, então acabou que eu fui uma as poucas pessoas a entrar em contato com esse segredos que realmente pôde fazer algo a respeito. Não que ela fosse ficar orgulhosa do que eu acabei fazendo com suas ideias, provavelmente ficaria enojada, mas pessoalmente eu a considerava uma heroína pessoal.
O sol começou a nascer e chegou a hora do meu anúncio. Seria um momento de transição em que os amigos do Emanuel finalmente descobririam quem eu sou e do que sou capaz. Eu mentiria se dissesse que não gostava de ser tratado como se fosse um herói. Mesmo que, no fundo, eles só me vissem um mero burocrata estúpido. Eu fazia minha mágica (ou pelo menos eles pensavam que era mágica) e os recursos da universidade apareciam, tornando todos os aspectos mais improváveis do projeto possíveis. Investi bastante dinheiro, tempo e favores pra fazer essa ideia do Emanuel acontecer porque entendi o momento político. Pinkman facilitou meu acordo com a liga por essa patente em troca do Marsídio do mercado negro brasileiro e mais a quantia básica em dinheiro. Estávamos tão bem de acordo que eles venderem a patente da antiga técnica de purificação de água pra obviamente ser vazada pro resto do mundo. E não já não importava quantos processos eles abrissem contra mim: nunca houve um registro de patente no nome daquele grupo de pesquisa. Era uma patente minha que foi “vendida” para a liga, cimentando de uma vez por todas as minhas relações com esse grupo. Muitos diziam que Pinkman é um louco que apenas recebe algum respeito por causa de seu total e rápido domínio sobre o Marsídio, mas eu conheço um homem ambicioso quando vejo. Ele dominou o Marsídio e, ao invés de produzir bens de consumo e patentes com isso, começou a formar uma rede dentro da liga, ensinando outros cientistas e fazendo contribuições vitais pras suas pesquisas. De uma maneira parecida comigo, ele formou uma rede de subordinados poderosos, cuja ascensão dependeu dele e que cederiam recursos de pesquisa sem questionar. Eu sabia que as motivações dele não eram simples, sabia que ele queria algo muito maior e certamente queria estar do lado certo quando os planos dele se concretizassem. Nós dois eramos muito parecidos a esse respeito: estávamos escalando em busca de muito mais poder do que tínhamos, que no foi dado. A diferença é que ele queria o poder de mudar, de controlar os aspectos mais fundamentais do que se entende por realidade, enquanto que eu me contentava com minha ânsia indeterminada.
Fui até aquela sala de reunião onde o projeto foi pensado, discutido e, em última análise, desenvolvido. Cadeiras espalhadas mostravam bastante da dinâmica informal que eles formaram. Um vínculo que os ajudou a realizar o trabalho de maneira mais eficaz, mas que também os tornou mais idiotas quando a respeito de qualquer outro integrante. Eu os vi contrariarem a evidência para defender um ao outro como se fossem parte de algum culto religioso. Podiam estar na fronteira entre o passado e o futuro e fazendo história da ciência, mas ainda eram primatas como qualquer outro, com seu instinto de bando. E não existem grupos sábios: grupos são sempre nivelados pelo ponto mais baixo da média dos indivíduos. Não é tão surpreendente, afinal, que esse fosse um dos poucos grupos relativamente grandes de pesquisa a realmente funcionar tão bem, quando normalmente uns três pesquisadores com seus robôs já bastavam pra ocorrerem conflitos.
A primeira a entrar na sala foi a Juliana, justamente a pesquisadora mais emocional do grupo e que era informalmente responsável por organizar as confraternizações do grupo. Quando me viu, parecia em pânico e com raiva ao mesmo tempo. Sua respiração estava acelerada e seus punhos cerrados enquanto todos os outros do grupo foram entrando, visivelmente confusos com a minha presença.

- O que você tá fazendo aqui? Cadê o reginaldo?! - gritou Juliana com lágrimas nos olhos

Eu até pensava em fazer um discurso antes, mas como ela decidiu ir direto ao assunto, apenas liguei a TV e deixei que eles vissem por si próprios. O espetáculo estava montado de praticamente todas as velhas emissoras de TV estavam cobrindo aquele massacre em seu desesperado intuito de conseguir de volta a audiência perdida. Abandonaram todo o pudor em seu sensacionalismo e era justamente com aquilo que eu contava. Como sempre, o jornalista apareceu pra comentar, mas até esse que costumava fazer espetáculos de raiva falsa estava chocado com a mensagem que deixei. Mas ele tomou forças pra falar:

“É assombroso, inacreditável. Se você ligou sua tevê agora e está se perguntando o que aconteceu, te conto agora: 50 pessoas, uma família inteira! Foram todos torturados, mortos e postos pra exibição! Que tipo de monstro faria, isso, me perguntam? Que tipo de monstro mataria crianças, idosos, uma família inteira?! Mas eu sei o que aconteceu, meus espectadores sabem o que aconteceu! Esse homem, Reginaldo da silva, de 35 anos, e toda a sua família vinha enfrentando a União. Não a do governo, mas a união de tudo o que há de podre no nosso país. Sem apoio do Estado, que nunca deu conta dos hackers desses marginais, ele e seus familiares lutavam por própria conta e risco contra essa corja! Isso enquanto o Estado se dá o direito manter em sigilo todo o sistema de monitoramento que mal funciona e pessoas filmando com seus óculos trabalham mais do que eles! Isso, meus caros, é uma mensagem dessa corja de criminosos. Estão nos dizendo que nosso governo, nossa polícia, nossos impostos não podem nos salvar. Isso, meus caros, é o preço da impunidade, é o preço de um sistema de vigilância que não funciona. Querem dar argumento, que é privacidade isso, direito a imagem aquilo. Mas nós estamos dando privacidade pra BANDIDO roubar, matar, sequestrar! Cadê as filmagens dessa atrocidade? A central da prefeitura parou de funcionar, como sempre acontece quando esses, me desculpem o termo, filhos da puta aparecem pra infernizar a nossa vida! Quando esses desgraçados vendem drogas na porta das escolas dos nossos filhos! Aí é que as câmeras falham! Cadê a privacidade da Josane, a empregada que ficou bêbada e tirou a roupa na rua? Por acaso a cena não está por todo canto da internet? A que ponto nós chegamos, ouvinte, que protegemos o INIMIGO e fazemos piada uns dos outros como se NADA estivesse acontecendo!!? Querem entrar no comercial, mas eu ainda não acabei! Eu mesmo aqui nesse programa me coloquei contra a abertura da vigilância, mas hoje eu mudei de ideia. Hoje eu falo pra todo o país: Nós precisamos que todos os cidadãos tenham acesso constante às imagens da cidade, que os próprios cidadãos registrem e denunciem isso! Que essa corja seja publicamente exposta! Isso tem que acabar!”

Ele estava pra continuar a falar, mas as imagens do massacre voltaram a ser exibidas e ele foi cortado. Parece que a mídia realmente não estava entendendo o que aconteceu e meu plano estava indo muito bem.

- Tá dizendo o que, que foi você quem fez isso? Você não me assusta, Fred – Disse Juliana
- Eu acho que foi ele sim, Ju. - disse André
- O quê? Tá louco, andré! Ele é só um fracassado que veio aqui porque é irmão do Emanuel! - ela protestou
- Vocês me chamaram de paranoico, então eu não falei nada, mas pesquisei a vida dele. Ele é rico, rico pra caralho, ju.
- O que? Porque você não falou nada? Como assim? - Déborah falou confusa.

Aquela Déborah sempre mexeu comigo. Uma pena que, da posição em que eu estava, não seria possível usar meus recursos com ela. E demorei bastante tempo pra colocar outra no lugar dela, daquela beleza vulgar que ela tinha. Nunca mais ouvi dela depois daquele dia...

- É verdade, Déby. Ele é dono de dezenas de lanchonetes de fast food. Todas as melhores, as mais movimentadas são dele. Ele tem comércio em vários setores e até coisa com o exterior. Eu descobri tudo direitinho só semana passada, antes eu só sabia que ele era rico, mas não dava pra saber que era tanto.
- Porque você roubou nosso projeto, seu filho da puta?! - Juliana gritou
- Roubar? Eu? Não ficaram sabendo, não é? Esse projeto é meu e vocês são minha equipe.
- Ah sim, quero ver a reitoria acreditar que temos um administrador que faz nanotecnologia! - disse Déborah
- É, você tá fodido, cara! A justiça vai te obrigar a devolver todo o nosso dinheiro e você vai pra cadeia!

Eu tinha mais coisas pra falar nos meus planos, mas acabei simplesmente mostrando o instrumento usado pra marcar os familiares do Reginaldo. Fiquei só olhando pros restos carbonizados que se acumularam sobre ele. André foi o primeiro a entender. Suas lágrimas foram poucas e desceram sem causar nenhuma modificação em seu rosto. Pensei que ele estava apático, pois ficou em silêncio.

- André, caralho, porque você não falou nada!? Você sabia que ele era isso, cara, que porra é essa!

Ele permaneceu em silêncio, aparentando estar ausente, mas eu não percebia nenhuma emoção em seu rosto.

- Fala alguma coisa, André, diz que ela tá errada! - Disse júnior, que mal se fazia notar no local
- Ele tá quieto porque é verdade. Ele sabe que essa porra é culpa dele! Ele que defendeu o Fred naquele dia no bar quando estavamos decidindo quem aceitar pro cargo. Ele é igualzinho, ele também deve estar ganhando alguma coisa com isso!

Juliana estava cada vez mais descontrolada. Começou a gritar e derrubar cadeiras pela sala até partir pra cima do André, que nem tentou se defender. Socos, tapas, arranhões, nada parecia afetar o homem.

- Para, Ju, para com isso! - Disse Déborah – vamos embora daqui, não quero mais ficar aqui!

Eles olharam pro André no caminho da saída, mas não o chamaram pra ir embora. De alguma maneira, criaram um culpado e passaram a odiá-lo como se a causa de todo o mal não estivesse diante deles ali na sala. Talvez estivessem com tanto medo que eu me tornei como uma força da natureza. Como quando um maremoto destrói uma cidade: ninguém culpa Deus ou a Mãe natureza, é sempre culpa da usina geotérmica mais próxima ou de projetos secretos do governo. Afinal, quem vai culpar o cara que pode lançar raios e sabe de tudo? No fundo, não sei proque reagiram daquela maneira. Se já tinham suspeitas, se ele já tinha feito outra coisa. Mas anos se passaram até esse grupo se reconciliar.

- Eu não preciso desse dinheiro, não preciso desse projeto. Eu vou fazer outro projeto maior e vou entrar na liga. Seu jogos não vão te salvar, filho da puta, quando eu vier atrás de você. Vou estripar você e toda a sua família. Você vai pagar por essa merda com o seu sangue e vai sofrer por tudo o que fez.

Ele não parecia sentir raiva. Não, o que vi em seus olhos foi legítimo ódio e uma mente determinada. Não pude deixar de admirar o autocontrole que ele demonstrou e se tem uma coisa que admiro é a ambição. Um cara com a ambição se escalar e se tornar poderoso com o único intuito de me matar merece, no mínimo, meu respeito!


- Respeito sua ambição. Só lembre: nunca tente ferir aquilo que não pode matar. Feras feridas são duas vezes mais perigosas.

Ele continuou olhando nos meus olhos por alguns segundos. Como se, naquele instante, todo seu ódio estivesse sendo cimentado. Eu olhei de volta querendo alimentar o sentimento. Quando ele saiu, verifiquei minhas armas e acionei meu monitorador midiático. Um estudando com tudo a ganhar e nada a perder que produzia relatórios sobre toda a cobertura midiática a respeito dos eventos que me interessavam. Algo interessante aconteceu que eu jamais teria esperado: um grupo de membros da União foi executado, presumivelmente como resultado de algum conflito dentro da organização. Eles não sabiam que todo o plano estava montado e que seu fim estava próximo. Simplesmente alguém de lá entendia que crises são oportunidades e, mesmo sem saber o que aconteceu, culpou seus oponentes. Segundo meus hackers, foi um golpe pra tomada de poder. E foi excelente pra mim, que tinha já uns vinte inimigos a menos pra me preocupar e um novo líder que não podia mobilizar as forças da organização pra investigar o que de fato aconteceu, já que isso comprometeria suas alegações. A cidade já era minha. Enquanto eu tomava meu whisky e assistia o plano se concretizar, Letícia me ligou.

- Fred, vem que a gente vai comer uma pizza pra comemorar!
- O que estamos comemorando?
- Passei no vestibular! Eu vou pra Liga!
- Que orgulho! Escolha qualquer lugar da cidade e traga quantos amigos quiser! Essa é por minha conta.
- Viu, como você tá? Ta meio sumido esses dias, não dá notícias... Esqueceu a irmã, né?
- Eu to bem, Lê. É que eu to trabalhando bastante, sabe? Colocando os negócios em ordem, é coisa difícil.
- Meu irmão o magnata! Você tem que vir no meu colégio me buscar de moto de novo, as meninas morreram de inveja!
- Vou só se você for com a camisa da Faculdade de Ecologia!
- Como você sabe que escolhi ecologia? Eu não te falei, seu fofoqueiro!
- Eu conheço minha irmãzinhas!
- Oi? Ah, to indo!
- Ta falando comigo?
- Oi Fred, to aqui. Eu tava falando com uma amiga. To indo, se cuida aí, viu? Te vejo mais tarde!


E a cada dia que passava eu sentia mais intensamente que nasci na família certa. Com todos os altos e baixos, crises e brigas, todo mundo parecia estar firme e forte na escalada. Uma família de heróis, cada um com seu próprio desfecho trágico.