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7 - Encruzilhada (parte 1 de 3)



Emanuel Peçanha - 2075

Emanuel Peçanha - 2075

Eu vi um demônio diante de mim. Pele vermelha, face do Deus celta e asas de morcego resplandecentes. Ele estava parado diante de mim com os olhos fixados no meu peito, confuso.

- Onde está? - ele perguntou
- O que você quer? - respondi confuso
- A escuridão do seu coração. Cadê?!
- Deve estar por toda parte. Não viu quantas pessoas eu massacrei?
- não, tem algo errado! Você já devia ter se corrompido!

O monstro colocou as mãos na cabeça e começou a gritar. Deu uns passos pra trás, tentando sacudir algo pra fora de si. Até que uma espécie de aracnídeo abriu o peito dele e saiu para fazer seu ninho em alguma árvore. Seu corpo foi se fazendo líquido e desapareceu como se nunca tivesse existido.
Liana apareceu, me assustando mais do que qualquer demônio. Passou por mim sem perceber minha presença e foi fazer carinho na aranha, que estranhamente foi ganhando cores e se transformando em algum tipo de mamífero até se fechar num casulo.

- O que é isso? - perguntei pra ela

Ela se virou pra mim como sempre fazia, sem dizer uma palavra, mas congelando todo o meu corpo com um sorriso. Veio andando na minha direção, me tomou como se eu fosse um bebê e me deitou no chão. Comigo deitado em seu colo, ela fez carinho na minha cabeça e eu chorei.

- Porque você me deixou, liana? Porque? - perguntei
- Se decide, manu. Quer saber o que é aquilo ou porque eu fui embora?

Esqueci toda a tristeza e sorri. Ela sempre me fazia tentar decidir as coisas só pra me fazer ver que eu não me dedicava a nada e sempre largava minhas coisas pela metade.

- Eu escolhi você. E nunca desisti, até o fim! Eu fiz essa decisão, li...
- Só que a decisão não era sua pra fazer, manu...
- Era de quem?
- Do destino, eu acho. Quem sabe?
- Porra de destino. E pensar que me lancei a mercê dele. Eu sinto tanto a sua falta, sabia?
- Eu sei. Já fez a sua decisão?
- Sim. O que é aquilo ali no casulo se movendo?
- Aquilo é um tigre branco
- O que? Mas era uma aranha e entrou no casulo!
- É um tigre branco. Você quis chamar de Baphomet e de aranha gigante, mas na verdade é um tigre branco.
- Mas...
- Acredita em mim, manu. É um tigre branco...

O filhote de tigre saiu do casulo como se tivesse acabado de despertar de uma longa noite de sono. E veio na minha direção. Não havia como ter medo daquela criaturinha. Chegando perto de mim, subiu na minha barriga e veio até o meu rosto me lamber.

- Isso é tigre ou cachorro? - perguntei
Um vulto de cachorro passou do meu lado, como se minhas palavras o tivesse materializado, mas logo sumiu.

- Você foi atrás de lobos, ovelhas, demônios e anjos, manu. Mas o tigre era o seu bicho de estimação.

Fiz carinho no tigre e percebi que tinha patas no lugar de mãos. De súbito, eu estava na tundra e era um tigre. Pisei suavemente na neve e caminhei um pouco até perceber que não havia nada de errado em ser um tigre.

Quando eu acordei, vi um aviso no monitor dizendo que estávamos no Rio de Janeiro. Fred e os caras da liga não me queriam perto do traje até conseguirem recuperar alguma informação a respeito do que aconteceu. Tudo tinha culminado até aquele momento e eu pensei que cometer aquele massacre ligaria algum botão dentro de mim. Era como se um monstro estivesse sempre ali dentro de mim, batendo na porta, pedindo pra sair. Quando eu vesti o traje, foi pra me entregar. Eu já estava sozinho no mundo e, afinal, porque seguir a vida negando que você é um monstro se na verdade é apenas isso que você é?
Mas quando eu abri os braços, meu peito doeu e não há nenhuma marca na minha pele ou qualquer tipo de lesão no meu corpo. Eu parei de matar as pessoas porque alguma coisa dentro de mim me trouxe uma dor horrível. A pior que já senti, pra falar a verdade. Eu não sou um assassino. Nunca fui, nunca serei. Só, quem sabe, um cara com um pouco de raiva, mas isso não faz de mim um psicopata. Tive que sair e matar dezenas de pessoas pra perceber que todo esse papo de “lado negro” nunca passou de uma fantasia minha, uma coisa que eu temia tanto que tomou proporções irreais. Eu não senti prazer em matar. Minha única diversão mesmo foi desafiar as barreiras do espaço e do tempo. Apreciei, em suma, a loucura, não a morte. Não que eu tenha me sentido especialmente culpado pela morte de todas aquelas pessoas, é claro. Não sou nenhum salvador da pátria, mas também não sou do tipo que mata por puro prazer. Um tigre, como aquele que liana tinha tatuado nas costas. Era lindo, porque, apesar de ser uma fera, estava olhando pro horizonte tranquilamente.
Fosse o que fosse, minha cabeça estava cheia demais. Eu precisava esquecer tudo aquilo e ser o que nasci pra ser. Um Indulger. Só de imaginar eu já senti aquela sensação de queimadura no peito que dá quando você acende a tatuagem reluzente. Ela diz “indulge” e significa que passei por todas as provas e sou um Indulger por vocação. Minhas roupas estavam saturadas e eu precisava trocar, então fui à minha casa no Centro com o bom e velho transporte público. Engraçado como o moderno foi se misturando com o arcaico. Eu imaginava que tudo seria diferente, mas aquilo parecia com o trem de antes e alguns muros velhos e quebrados tinham várias décadas de existência, seus construtores já perdidos no tempo. Prédios velhos, lembrando o fato de que a cidade tem sua história, misturados com maravilhas da bioarquitetura formavam uma cidade exuberantemente bizarra. Era bom estar em casa, depois de todos aqueles anos rodando o mundo atrás de alguma bobagem imponderável ou quem sabe só fugindo da minha própria sombra.

Minha casa estava impecável, mas o robô estava com claras falhas. Nem mesmo a mais sofisticada peça tecnológica consegue se manter íntegra quando colocada diante do abandono. Foram dois anos sem pisar na casa e eu só lembrava que ela ainda existia por causa dos gastos que o robô dava pra manter a casa exatamente com a mesma desordem em que a deixei. Minhas notas ainda estavam espalhadas pelos chão e meus brinquedos também. Peguei roupas do chão mesmo, porque o robô lavou tudo e depois colocou no mesmo local onde as encontrou. Eram ainda roupas daquelas que apenas mudam de cor, não têm telas no ventre ou processadores na etiqueta. Apenas uma camisa que muda de cor, coisa das antigas.
Vestido, bebi quase um litro de água, comi minhas últimas conservas e fui até o Plasma mais próximo. Passei um ano naquele treinamento virtual louco e passei todo tipo de privação, mas a única que realmente me marcou foi não poder satisfazer ninguém. Quando você aprende o valor de dar prazer, amor pra outro ser humano, viver sem isso se torna um suplício quase insuportável. A coisa fica ali naquele lugar entre paixão, vício e obsessão. Quando cheguei no lugar e ativei, finalmente, a tatuagem, lembrei do que aquela dor significava. Meu coração acelerou e respirei fundo. Eu estava em casa!

- Heeey, love! Quanto tempo, em? - uma voz feminina falou no meu ouvido
- Martha fucking Stewart! - respondi
- Ah não, cara, já mudei esse nome. Mas pode me chamar assim se quiser!
- E o que você faz por essas partes, Martha?
- Só vivendo o sonho! Escuta, é perfeito que você tenha chegado aqui. Tem uma garota ali que confirmei que está aqui por pegadinha.
- Como você confirmou isso? - perguntei incrédulo
- Eu vi os registros de comunicação dela e tudo. Mas esqueça isso e veja a cara dela. Está tomando água com a bolsinha dela e esperando alguma coisa. Ela é do tipo religioso, cara. Vem destravar ela comigo?
- Dois indulgers pra uma pessoa só? Sério?
- Qual é, man! Vamos lá, em nome dos velhos tempos!
- Ah, Martha, quando vou reunir forças pra te dizer não?
- Talvez agora que eu vou destruir seu orgulho com meus novos truques!
- Boa sorte destruindo o que não existe! Vamos lá, então!

Enquanto andávamos na direção da moça, um cara que estava tentando conversar com ela pareceu desapontado pelas respostas que ela dava e se afastou frustrado. Que tipo de aberração seria aquela? Uma religiosa em um Plasma no auge do século 21?

- Hello, darlin' – disse Martha
- Desculpe, eu já falei com aquele moço ali. Eu não bebo e não quero transar com ninguém. Eu estou aqui pra uma reunião.
- Se importa se eu beber por aqui? - perguntei
- Você tem seu livre-arbítrio, não tem?
- Ah, cristã! Coisa rara hoje em dia - Respondi
- Olha, se você veio aqui pra fazer piada da minha fé, por favor pare. É sério, já chega disso.
- Ninguém está fazendo piada da sua fé, love – disse Martha
- Talvez vocês não, mas meu parceiro de negócios acaba de me dizer que não faz negócios com cristãos me mandando aqui. Estou aqui porque eu não quero acreditar nisso, esperando que ele entre por aquela porta.
- Tem um terraço onde a gente por sentar ver quem entra e sai daqui. Não tem barulho pra agredir seus ouvidos e nem bebida pra te oferecerem. Quer vir com a gente e conversar? - Martha disse fazendo carinho no cabelo

A mulher tirou a mão de marta de sua cabeça e começou a respirar fundo. Alguma coisa a respeito nela me fazia querer dar um beijo grego longo e elaborado. Talvez aquele vestidinho e aquelas roupas sem nenhuma tecnologia. Como se não existisse nenhuma merda nela, dentro ou fora. Finalmente ela concordou.

- Tudo bem, eu vou lá, mas não fica fazendo carinho na minha cabeça assim. Eu não gosto, tá bem? - disse a mulher

Nós dois abraçamos a moça e fomos andando até a saída.

- So... qual é o seu nome, love? - Martha perguntou
- Jussara de almeida
- Bem, Jussara de almeida, se a nossa companhia te incomodar é só você avisar, tudo bem? - Martha falou
- Não, tudo bem. Meu santo bateu com o de vocês dois.

Subimos por aquela escada espiralada e fui logo abaixo dela. E, nossa, como a minha imaginação foi longe. Fiquei me sentindo como o Indulger carente do poema na parede da nossa sede lá em Dubai. Uma vergonha! Chegamos lá em cima e logo Jussara deitou no colo de Martha. Certamente ela estava mais rápida, mas se ela estava se gabando tanto, não podia ser que ela estivesse dizendo que se tornou profissional em consolar cristãos. Sentei na outra extremidade e ela pôs a canela no meu colo. Dei um gole no meu Big Apple e acendi um cigarro de maconha.

- Por favor, não fuma isso perto de mim. Eu não gosto dessas coisas. Legal ou não, eu não gosto. - Jussara falou

Joguei o cigarro e dei mais um gole olhando pra ela com uma pergunta no rosto.

- Beber pode, tudo bem. Só não bebe demais.
- Posso fazer massagem no seu pé? Você parece tão triste. Se seu sócio chegar eu ponho rapidinho seu sapato de volta.
- Ah, não sei...
- Tudo bem, o pé é seu...! Mas conta pra gente o que aconteceu aqui.
- Pois é, love – Martha falou e virou seu copo de caipirinha – como você veio parar aqui?
- Ah, mas a história é tão longa...
- Você tá com tempo, man? - martha perguntou
- Todo tempo do mundo – respondi
- Bem, talvez você esteja com pressa, jussara, mas nós não.
- Qual é o nome de vocês?
- Oi, meu nome é Martha e eu sou uma viciada! - martha disse erguendo um segundo copo de caipirinha que tinha acabado de chegar
- E você, man? Seu nome não pode ser Man – esboçando um leve sorriso
- Meu nome é Emanuel...

Martha arregalou os olhos. Ela entendia o risco que significava dar o nome verdadeiro pras pessoas. Ser capaz de desaparecer era a regra mais fundamental da nossa ordem. Mas eu sabia que aquela ali, sendo cristã, mais cedo ou mais tarde chegaria à conclusão de que escolhi aquele nome pra agradá-la

- Emanuel é Deus conosco, sabia? Deus conosco, nessa noite triste!
- Mas triste, love? Olha só pro céu, que desafia essa cidade que nunca dorme com suas estrelas. Ouça o silêncio desse cantinho.
- Eu não sei como vim parar aqui, sabe? Não era pras coisas serem assim.
- E qual era o plano? - perguntei
- Eu devia estar me casando amanhã... Estava tudo marcado, sabem?
- Você fugiu do seu casamento e veio parar aqui? - Martha perguntou
- Ah, eu queria mais pra minha vida. Queria ser uma mulher independente e respeitada, como aquela Luiza, sabem?
- Ah sim, conheci ela – disse martha – realmente uma mulher e tanto

Ela olhou pra mim naquele tom sarcástico que só ela sabia fazer. E que sempre me fazia sorrir, não importando quantas vezes ela repetisse.

- Também conheci a Luíza. Ela veio numa passeata que nós realizamos pela paz. E sabe, eu vi que ela podia ir onde quisesse e fazer o que queria. Não que ela fosse uma pecadora por isso sabe?
- Então você queria estudar e tudo? - perguntei
- Não, não é exatamente como ela. Eu queria sair e fazer a diferença no mundo. Não escrevendo livros nem estudando. Eu quero ser uma empreendedora.
- E seu noivo não te apoiava nisso? Que besta! - martha falou
- Não, ele me dava todo o apoio do mundo, Martha. É que eu comecei a ter sucesso e daí meus produtos foram além do universo cristão.
- Como é? Universo cristão? - perguntei confuso
- É que por lá a gente diz que existe uma separação entre o mundo e a igreja de Deus. É coisa nossa, você não entenderia. Mas daí as roupas que eu desenho começaram a vender pra gente de fora e aparecer em lojas não-cristãs.
- E qual foi o problema? - perguntou martha
- O problema é que, mesmo apreciando as roupas que eu desenho e produzo, os empresários não são cristãos. Eu tinha que fazer sociedade com eles pro meu produto ganhar o mundo.
- E ele não aceitava que você saísse pelo mundo, então? - Martha perguntou quase sussurando

Ela começou a chorar, virou de lado e escondeu o rosto no colo de Martha.

- Não, ele aceitou tudo. Ele é um anjo, martha – ela falou lutando contra o soluço – mas ele é cristão. Os sócios começaram a me chamar de noivinha virgem e nunca me chamavam pra nenhuma confraternização. Eles diziam que não tinha lugar pra mim nos antros de perdição onde eles iam, mas eu tenho Jesus no coração e não ia fazer nada de errado. Eles me disseram que não queriam problema com meu noivo nem com a minha família.
- Porque eu não sinto paixão na sua voz quando você fala dele? - ousei dizer
- Eu amo aquele homem, do que você está falando?!

Mas a tensão nos pés dela não enganava. Ela se contorceu pra falar isso, como quem faz um esforço pra ditar algo pro próprio coração independentemente do fato de que ele diz o contrário. Quando vestimos armaduras de razão, eu descobri, isso se reflete no nosso corpo inteiro. Desde as costas até a ponta dos pés. E um segredo de ser um indulger é aprender a ouvir do corpo o que a voz não expressa.

- Olha, eu sei o que vocês são. Eu não quero transar com vocês, tá bem? - ela falou logo depois de o corpo dela dizer o contrário
- E porque você assume que nós queremos isso de você? - Martha perguntou
- Porque vocês são indulgers, né? Não são como se fosse prostitutos que trabalham de graça?
- Meio contraditório um prostituto trabalhar de graça, não é?
- Ah, mas daí vocês transam e as pessoas vivem falando disso. Que vocês são os reis da luxúria. Só que a luxúria é um pecado!
- Nós não somos reis da luxúria – Martha disse – apenas cedemos o que nos é pedido.
- Mas mesmo quando o que é pedido vai além do que vocês podem dar?
- É exatamente esse o ponto, Jussara – falei – nós corremos o mundo atrás de pedidos que vão além do que nós podemos dar. E vamos atrás de situações que contrariam nossos desejos mais egoístas. Ser um indulger, na realidade, é um exercício de entrega. É você conseguir dar ao outro algo que você nunca pensou que poderia, expandir os limites do seu corpo e da sua alma!
- Isso é uma coisa que todo indulger precisa saber e sentir – completou martha – é por isso que temos essas tatuagens doloridas no peito. Nós somos a reação, exatamente o outro extremo de um mundo onde as pessoas vêm se tornando cada vez mais egocêntricas.

A princípio Jussara não esboçou resposta, mas parou pra pesar aquelas palavras. Abraçou Martha e abriu mão de olhar pra entrada do plasma, como quem já não se importa se virá alguém ou não.

- Então é isso, né? Vocês não vão transar comigo porque sabem que não é isso que eu quero. Mesmo que vocês queiram – ela disse olhando pra mim
- Mesmo que queiramos com todas as nossas forças – respondi olhando nos olhos dela

E ela sorriu um sorriso que inundou meu coração. Que me fez lembrar que eu tenho sim um motivo pra estar vivo. Eu estava exatamente onde queria estar fazendo apenas o que eu queria fazer: amando incondicionalmente. Um homem chegou na entrada e olhou diretamente pra bunda dela, sem o mínimo de pudor. Achei engraçada a maneira como ele arregalou os olhos, porque não tinha entendido que ele reconheceu quem era. Alguns minutos depois ele estava lá conosco e só então ela soube que ele estava lá.

- Carlos, você veio! - ela falou limpando as lágrimas quase secas do seu rosto
- Ju, eu não sabia. Você tem que acreditar em mim. Eu já expulsei o Vitor da sociedade por ele ter feito isso com você.
- Mas... Não foi você que marcou essa reunião?
- Não, ju. Ele pegou meu computador e fez isso com você porque ele é um babaca. Eu falei que se ele não saísse eu sairia e todos concordaram em expulsar ele. Eu não vou mais deixar ninguém te desrespeitar nem rir de você pelas suas costas, porque você é espetacular e talentosa e não importa que você seja religiosa. Sei lá se é Deus que te dá toda essa força, Ju. Eu planejei mil coisas pra te falar, mas nada tá saindo como planejado. Então agora tudo o que me resta é dizer que eu te amo.

Todo o pé dela se contraiu e quase senti a adrenalina dela. Nós sabíamos o que fazer. Coloquei o sapato dela de volta enquanto Martha a ajudou a se levantar devagar. Porque ela se sentia confortável com a nossa presença, nem falou nada. Apenas foi na direção dele e o abraçou forte. Aí sim eu vi paixão no rosto dela. O homem chorava, parecia bêbado, mas isso não afetava a maneira digna como ele se recusava a aceitar um fim pro abraço. Decidimos sair, mas antes que conseguíssemos ela segurou nossas mãos.

- Obrigada por esses momentos. Eu estava errada por ter julgado vocês. Vocês são muito mais cristãos do que imaginam...
- Espera ai, eles são... indulgers!? - Carlos perguntou
- São sim – ela respondeu – e eles têm respeito, diferente do que falam por aí!
- Jussara, eles não têm respeito. Eles apenas reconhecem e aceitam o respeito que você dá pra você mesma. Porque você é uma mulher forte e uma mulher correta, nem mesmo um indulger poderia te convencer a ir contra suas próprias convicções! Você não sabe como eu te admiro!

Ela largou as nossas mãos e deu um beijo leve na boca dele. Aproveitamos a oportunidade e saímos, porque aquilo era o momento deles. E já estava na hora de nos separarmos, porque nossa missão ali já estava cumprida. Eu e ela passamos pelas provações juntos e fomos instruídos a manter certa distância porque senão começaríamos a interferir no trabalho um do outro. Sempre acabávamos seduzindo um ao outro, era uma coisa tão natural que parecia inevitável.
Nos despedimos com nosso bom e velho “aperto de mão”. Sempre fazíamos daquele jeito: segurávamos nos braços um do outro e íamos deslizando até nossas mãos se encontrarem apenas pra tentarem se segurar em vão. Ela deu as costas e foi embora do plasma, mas a noite não tinha acabado pra mim. Aquelas luzes e aquela música me convidavam pra uma segunda rodada, dessa vez talvez mais violenta.

Foi quando me deparei com mais uma daquelas fãs da minha mãe. Elas sempre me davam calafrios com suas tentativas de copiar os traços físicos e comportamentais da famosa Luíza e sempre me vi incapaz de satisfazê-las porque acabava sendo levado de volta a um passado que prefiro esquecer. Mas essa estava tranquila com os cotovelos pra cima e bagunçando o próprio cabelo no ritmo da música, coisa que a minha mãe nunca faria. Isso seria um insulto ao seu “charme”, afinal. Isso me deu coragem. Eu tinha que enfrentar essa minha resistência, porque assim eu retornaria à trilha do progresso, coisa que ficou abandonada já há tanto tempo. Afinal, não existe indulger completo e se você para de caminhar é porque se perdeu. Quando ela percebeu que eu estava olhando pra ela, viu minha tatuagem e arregalou os olhos. Provavelmente foi falar com algumas amigas ou algo assim e logo estava de volta, ávida pelo meu toque. A fama da nossa ordem me garantiu o princípio desse encontro, como tantas vezes já aconteceu, mas a partir daquele momento era eu lutando contra os meus demônios pra satisfazer exatamente a pessoa que mais me intimidava em todo o ambiente. Quando senti meu coração acelerar a minha dor da tatuagem se intensificar, aí sim relembrei a razão de tudo. Eu estava vivo, centrado e a noite seria longa...

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