RSS Feed

9 - Arrependimentos (Parte 2)

Constantino Peçanha – 2020

Viajei em congresso pro Piauí como se estivesse no século passado e esse tipo de deslocamento fosse estritamente necessário. Não que fosse algo incomum, especialmente porque havia subsídio da universidade, mas eu raramente ia senão pra vê-la. Cada vez que eu acreditava ter me livrado de seus encantos ela protestava quase silenciosamente pela minha presença e me seduzia mais uma vez. Mônica tinha uma maleabilidade absurda que acabou fazendo com que ela ficasse cada vez mais eficiente em me arrebatar. Dessa vez, bastaram algumas palavras e lá estava eu no meu voo econômico indo ouvir Neurocientistas brilhantes que poderia aparecer na tela do meu computador. Quando eu cheguei ela já estava no aeroporto com aquele sorriso cinematográfico e parecendo uma criança diante de um novo brinquedo.

- Constantino! - disse ela quase gritando

Correu na minha direção com passos curtos, como se soubesse que assim me faria correr na direção dela. As pessoas estavam olhando, alguém poderia me reconhecer. Pausei por um instante, mas ela não recuou ou reduziu o ritmo. Acabei correndo feito um moleque apaixonado e me jogando nos braços dela, que quase caiu no chão.

- Tá vermelho porque? - ela perguntou em tom sarcástico
- Não sei, Mônica. Talvez porque um monte de gente está nos olhando, porque tem um segurança vindo avisar que você não pode entrar aqui ou porque estou feliz em te ver. Porque será que meu coração bate assim?

Ela me abraçou e pôs a cabeça no meu peito.

- Deve ser porque você tá tá é velho gagá e não aguenta mais correr!
- Disse a moça que correu devagarinho feito uma anciã com passos curtos!
- Aquilo foi puro charme, meu filho! E você não resistiu!
- Com licensa, senhora, mas essa zona é para passageiros apenas – alertou o guarda
- Pega lá a sua mala, Constantino!

Eu fui na direção da bolsa. Tropecei e quase caiu, e ela soltou mais uma risada estrondosa que sem dúvida todos ouviram. Essa maneira que ela tinha de ser expressiva acabava contrastando com a Luiza, que era tão silenciosa e sisuda. Era como se, no meu coração, Mônica fosse mais minha família do que minha própria esposa. Só com ela eu sentia tantas emoções e ao mesmo tempo tanta familiaridade.

- Já escolheu a linha de pesquisa? - ela perguntou
- To pensando em decidir aqui. A interface homem-máquina é o tema desse congresso.
- Eu posso ir com você? - ela perguntou empolgada
- Reservei duas vagas na esperança de que você fosse pedir isso, mas acho que vai ser um tédio pra você.
- Eu to de viagem, querido. Eu quero ver como esses seus companheiros pensam, é um mundo totalmente estranho pra mim.
- Bem, que ótimo! O problema é que eu já li o trabalho do Nicolau, o principal palestrante, e ainda assim não decidi minha linha de pesquisa. Na verdade eu nem tenho tanta esperança de que isso seja produtivo a não ser como uma distração mesmo.
- Não é pra se distrair! Quantas vezes vou ter que te falar? Olha, você tem que se atrair! Vou te ensinar um segredo meu que você vai achar bobagem.
- Não tem bobagem sua que não seja um deleite pra mim!
- Para! Você só tá falando isso pra me pegar, seu tarado!
- Tudo o que eu faço é um pouco pra te pegar, mas também não exagera! Qual é o segredo?
- É a Maia, lembra?
- Não era uma amiga imaginária sua de infância?
- Sim, mas daí ela cresceu. Ela agora é uma sábia tibetana que conversa comigo de vez em quando.
- Como assim?
- Sempre que as dúvidas me assolam, eu paro e imagino toda uma cena na frente do espelho ou então num computador com câmera. Aí eu converso comigo mesma como se eu fosse a Maia e dou conselho pra mim mesma.
- E isso funciona?
- Bem, até agora eu me orgulho da vida que tenho vivido. Eu amo mais, realizo mais, viajo mais, aprendo mais. Assim eu decido que rumo eu quero pra minha vida. Você devia tentar!

Nem percebi, mas fomos andando e já estávamos no quarto de hotel. Seria uma semana inteira com ela.

- Olha, eu tenho aqui as versões prontas do mercado de tudo o que você gosta. Só colocar no micro-ondas!
- Seus dotes culinários nunca deixam de impressionar!
- Promete que vai falar com a Maia?
- Ah, eu tenho dúvidas dentro de mim, mas eu não tenho muita escolha, sabe? Só vou receber financiamento em neurociência se eu entrar pra área financiada pela indústria do entretenimento. Ou seja, interface homem-máquina, realidade virtual. Não tenho muita opção, acho que Maia me diria pra eu deixar de ser idealista apenas.
- Ah, mas adoro suas ideias mirabolantes! Lembra que você queria que o mundo fosse anarquista?
- Haha! Bons tempos!

Tomamos vinho barato e assistimos ao por do sol ao som de músicas que nem conhecíamos, mas que ali mesmo aprendemos a apreciar.

Constantino Peçanha – 2075

Eu tinha todo um plano esquematizado pra derrubar Miguel como um herói de desenho animado, mas no fundo eu nem visualizava mais do que uma morte heróica. Minha vitória foi algo tão inesperado que eu nem imaginava o que fazer quando recebi a notificação de que as crianças estavam prontas pra serem deslocadas e que miguel estava pronto pra ser neuralizado. Eu tinha pensado no meu avô, que era político e tinha aquela fazenda que foi passada pro meu pai e depois pra mim. Ele tinha um auditório enorme e uma mansão que visitei apenas algumas vezes na vida. Eu poderia levá-los pra lá, mas rapidamente eu seria rastreado. Mesmo assim, eram mais ou menos 150 pessoas pra acomodar, alimentar, vestir, etc. Eu teria que construir muita coisa lá.

- Caralho, o que eu vou fazer?
- Comando recebido – meus óculos responderam
- O que?
- Constantino, aqui é o Creed. Programei isso nos seus óculos porque antigamente você tinha o hábito de repetir essa frase. Uma vez, bêbado, me contou que a Mônica falou da maia. Lembra? Fale com ela! Essa é uma mensagem gravada.

Fiquei deitado na cama tentando imaginar uma Maia, mas a ideia de uma monja ou algo assim não me apetecia. Tentei criar um cientista, mas aí me dei conta de que isso seria o mesmo do que falar com uma parede: teria tantas respostas sobre questões sociais-morais quanto um cão tem sobre as nuvens. Tinha que ser alguém que estuda a sociedade, que age sobre ela, que acredita que nada seja impossível de mudar, mas que não está contaminado com a noção de que pra tudo há uma solução técnica...

- Luíza! - gritei
- iniciando ligação... - disseram os óculos
- Não, não! Desligar! - gritei

A tela de discagem se apagou, mas logo luíza estava me ligando de volta.

- Tá tudo bem contigo, Tino?
- Tá sim, foi sem querer. Meus óculos estavam configurados pra fazer ligações mediante um grito. Daí eu gritei aqui feito louco.
- Teve pesadelo com a Luíza?
- Não, deixa pra lá. Depois falo com você, tá bem?
- tá certo, vou desligar meus óculos porque to meio ocupada, desculpa. Depois eu falo com você, o Creed te acha.
- Sempre!

Ela desligou bem ao estilo século 21, sem dizer tchau, assmi como não disse alô nem nada assim no começo da conversa. Segui como meu plano original e projetei Luiza com minha imaginação, sentada em sua banca de avaliação como fazia com seus muito orientandos.

- Então, senhor Peçanha, que proposta você tem pra essas crianças? - ela disse, invasiva como sempre
- Pra falar a verdade, eu não sei. Consigo pensar em um ou outro paradigma que produz “resultados”, sejá lá o que isso for, mas nenhum deles parece certo.
- E porque não?
- Não sei, parece que são incompletos
- Pois veja só o que te falta. Ouvir. Você está aí deitado na sua cama, fechado no seu mundinho e achando que sabe o que é melhor pra pessoas que você nem conhece. Quem é você pra querer decidir isso? Que tipo de autoridade divina você tem? Se você chega com um plano pra vida dessas crianças, mesmo na ausência de drogas, como você é diferente de quem você combate?
- Então você está sugerindo que eu converse com elas?
- Mais do que isso, que você veja, que escute, que seja uma influência positiva na vida delas, mas que não seja um agente cerceador que colocará grades em suas potencialidades. Se elas quiserem sair de perto de você entrarem na liga, o que você vai fazer?
- Não...! Bem, acho que a escolha é delas mesmo. Mas quero que saibam o que é a liga antes disso.
- Exatamente: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará! É quase clichê, jovem, mas o que muita gente não vê é que isso é todo um conceito de liberdade. Sabendo o que é a liga, o que a liga de fato faz, eles poderão decidir segundo seus próprios valores se vão fazer parte dela ou não. Assim como podem decidir vender o corpo por dinheiro ou viajar pelo espaço, porque a vida é deles e é um poço de possibilidades. Você precisa, mais do que guiar, apontar possibilidades pra eles experimentarem, estudarem, sentirem! Esse é o papel da educação numa sociedade livre!

Ela desapareceu tão repentinamente quanto surgiu e eu imediatamente comecei a comprar as contruções que seriam instaladas na fazendo. Uma enorme estrutura de refeitórios, dormitórios, armazens, salas de aula e aparatos tecnológicos. Um pequeno exército de robôs pra manter tudo em ordem e pronto. Alguns milhões gastos de uma reserva monetária que eu nem conhecia bem, mas que não pareceu fazer muita diferença. A montagem começou e saí de casa. Miguel preparou ônibus para eu transportar as crianças e elas estavam esperando em um pátio por mais instruções. Quando me viram, pareceram me reconhecer rapidamente e um deles, João Victor, veio logo me cumprimentar.

- Senhor, aguardamos instruções! - disse ele sem ao menos olhar nos meus olhos.
- Vamos entrar nos ônibus. O endereço já foram enviados aos pilotos automáticos. Será uma viagem de mais ou menos cinco horas. Não levem muita coisa, pois terão coisas novas lá.
- Sim senhor!

Os meninos se alinharam e entraram nos ônibus sem fazer muito ruído, como se não tivessem nenhuma pergunta sobre o que estava acontecendo. Quando todos entraram, as portas se fecharam e a viagem começou. Fora exceções, foram todos dormindo e eu mesmo peguei no sono.
Chegamos lá e a estrutura ainda estava sendo montada por aqueles robôs gigantes e assombrosos que só faziam com que eu me sentisse velho. Fui até uma árvore onde ficava sentado quando novo e as crianças me seguiram, como se essa fosse uma coisa totalmente obvia de se fazer. Quando me sentei pra assistir a construção, Eles também se sentaram e seu líder veio se sentar comigo.
João Vitor era o líder daquele grupo de jovens que parecia segmentado por um sistema de hierarquia intelectual. Foi conversando com ele que percebi que Miguel era só mais uma engrenagem num sistema enorme que envolvia mais do que a Cidade do Rio de Janeiro e que mandá-lo pra liga tinha sido quase inútil. De fato, se não fosse pelo ataque que realizamos eu nem teria conseguido levar essas crianças pro interior de São Paulo na antiga fazenda do meu pai. Eram 150 jovens de idades que variavam entre 5 e 16 anos. João tinha 15 e se portava como um militar.

- Reconheço você. É Constantino Peçanha, um dos fundadores da Liga dos cientistas pela ciência livre
- Poderia ser qualquer um com o meu rosto!
- Se fosse outra pessoa já teria morrido. Frederico não perdoa, mas respeita família.
- Então você conhece meu filho?
- Sim, eu sou o único que já viu ele aqui. Segundo ele, eu me mostrei como líder, ele percebeu e me colocou nessa posição. Agora todos os outros recebem instruções de mim.
- Deve ser um peso e tanto. Olha só pra todas essas crianças, sentadas enfileiradas e quase que em silêncio total. Parecem pequenos robôs sob seu comando.
- Não é um peso porque não sou eu quem garante o comportamento de todas. Mesmo assim elas não são tão quietas assim. Acontece que sabemos o que rolou no rio, sabemos que você salvou a gente daquilo e que é uma situação de crise. Se ficarmos fora de controle vamos acabar mortos ou pior, abandonados. Estamos inclusive um pouco tristes porque alguns dos nossos professores morreram no ataque.
- Você está triste pelos professores?
- Eu... Isso não importa. Olha, você sabe se ali do lado do clube da zona oeste que foi atacado o bairro ao lado ficou intacto?
- Olha, pelo que sei teve danos paralelos e várias edificações ficaram comprometidas. Estão reparando tudo e mensurando os danos ainda.

O rapaz deixou uma lágrima escorrer.

- Angela... “anrrela”...
- Quem é essa?
- Ela é uma pobre coitada que mora ali do lado. Ela nem sabe falar português puro, veio das regiões que falam esse portunhol deprimente. Ela diz que o nome dela é “Anrrela”.
- E você chora por essa pobre coitada?
- É uma fraqueza da qual já falei antes com meu comandante. Um dia numa excursão pela região eu a vi dirigindo um carro bem velho pela rua, sem ter nem piloto automático. O carro quebrou e nosso guia nos instruiu sobre auxiliar a população local pra reforçar o silêncio. Então peguei meu equipamento e fui lá consertar a lata velha dela. No começo eu me irritei bastante com aquele portunhol, porque estamos no Estado do Rio de janeiro, ela deveria falar português ou ao menos espanhol, mas não essa mistura vulgar. Mas ela ficava sorrindo pra mim com aquela marca abaixo do olho direito. Alguma coisa naquele sorriso tirou toda a minha tensão, sabe? Eu até demorei pra consertar o carro por causa dela e tomei uma bronca.
- O que tinha no olho?
- Ah, acho que é uma cicatriz porque ela não tem cicatrizadores, daí se feriu e ficou a marca. É um sinalizador de pobreza, mas por algum motivo me deixou maluquinho. Disseram que eu sou pervertido.
- Quantos anos você tem mesmo?
- Tenho 15, senhor.
- E ela?
- Ela tem 14. Ja vi tudo da vida dela e as vezes eu me pegava falando com ela online. Dei até um óculos pra ela escondido. Disseram que ela não podia entrar na escola porque ela não é orfã e porque é burra, mas ela é esperta. Eu conheço ela! Ela tem o cabelo encaracolado e a pele alva. Tem olhos negros, a voz mais doce da zona oeste e só faz gentileza pras pessoas.
- Você sabe como surgiu esse portunhol, que hoje em dia dizem ser pura burrice?
- Sim, depois da guerra quando anexaram os outros países do norte da América do sul as línguas se misturaram. Um fenômeno linguístico que profanou nossa língua, segundo nosso professor.
- Sabe a idade do seu professor?
- Tem 23 anos.
- Bem, então ele era muito pequeno pra entender o que de fato aconteceu. Os livros registram apenas versões limitadas do que de fato aconteceu.
- Então qual é a sua versão? - O menino parecia ter esperança de fazer do meu discurso um elogio pra sua amada
- Acontece que durante a guerra o antigo Brasil recebeu armamentos contrabandeados da liga e apoio massivo da américa do norte. Nós invadimos e massacramos nossos povos vizinhos enquanto a mídia era manipulada pela moribunda TV e pelos hackers que programavam robôs pra espalhar mentiras pela internet. Só que a verdade acabou vindo à tona e descobrimos os massacres que estavam sendo cometidos. Com líderes mortos ou se rendendo, no final da guerra uma jogada política anexou essas nações vizinhas ao Brasil.
- Sim, disso eu seu.
- Então esse povo sofrido falava espanhol e houve uma comoção nacional por reconstruir o que foi destruído e tentar repor o que os criminosos de guerra tiraram. Enquanto criminosos de guerra eram julgados e condenados, o povo brasileiro começou a acolher pessoas desses países por todo o território nacional enquanto alguns foram voluntários pra ir trabalhar pela reconstrução desses novos estados. Só que eles só falavam espanhol e a pessoas começaram a tentar imitar o espanhol pra se comunicar com eles. O Brasileiro puxava um pouquinho do sotaque pro espanhol, falava uma palavra aqui e outra ali do espanhol e vice-versa. Esse esforço se prolongou e as línguas foram se misturando enquanto as crianças eram criadas ouvindo das duas línguas o tempo todo
- Mas então porque somente pobres falam portunhol e os mais ricos falam das duas línguas separadamente?
- Porque quem mais acolheu os estrangeiros foram os pobres.
- Como é?! Mas eles já não tinham dificuldades?
- Sim, mas ainda assim foram os que mais se compadeceram. Os ricos se fecharam ainda mais nos seus condomínios e na sua língua, mas o povo já tinha dialetos diferentes e uma linguagem flexível que sempre mudava. Então essa menina, qual é o nome dela?
- Angela.
- Sim, a Angela é o fruto de algo muito bonito, que foi a compaixão dos nossos mais necessitados pelos crimes de guerra cometidos por toda a América do sul. O portunhol dela nada mais é do que um sinal de que nossa nação não é das que segregam e perseguem como outras da Europa, por exemplo. Nós só separamos ricos de pobres e Angela só fala a língua que os outros pobres falam, por isso desprezam ela.
- Queria saber se ela está bem...

O menino deitou-se e ficou olhando os dormitórios serem construídos. Eu nem sabia bem o que fazer. Certamente podia alimentar e abrigar aquelas crianças, mas o que exatamente eu tinha pra lhes ensinar? Tinha muita coisa pra ouvir de crianças que não estavam habituadas a ter voz: precisava de tempo. Acessei meus óculos e pedi uma sala de recreação e aparatos tecnológicos pra manter as crianças entretidas enquanto eu pensava. Eram claras as camadas hierarquicas até mesmo pela roupa. As mais pobres, como Juanito, vestiam roupas sem cores e até rasgadas em alguns pontos e pareciam mais sujas enquanto que outras se vestiam e portavam como se estivessem sendo treinadas pra constituir algum tipo de elite. Roupas novas, óculos de última geração do mercado e olhares altivos.
Tendo em mente todos os locais dos dormitórios, decidi misturar todas as “castas” de crianças nos diferentes quartos como uma tentativa de quebrar essa tradição. Logo tudo ficou pronto e eles entraram em fila pelos corredores sem a necessidade de nenhum tipo de orientação especial. Receberam em seus óculos ou camisas o local onde ficariam e foram pra eles sem reclamar. Anunciei uma assembleia geral pra explicar o que estava acontecendo.

- E aí, Constantino, decidiu se vai sair do planeta ou não? - perguntou creed invasivamente nos meus óculos
- Não decidi. Estou pensando em como explicar as coisas pros meninos e não sei o que dizer,
- ótimo! - disse ele empolgado
- O que? Como assim ótimo? - retruquei
- Deixa eu fazer minha apresentação pra você e pra eles. Passei dois dias construindo isso, deu o maior trabalho!
- Qual é o tema?
- É uma propaganda de Marte, pra convencer pessoas educadas a irem, mas eu falo, então vou simplificar pra eles.
- E é hora pra isso? - perguntei em to irônico
- Tem outra escolha? - Ele retrucou em tom de zombaria
- Bem, faça como quiser. Assim pelo menos esvazio minha cabeça.

Quando cheguei no auditório onde meu avô fazia palestras, vi que ele estava bastante mudado. Coisas que não encomendei estavam instaladas por ali. Creed perdeu totalmente os limites e fez pedidos no meu nome pra fazer a apresentação, como se minha incapacidade de saber o que falar pras crianças fosse uma coisa tão óbvia que ele já tinha planejado falar no meu lugar. As crianças estavam enfileiradas e milimetricamente alinhadas numa fila dupla que as separava pelo sexo. Só aí vi a predominância de meninos sobre meninas, porque elas também estavam usando o mesmo corte de cabelo militar e eram duas vezes mais numerosos. Quando entrei, João, o primeiro da fila, bateu continência pra mim e ficou parado. A situação constrangedora se manteve por uns 30 segundos até eu entender que ele pedia autorização pra entrar no auditório.

- Podem entrar – disse eu meio perplexo
- Sim, senhor. - Respondeu joão num tom que antigamente chamariam de robótico

Os meninos entraram em um silêncio tão intenso que parecia ser algo sagrado pra eles. De alguma maneira, todos eles sabiam exatamente onde iriam se sentar, como se até pra isso fossem treinados. Subi no palanque e falei brevemente:

- Algumas coisas ainda estão sendo definidas. Como sabem, é um momento crítico e estamos todos preocupados com a segurança de vocês. Não posso passar mais informações porque muitas decisões ainda precisam ser tomadas, então por enquanto vocês tomarão lições escolares com robôs aqui na fazenda. Para a reunião de hoje, decidi trazer um conteúdo fora do comum, mas que poderá fazê-los pensar sobre o futuro de maneira diferente. Lhes apresento creed 2030!

Os aplausos dos meninos a um estranho foi tão artificial que pareciam até sincronizados.

Os projetores mostraram um Macaco Bonobo e os meninos riram.

- Não, esse não sou eu – disse a voz alterada de Creed no fundo – mas a primeira lição que tenho pra dar vem desse macaco e de seu companheiro.

Outro macaco apareceu bem de frente pra esse, e os dois se encaravam de maneira agressiva. Começaram a gritar e bater as mãos no chão e nos peitos por algum tempo, mas sem saírem do lugar, até que repentinamente pararam e andaram numa determinada direção como se nunca houvesse ocorrido o desentendimento.

- Não sei se vocês sabem, mas Bonobos não brigam assim. Chimpanzés que fazem isso. E na verdade esses macacos não estavam brigando, mas sim manipulando um robô.

Projeções da atividade cerebral dos macacos e de seus índices metabólicos apareceram no topo do holograma.

- Vejam como com esse comportamento os níveis de cortisol sobe e a atividade cerebral como um todo indica estresse. Isso é lido pelos robôs, que levam comida para os macacos, então eles aprenderam a se estressar para ganhar comida. Vejam só o holograma mais ampliado.

Apareceu uma cena da floresta e os outros bonobos assistiam a cena com atenção, mas olhando em volta a procura do robô. Gráficos na cabeça dos outros bonobos mostravam que a tensão artificial não os afetava e que todos sabiam que aquilo era uma “farsa”. Os rapazes perceberam que uma fêmea estava realizando sexo oral em outra e as risadas foram estrondosas, mas não duraram muito.

- Exatamente! Esse riso diz tudo! Dois macacos brigando e elas ali trocando amores? Não vamos agora discutir o comportamento sexual desses macacos, mas vejam só como foram inteligentes: manipulam robôs sempre que a comida fica escassa e assim nunca passam apertos. Alguns outros animais desenvolveram estratégias semelhantes. Nas regiões tradicionais da nuvem vocês encontram notícias e documentários sobre como a natureza perdida tem sido restaurada em florestas plantadas onde antes havia desertos e que um grupo que se auto-denominou “druidas” está efetivamente curando o mundo que a industrialização fez adoecer. Mas isso é uma mentira e esses macacos são uma das provas. Nenhum bonobo em seu ambiente natural precisou manipular robôs e nenhuma floresta precisou ser meticulosamente monitorada em suas diversas variáveis ecológicas pra ser mantida viva. Na verdade, 95% dos recursos empregados na manutenção de florestas ao redor do mundo não são documentados, e assim fica a impressão de que algo disso é natural. Mas não é.

Gráficos apareciam de um lado pro outro.

- Vamos ignorar esses números por um instante e só pensar: porque é que as florestas precisam de robôs? Aqui vai a lista: 1) Sem controle meticuloso, a maioria das espécies entraria novamente em extinção, porque elas não deixaram de existir no passado por acidente e o planeta não tem mais condições de comportá-las. 2) sem controle meticuloso do solo, os micro-organismos que vivem ali o tornariam hostil à vida de todas as plantas e o local voltaria a ser um deserto. 3) Sem controle artificial das temperaturas e das chuvas, quase nenhuma espécie viva sobreviveria nesse ambiente. E não estou falando só dessa imensa floresta do kalahari, meus jovens. Eu estou falando do mundo inteiro!

- Como assim o mundo inteiro? - um dos alunos ousou perguntar

Os outros alunos o olharam com reprovação por ter se manifestado, mas ele te manteve firme.

Desastres naturais estão acontecendo o tempo inteiro, furações e maremotos vem sendo impedido ou mitigados por medidas tecnológicas o tempo inteiro. Grandes chuvas são dissipadas e grandes secas são interrompidas por aviões que literalmente provocam chuvas. A vida no oceano é só uma sombra do que um dia foi e os peixes que comemos são todos criados em laboratórios espalhados pelo mundo. Alguns não sabem, mas no passado extraíamos peixes diretamente do mar sem nenhum tipo de reposição, tamanha a fartura. Em suma, sem essas tecnologias, nossa espécie entraria em extinção e o próprio mundo entraria num colapso que poderia acabar com toda a vida como a conhecemos. Nosso mundo, como disse um velho amigo, vive à custa de aparelhos.

Depois da fala um vídeo foi exibido mostrando os equipamentos operando e alterando toda a dinâmica climática além da fauna e da flora com uma música de fundo um tanto melosa.

Depois disso, ele mostrou a primeira colônia de marte de 2030, com apenas alguns blocos de moradia e plantações.

- Essa foto foi tirada no mesmo dia em que eu nasci. Na época, esse lugar se mantinha com o monitoramento total: era um reality show onde as pessoas assistiam a vida em marte e, com sua audiência, recursos eram mandados periodicamente pra lá. Mais tarde, o elemento Marsídio foi descoberto e a colônia entrou em franca expansão, extraindo e exportando o material em troca de recursos. Marte é um planeta que encontramos morto, e nesse sentido não é muito diferente do nosso. Mas em outro sentido, ele é totalmente diferente. Nunca houve um homicídio em marte. Na verdade, ninguém lá tem nenhum tipo de armamento. Não existe pobreza em marte. Na verdade, eles têm um conceito bem diferente sobre propriedade privada. Não existem chefes e patrões: a democracia é absoluta. Entre dois planetas mortos, você tem a opção de escolher entre um onde as pessoas se respeitam em suas diferenças e outro que segrega. Um que agrega e outro que destrói. Um cheio de ódio e segredos, cheio de inutilidades e desperdício e outro onde o limite dos recursos une as pessoas e as torna transparentes. O que acha de deixar o mundo onde nasceu para trás?
- É... não, obrigado! - gritou um deles

Todos os meninos deram uma risada longa e acabou que o próprio Creed começou a rir, o que desencadeou mais risadas. Mas eu sabia muito bem da veracidade daquelas informações e acabei ficando introspectivo. Seria, porventura, a hora de deixar esse mundo pra trás?
Com todo o poder tanto monetário quanto de fundador da liga, fiquei parado e deixei o mundo tomar os rumos que tomou. A ideia de que esse planeta já não tem salvação começou a tomar conta de mim. E arrependimentos começaram a se tornar esperança...