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O bem e o mal numa manhã perdida (extra)



Constantino Augusto Peçanha - 2050

Deitei naquela cama que fazia todo aquele lugar parecer uma instalação militar e comecei a lembrar do que tinha acabado de acontecer. Toda aquela tragédia com a tribo tomou conta da minha mente até então, mas naquele momento eu só conseguia pensar nas coisas que a Luíza disse. “Como você pôde saber que uma aberração dessa existe e não fazer nada? Como você pôde ser conivente, guto? Você vai sair dessa liga. Nem volta pra casa se estiver filiado a essa porcaria!”
E ela insistiu, e ela repetiu, tentanto me tirar do silêncio. Mas minha boc anão abria, minha garganta estava travada. Nenhum som poderia sair. Mas eu reuni minhas forças, que eu nem sabia que existiam, e consegui falar uma palavra: “não”.
Ela falou mais e mais, mas eu só entendi uma frase daquilo tudo. “Eu não te aceito, não aceito o que você faz, não aceito as suas crenças e nem o seu trabalho”. E em algum momento eu teria que reagir. Eu não podia viver daquela forma pra sempre, como se estivesse preso numa cadeia cujas barras eram as expectativas dela. Eu podia amar ela mais do que todas as pessoas, mas ela me colocou diante da escolha entre eu e ela. Pra ficar com ela, eu teria que abrir mão dos meus sonhos, do meu legado, de tudo. Claro que essas coisas me custaram muito, mas passaram a me constituir. Passei anos lutando e esperando que minha luta trouxesse resultados. Anos esperando ela me aceitar e, por consequência, amar algo além dos ideais dela. Mas tudo o que restou agora foi um velho deitado num bunker super-tecnológico pensando em um milhão de coisas que poderia ter dito ou não, que poderia ter feito ou não. Um velho confrontado com um casamento de 40 anos chegando ao fim e começando a perder o rumo da vida. Minha pele podia até parecer bem mais jovem, e talvez médicos antigos me desse bem menos idade do que eu tinha, mas eu sentia como se minha alma fosse muito mais velha, muito mais desgastada.
Eu não queria levantar e quem me alimentava eram robôs. Nem sei por quanto tempo dormi até ser acordado por uma chamada emergencial. Só quem podia fazer esse tipo de chamada eram Luíza, Mônica e Creed. Por um instante, criei a fantasia de que a Luíza estava me chamando pra dizer que me aceitava, que me amava pelo que eu era e que entendia que eu poderia mudar as coisas na liga de dentro. Até pegar os óculos, no entanto, eu já estava convencido de que era Creed querendo saber se estava tudo bem. Mas, pra minha surpresa, depois de 5 anos, era Mônica. Recém reconstruída, com aquela pele branca contrastando com o cabelo que ela teimava em manter preto com uma mecha branca.
De certa forma, ela era o oposto da Luíza, que tinha o cabelo todo branco com uma mecha preta. Formas de charme diferentes, mas que exerciam um efeito hipnótico sobre mim que era bem parecido. A única forma de comparar as duas era mostrando as diferenças.
Se, por um lado, uma trazia ordem pra minha vida, um propósito claro, a outra me enlouquecia e tirava tudo do lugar. Enquanto a luíza aparecia cada vez com regras novas, que eram reformulações das mesmas regras de sempre, Mônica cada vez aparecia com uma ideia nova e espetacular. Ela tinha um Self permanente mutante, dizia que seria para sempre um novo eu.
Quando finalmente tomei coragem pra abrir a mensagem dela, as comparações desapareceram. Era como ela me fazia sentir. Como se, pelo menos por uns momentos especiais, nada mais importasse. A guerra, as mortes, o fim do meu casamento. Nada daquilo importaria naquele momento, porque ela estava de volta, talvez até pra vir me ver e me arrebatar daquele inferno.
“Tino, me diz que não é aldeia que nós visitamos! Por favor! Onde você está? Porque não atende seu telefone?”
Foi só aí que eu percebi que meu telefone estava desativado e que ela não sabia que eu tinha criado uma linha direta entre ela e eu. Ela não podia adivinhar que eu estava sempre disponível pra ouvir, pra conversar, pra companhia. Ou talvez ela nem tivesse parado pra pensar nessas bobagens tecnológicas, porque estava com algum empreendimento novo, alguma aventura espetacular nos cantos mais longínquos do planeta. Mas usei a comunicação da base pra entrar em contato.
  • Mônica, tá aí?
  • Tino! Meu Deus, onde você está? Me diz que isso não é verdade! Isso não pode ser verdade.

Ela estava chorando. E de tristeza! Nunca tinha presenciado aquele choro dela. E podia dizer isso com propriedade, porque lembrava bem claramente de todos os momentos que passei com ela. Foram poucos, e curtos demais, mas certamente mágicos. Eu não sabia bem o que dizer pra ela, mas conseguia falar. Ela tinha o dom de fazer as palavras fluirem.

  • Eu sinto muito, Mônica. Eu não pude fazer nada, sabe? Isso é culpa minha, eu devia saber!
  • Do que você tá falando? Olha, eu to chegando na vila agora e vou tirar essa história a limpo!
  • Você está aqui? Espera que eu vou te encontrar. Eu to na base.
  • Você tá aqui? Vem cá, você sabe me achar, né?
  • Sei sim, espera um pouco que já chego aí.

Eu percebi que estava a mais de 24 horas sem tomar um banho. O último que tomei foi logo que voltamos pra base, antes do monitoramento ter começado e tudo aquilo ter acontecido. Fiquei deitado aquele tempo todo e nem senti o tempo passar. Fui até o banheiro daquele lugar, que parecia coisa de ficção científica. Ele foi feito com ideias “futurísticas” daquelas que pessoas tinham no passado e que nunca aconteceram, porque o público simplesmente rejeitou. Aquele cubículo de tomar banho que pode ser brevemente descrito como um lava-jato humano foi inspirado em Isaac Azimov. EU que pedi, por simples diversão e porque era possível. E foi bem conveniente tomar aquele banho louco, com água vindo de todos os lados e secagem por ar quente e seco. Eu não queria deixar a Mônica esperando. Mais especificamente, eu não queria esperar pra vê-la, pra saber como ia a vida dela. Pra ouvir das aventuras recentes, das transformações inspiradoras. Eu não queria mais esperar pra ver ela falar com aquele sotaque único, com aqueles olhos que brilhavam como nenhum outro.
Quando saí, ela já estava na entrada da base.

  • Porque demorou tanto? - perguntou como quem não liga tanto pra resposta
  • Mônica! - exclamei como se ela nem tivesse me perguntado nada

E fui na direção dela e nos abraçamos feito dois ursos. A pressão do rosto dela contra meu coração me fez perceber como ele estava acelerado. Eu podia sentir o calor saindo pela boca dela enquanto ela chorava. Duas lágrimas escorreram pelo meu rosto, como que por milagre, e eu até tentei chorar com ela, mas as lágrimas cessaram. Imaginei que poderia ser algum defeito da minhas glândulas lacrimais, mas acabei deixando aquilo de lado. Mesmo sem chorar, eu conseguia sentir as coisas através dela.

  • É verdade, não é? - ela perguntou soluçando
  • É. Eu vi acontecer da base. Na verdade eu mesmo que fiz a transmissão acontecer.
  • Você lembra deles, não lembra? Eles que carregavam as mochilas, tino! Eles não faziam mal pra ninguém!
  • Eu sei. Eu lembro. Foi um crime horrível. Eu nunca esperei que algo assim fosse acontecer, sabe?
  • Vamos pra base? Eu to com o pé doendo e quero água. Eu quero um refúgio... - a última palavra se transformou em suspiro.

Fomos andando abraçados até a base. Ela chorou um pouco. O choro ia e vinha, até que parou por um tempo e ela começou a falar.

  • Porque você falou que é sua culpa? Você nem é militar, Tino.
  • Você viu daquela arma que usaram, o neuralizador?
  • Vi. Foi você que inventou aquilo?
  • Não. Mas eu sabia que ela existia. Inclusive mostrei pra eles o efeito que a arma tem sobre as funções cognitivas. Basicamente, eu mostrei pro departamento de defesa o poder destrutivo da arma quando não é usada pra matar.
  • Porque você fez isso?
  • Porque estava tendo muita violência na região swahili, ali na áfrica central.
  • Eu sei onde é a região Swahili, Tino. O que isso tem a ver com a arma?
  • Então, um dos membros fundadores da liga foi vítima de latrocínio. Eles queriam roubar reagentes caros. Aquele homem curou o câncer, Mônica. Ele era um gênio, sabe? Todo mundo ficou comovido com aquilo.
  • Nossa, eu não sabia disso. Mas onde a arma entra nisso?
  • Nós pensamos no que poderia assustar esses bandidos, e o ditador que comandava a região na época sugeriu rituais de roubo de alma. Enquanto todos nós achamos aquilo loucura, um físico do departamento teve a ideia dessa arma. A ideia era provocar demência em alguns desses bandidos e soltá-los, pra que as crenças religiosas dos demais os fizessem parar de atacar a liga com medo de perderem a alma. E funcionou bem, sabe? Evitou que acontecessem massacres. Por isso que eu ajudei nos testes. Estavam querendo empregar robôs de guerra pra procurar e matar esses bandidos. A neuralização surgiu como uma de intimidação, não de massacre...

Mas não foi isso que a Luíza entendeu. Pra ela, “Isso é uma arma de terrorismo, que nunca poderia ter nenhum propósito e qualquer ser humano em sã consciência deveria saber disso”.

  • Mas como isso foi parar nas mãos do exército?
  • Eu não sei. Pensei que isso era confidencial. Temos que investigar isso mais a fundo, temos que acabar com isso imediatamente e recolher esse armamento.

Ela esboçou um sorriso enquanto descíamos pela escada da base. Como ela foi diretamente pra cama maior, fui junto e ficamos ali deitados. Aquela base era uma piada, na verdade. Se você pensar bem, ela foi totalmente custeada por mim, cheia de detalhes loucos. Como aquela cama de casal, o banheiro futurístico, ou a voz “robótica” que o computador tinha. Era uma caricatura de futuro, mas ainda assim eu gostava. Trazia boas lembranças, excluindo as mais recentes.
Nós saímos do mundo por uns dias. Mesmo com outras pessoas, só nós dois existíamos e como conversamos! Milhares de palavras, mas pouquíssimas usadas ao acaso. Descobrimos tanto um sobre o outro sobre o outro naquela aventura que fiquei atônito quando ela decidiu ir pra tão longe tão cedo.

  • Desde quando você tá aqui? - ela perguntou
  • Acho que uns dois dias. Eu perdi a noção do tempo.- respondi
  • Quantas lembranças esse lugar trás, não é?
  • Coisas que 5 ou 50 anos nunca poderiam apagar, não é?
  • É. Me diz como ele morreu? Sabe aquele que eu gostava, o Juan?
  • Lembro sim. Ele se foi com um tiro na cabeça. Não teve dor.

Ela me abraçou com força eu pude sentir suas lágrimas escorrendo pelo meu pescoço. Tentei chorar, mas não veio nenhuma lágrima. Apenas fiz carinho no cabelo dela até ela pegar no sono. Naturalmente, acabei pegando no sono.

Sonhei com uma cachoeira gigante. Eu e Mônica estávamos debaixo da água como se não passasse de uma ducha. Estávamos abraçados e logo percebi que a água era nosso escudo. Enquanto estivéssemos ali naquele refúgio, nada poderia nos atingir. Era nosso cantinho do mundo, onde ninguém podia nos alcançar com julgamentos ou qualquer tipo de agressão. Senti um tipo de paz que não sentia há 5 anos. Senti amor, do tipo mais puro que existe.

E quanto acordei, ela estava olhando pra mim. Acordou antes de mim e a primeira coisa que eu vi foi seu sorriso.

  • Tava sonhando comigo, é, Tino?
  • Tava sim. Tinha uma cachoeira, e...

Ela interrompeu minha fala com um beijo, que pareceu durar uma eternidade, mas que ainda assim passou como um instante. Quando o beijo acabou, eu já mal lembrava do que tinha sonhado.

  • Não é sua culpa, sabe? Não é sua culpa que eles fizeram essa coisa horrível. Você não me fez esse mal.
  • Como você sabe?
  • Sei o que?
  • Que, lá, no fundo, eu estava me torturando pelo mal que isso causaria a você mais do que ao mal que isso causou a todas aquelas pessoas?
  • Nem sei se eu sabia, Tino. Só me ocorreu agora. Você é assim comigo.
  • Eu sou um monstro, não sou? Quer dizer, todas aquelas pessoas morreram de forma horrível e eu fiquei mal por tudo aquilo, mas na verdade o que me deixou bem triste mesmo foi imaginar como você ficaria com aquilo. Eu senti a sua dor, Mônica, porque a minha não existe. Eu não passo de um robô.
  • Não é verdade! Você é uma das pessoas mais sensíveis que conheço, tino. Você tem tanto amor pra dar, e tanta imaginação!

As vezes eu pensava se as coisas que ela falava tinham sido especificamente planejadas pra me fazer sentir paz. Se tudo era pra me fazer sentir como se ela fosse realmente aquela pessoa no mundo com quem eu poderia me abrir na certeza de que iria me aceitar e apoiar independentemente de tudo. Eu me pegava imaginando que tinha algum hacker como o Creed monitorando toda a minha vida, sabendo as coisas que eu mais queria ouvir e suspirando nos ouvidos dela. Tudo loucura, tudo paranóia. Mas a única coisa que eu queria fazer era abraçar, era beijar, amar! Se fosse tudo uma mentira, pouco me interessava a verdade. Se fosse tudo um conto de fadas, talvez tivesse chegado o momento de começar a acreditar em fantasias.

  • Eu estou noiva, sabia? - disse ela quebrando o silêncio
  • Porque fala nesse tom desanimado? - perguntou
  • Porque eu não quero mais. Não sei, tino. Eu estou enjoando dele. Sei que não faz sentido, que ele morreria por mim, que ele faz de tudo por mim. E eu estou tentando meu melhor pra ficar ali, mas não quero mais. Eu gosto de liberdade, sabe? Eu não quero passar o resto da minha vida morando em Dubai criando filhos. Já tenho uma filha e estou satisfeita.
  • Eu entendo. Você é como uma gaivota, como uma pluma que sai por aí voando com o vento. A última coisa que você precisa é de raízes, não é? A última coisa que você precisa é de algo de mantendo ali, presa no mesmo lugar, na mesma rotina. Você tem gosto por aventura, gosto pelo desconhecido. E há tanto ainda pra explorar...

Ela esboçou alguma palavra, mas desistiu de falar e só me beijou. Eu conhecia aquele beijo que ela dava respirando fundo. Não que eu soubesse exatamente o que ela sentia ou pensava nesses beijos. Mas eu sabia é que quando ela fazia aquilo, eu perdia o controle. Ela me levava embora. Me arrebatava. Fazia meus olhos se fecharem contra meus comandos e minhas mãos se moverem por conta própria. Se há algo pra dizer a respeito desses momentos, é que o medo deixa de existir. Enquanto que em algumas situações o desejo precisa ser muito grande pra ser maior que o medo, com ela os meus medos desaparecem como se nunca tivessem existido. Se ao menos ela ficasse pra sempre...!

Se ao menos eu pudesse fazer uma manhã durar uma eternidade!

4 - Demência de guerra


Luíza Gomes Pereira Peçanha, 2050

Eu nunca fui estúpida ao ponto de pensar que guerras são coisa bonita ou que os participantes de um dos lados são heróis. Mas não imaginava que a cobertura da mídia estivesse sendo tão parcial. Mesmo com a sociedade se organizando em rede, mesmo com a descentralização da produção de discursos, ninguém sabia dos massacres da venezuela? Quando penso no que tem sido dito a respeito dos “inimigos da democracia” e lembro dos relatórios que recebi, meu estômago gira. No caminho pra casa, o aparelhinho do Guto encontrou Emanuel em algum canto de Bangladesh. Meu filho tão longe de mim me deixa com um aperto no peito que nada parece aliviar. Mas é melhor que ele esteja lá, onde não está acontecendo nenhuma guerra. Essa nova tribo dele pode ser estranha, mas pelo menos não é violenta. Queria que fosse mais fácil lidar com ele. Guto, que um dia foi Constantino, acabou cedendo e aceitando o nome que ele tem em casa, mas Emanuel sempre me pareceu selvagem demais pra aceitar meus conselhos. Era muita coisa de uma vez só!
Quando cheguei no meu apartamento, decidi tomar meu vinho na frente da lareira. Tem algo a respeito da lareira high-tech, do vinho barato e do wallie dançando que me ajuda a por as ideias no lugar. Mas eu e a tecnologia não nos damos muito bem. Acho que é pessoal comigo, pois ela só falha quando eu mais preciso. As músicas da lista do Wallie mudaram de ordem novamente e ele parou de tropeçar nos passos. Mas eu gosto quando ele tropeça, especialmente quando ele pede desculpa com aqueles gestos desajeitados.

  • Guto, vem cá consertar o wallie!

Alguns segundos depois ele estava na sala, com aquele sorriso irônico que aprendi a amar.

  • Algum dia você vai ter que se acostumar com o progresso, Luíza. Esse robô só foi atualizado.
  • Eu não pedi pra ele ser atualizado, guto. Tira essas atualizações dele pra mim, por favor!
  • Que houve, Luíza? Achou o Emanuel?
  • Ah, achei sim. Ele foi pra bangladesh dessa vez, sabe-se lá o que anda fazendo.
  • Ele está morando num prostíbulo, pelo que meu hacker pôde encontrar. Parece ser algum tipo de rito de passagem desse grupo em que ele entrou.
  • Que coisa horrível! Você precisa falar com ele, guto. Ele precisa voltar a estudar. Ele era tão bom com nanomateriais...!
  • Ele ainda estuda, pelo que meu hacker me diz. Deixa ele, deve ser só uma fase. Ele está mais seguro lá do que aqui, com essa guerra.
  • Conserta o wallie, por favor?
  • Tá bem, lulu. Peraí. Deathcreed2020, está disponível?
  • Está falando com quem?
  • Um amigo que vai resolver esse problema de vez.
  • É da liga?
  • Não, ele é um... digamos... profissional independente.

Ele olhou pra cima, operando os óculos tecnológicos dele. Sinceramente não sei como ele consegue andar por aí com imagens aparecendo pra todo lado na frente das coisas. Aquilo é insuportável!Wallie parou de dançar.

  • Faça da matriz dele a minha máquina pessoal, reverta o kernel pra versão beta e não permita atualizações forçadas.
  • Os robôs podem ser atualizados à força? Contra a vontade deles?
  • Robôs não têm vontade, lulu. Eles são atualizados contra a Sua vontade, sem que você solicite.
  • Mas que absurdo! Porque isso?
  • Bem, porque são amadores e colocam produtos feitos pela metade no mercado. Sabe como é, investidores querem o dinheiro de volta e não há tempo pra se fazer coisas decentes nos dias de hoje.
  • Bem, nem todo mundo tem recursos ilimitados da liga pra ficar brincando de ciência e tecnologia, né?

Ele ficou de pé olhando pra mim, com aquela mesma casa de confuso de sempre, tentando entender o que eu estava fazendo. Consigo até imaginar o que ele estava pensando: que explicou a situação do Emanuel e consertou o Wallie, então eu deveria estar tranquila.

  • O vinho está ruim? Quer outro? - ele perguntou naquele tom investigativo
  • Não, o vinho está ótimo.
  • O que há, então?
  • Não é nada...
  • Como não é nada? Com esse tom de voz você espera que eu acredite? -

Ele falou com o mesmo sorriso que tinha quando éramos jovens. Em alguns momentos eu tinha a impressão de que pouco dele tinha mudado nesse sentido. Mesmo depois de velhos ele ainda fazia as mesmas bobeiras e, estranhamente, eu ainda gostava de tudo aquilo. Nunca houve um dia em que eu realmente cansei daquilo. Talvez em certas épocas do mês eu gostasse menos, mas no geral eu gostava do fato de que ele sempre conseguia quebrar minhas defesas. Ele foi o único que conseguia isso por um longo tempo.

  • Eu recebi notícias que me preocuparam, Guto. Eles cometeram genocídio numa aldeia ali na venezuela sob o pretexto de que havia guerrilheiros escondidos ali. Eu estou me sentindo muito estranha, sabe? Eu não sei...
  • Você quer fazer algo a respeito? Eu posso conseguir mais informações pra você. O Creed tem algoritmos que podem interceptar e filtrar mensagens do local e gerar relatórios pra você.
  • E eu poderia apresentar isso a um juiz?
  • Bem... Não. É uma forma ilegal de aquisição de informação. Seria considerado traição.
  • Traição! Filhos de uma puta! Que merda! Como pode ser traição você querer salvar a vida de inocentes? Como, guto?! Me diz!

Não aguentei e comecei a chorar. Depois de todos aqueles anos tentando educar, tentando trazer algo de positivo pro mundo, cheguei ao ponto em que me sentia cansada. Apenas queria acreditar que fiz a diferença, queria me manter ativa. Eu não ia me conformar, eu tinha que fazer alguma coisa.

  • E se fizessemos algo do tipo wikileaks? Lembra quando fizeram isso lá pro começo do século?
  • Esses relatórios não podem ser usados assim, Lu. Eles poderiam facilmente ter sido forjados e serão tratados como mentira pela mídia. Hoje em dia a evidência mesmo você tem que obter por holograma, que aí eles não têm como negar. Dá pra você reunir fotografias de satélite do local de produção do holograma e fazer a verificação dele.
  • Sim, mas essas câmeras enormes são coisas de cientista, não dá pra usar numa tribo.

Emanuel começou a pesquisar nos óculos dele, andando de um lado pro outro enquanto wallie se esforçava pra não esbarrar nele enquanto dançava a macarena. Achei que estava muito estranho ele dançar aquelas músicas agitadas, então pus a trilha de smooth jazz, mas ele não tinha muitos passos. Na realidade ele só fazia os mesmos movimentos em todas as músicas, mas era justamente isso que eu queria. Aqueles mesmos movimentos familiares me ajudariam a sair dali, a entrar no meu mundo particular onde eu poderia procurar uma solução pra isso tudo. Mas antes eu teria que esperar o Guto terminar de procurar as soluções tecnológicas dele pra me acalmar. Ele certamente detestaria a ideia que eu estava começando a tramar. Euzinha, aos plenos 63 anos de idade, mas parecendo ter 40, é claro, iria pro famigerado monte Roraima, onde a Mônica adorava ir. E fotografaria todos os crimes deles e mandaria tudo pra rede da universidade. Era só encontrar uma forma de contar isso pro Guto sem ele surtar e querer mandar um exército de robôs atrás de mim e pronto. Isso poderia inspirar pessoas, quem sabe mais gente começaria a registrar a verdade sobre essa “guerra contra a tirania”? Minha esperança não podia morrer! Não sem eu morrer junto com ela.

  • Luíza, acho que tem algo que vai te interessar...
  • Eu vou pra lá e filmar tudo!
  • O quê? Mas lu, você pode mandar robôs. Temos uns bem camuflados, é mais seguro e mais eficiente.
  • Não, tem que ser eu lá. Robôs não inspiram pessoas. São o recurso dos covardes.
  • Você sabe que eu uso robôs extensivamente nas minhas pesquisas, certo?
  • Ah, mas é diferente, guto. Você usas eles pra trabalhar em ambiente fechado, não pra sair por aí vendo o mundo por você.
  • Não é bem assim...
  • Olha, não vou mandar robô, tá bom? Para de querer questionar minhas decisões, constantino!
  • Opa! Se me chamou de constantino é porque estou com problemas.

Ele acabou conseguindo arrancar um sorriso meu. Justo no momento em que eu estava mais forte e ele se convenceria a me deixar ir. Com aquele sorriso, minha moral acabou. Antes de eu conseguir me recompor e recuperar minha postura, ele falou.

  • Pode me ouvir só um pouquinho? Só ouve o que eu tenho pra dizer, Luíza.
  • Tá, mas eu vou...
  • Nós temos um mecanismo de captura holográfica fracionada pronto pra uso. Altamente experimental, mas muito poderoso.
  • Fala a minha língua, guto! Para de graça!
  • É como uma câmera de hologramas, só que ela é dividida em pequenos sensores que se comunicam com um computador só. Daí elas podem captar um ambiente de vários ângulos e as imagens delas se sobrepõem em vários pontos e geram hologramas super detalhados.
  • Nós quem? A liga?
  • Sim, uns rapazes terminaram esse projeto recentemente. Chamei eles pra me apresentarem o aparelho aqui.
  • E eles vão simplesmente trazer tudo pra você? Isso nem é a sua área!

Ele sorriu com aquele sorriso que eu detesto. Aquele que ele diz que eu sou idiota, mesmo que ele tenha negado um milhão de vezes que ele pensa o sente isso. É isso que o sorriso diz: que eu sou uma criança ingênua e incapaz de entender as coisas diante de mim.

  • Qual é a graça?
  • Uou, calma, lu. Eles vão vir por causa daquele texto que eu escrevi, lembra? Aquele manifesto? Então, eles se inspiraram com aquilo, por incrível que pareça.
  • Ah sim, claro que eu que revisei pra você, né? Mas então, me dá o aparelho que eu coloco lá na tribo e pego eles no ato, transmissão ao vivo. Vou pegar eles no ato.
  • Ah, mas não tem como, lu. Só eles sabem ativar o sistema de hologramas fracionados.
  • Então porque você chamou eles pra virem aqui, se não posso usar a câmera deles?
  • Não é uma câmera.
  • Ah, tanto faz! Você só tá tentando me acalmar pra ver se eu fico em casa. Mas isso não vai acontecer. Dessa vez serei eu a ir na montanha. Se fosse a Mônica você não estaria reagindo assim

Foi só eu mencionar o nome dela que o sorriso dele desapareceu. Até hoje eu não sei o que ele viu nela. Não faço ideia de como ela conseguiu convencer aquele sedentário de escalar aquela montanha enorme. Ela é uma heroína do próprio mundo interno, não tem nenhum projeto social nem nada.

  • Aquela mulher é completamente egoísta. - sussurrei sem querer
  • O que? Está falando da Mônica?

Eu não sabia o que fazer. Não devia ter dito isso em voz alta. Afinal, fui eu que apareci com aquele discurso de superar valores sociais ultrapassados e mandei ele ir pra montanha com ela, onde eles ficaram “íntimos” pela primeira vez. E eu encorajei ele, mas era pra ser um experimento. Foi maluquice minha, mas eu queria saber se eu sentiria ciúmes, se ele continuaria me amando como antes. Acho que eu só esperava que ele percebesse que não deseja ninguém além de mim e que sou a única mulher na vida dele. Isso não aconteceu, mas tudo ficou por isso mesmo, porque ela foi embora do país mais uma vez. Como ele não mudou comigo, acabei aceitando a situação. Mas acho que se não tivéssemos nossos filhos, eu não teria me forçado a “entender” isso.

  • Olha, eu não falo com ela já há 5 anos... Até quando você vai ficar assim? - ele perguntou num tom triste
  • Olha, guto, eu tenho ciúmes dela, é só isso. Ela é toda livre e faz o que quer. Parece que não tem mania nenhuma e superou vários problemas difíceis na vida. Ela parece uma heroína, sabe? Eu fico insegura, eu acho que se ela ficasse ao invés de sempre ir embora você me largaria pra ficar com ela...
  • Eu nunca largaria você, Luíza. Você é minha esposa, a mãe dos meus filhos. Você é o meu refúgio e meu chão, sabe? Eu só queria que você acreditasse nisso.
  • Eu sei, querido, eu acredito em você.

Abracei ele e não consegui segurar o choro novamente. No meio de todo aquele caos ele ainda conseguia me arrancar sorrisos e até lágrimas de alegria. Eu amava aquele talento que ele tinha.

  • Vou com você, Lu. Era isso que eu estava tentando dizer antes de você me interromper. Eu e os rapazes vamos com você pro local e instalaremos o equipamento todo ali. Eles também querem expor crimes de guerra e estão por dentro dos boatos que rolam nas redes de hackers. Eu vou com você e vamos ver o que está acontecendo.
  • Posso te sacanear só um pouco?
  • Ha, bem... pode, né?
  • Agora eu também vou dormir com você na montanha! Só falta eu visitar o tibet e ficar uns anos no meio dos ratos na índia e ela não pode mais comigo! Haha!

Ele riu, mas eu percebi a dor que ele sentiu ouvindo isso. Acho que, apesar de ele ter feito exatamente o que queria e de não se arrepender do que sente por ela, ainda se sente culpado por causa da minha reação. Também, depois de todos esses anos comigo, ele ter voltado pra casa quando eu estava na TPM foi bola fora dele...

  • Só que nós vamos lá procurando uma forma de acabar com a guerra, procurando uma forma de salvar vidas. Não vamos lá pra ter experiências espirituais transformadoras. Vamos lá pra ter experiências sociais e tentar transformar o mundo!
  • Nossa, guto! Quem ouve até pensa que você tem consciência social!

Pelo menos dessa vez o sorriso dele foi genuíno, sem dor no fundo.

  • Bem, eu vivi no mesmo teto com uma professora de sociologia! Não tive escolha, né? Essa isso ou ficar de castigo!
  • Filho da puta!

Eu não podia acreditar, mas ele conseguiu me deixar completamente relaxada. Nos beijamos feito dois adolescentes e Wallie começou a reclamar que estava com bateria fraca. Desliguei ele com o pé mesmo, mas não interromper aquele beijo. Ele pegou a minha mão e me levou pro quarto, como ele sempre fazia, andando devagarinho do jeito que ensinei ele a fazer anos atrás.

  • Sabe, falando sério, eu gosto disso em você, lu. Quando estou com você, me sinto uma pessoa melhor. Você se importa tanto, você sente tanto, que não consigo deixar de sentir. Eu sinto com você, através de você.
  • Já te disse milhões de vezes, guto. Você sente porque é sensível. Meu wallie, o robozinho sentimental!
  • Responde uma coisa?
  • Fala, querido
  • Você me chama de Wallie por causa do robô ou chama ele de wallie por minha causa?
  • Ah, nenhum dos dois. Eu chamo você assim porque você é o wallie e eu sou a eva! Lembra desse filme?
  • Ah, eu lembro. Velho pra caramba, em?
  • Mas eu amo esses filminhos! Naquele tempo as crianças ainda gostavam de coisinhas inocentes assim! Depois a gente vê, eu tenho na TV ali no quarto

Nós finalmente chegamos no quarto, com a porta se fechando sozinha e o ambiente já ficando com a iluminação certa. Guto começou com essa mania de querer colocar tecnologias experimentais dentro de casa a uns anos atrás e quando nós chegávamos no quarto querendo sexo essa luz deveria ficar assim. Só que no começo não funcionava direito, então já aconteceu de noites apaixonadas se transformarem em comédia e guerra de travesseiro. Pelo menos ele era cavalheiro e me deixava ganhar!
Só que agora o negócio funcionava perfeitamente e as velinhas acenderam e a música começou a tocar bem baixinho no fundo. Aquela bossa nova que ele sabe que eu gosto.
Ele me girou e me abraçou pelas costas. Beijando minha nuca, minha orelha, meu pescoço, minha bochecha. As mãos dele pairavam, e as minhas apenas seguravam a cabeça dele. Queria que ele continuasse, queria que ele terminasse de me amolecer. Minha tensão se foi e esqueci de tudo o que aconteceu naquele dia. Só queria Mon Robot, meu Wallie, ali, naquele momento.
Deitamos na cama e passamos algum tempo no mesmo beijo. Não sei bem quanto tempo, porque perdi a noção, mas antes que eu me desse conta ele já tinha tirado minha roupa toda. Ele parecia que era literalmente treinado pra fazer só as coisas que eu gosto. Mas naquela noite seria eu a fazer o que ele gosta. Segurei as duas mãos dele e juntei os dois pulsos na minha mão esquerda. Pela diferença de tamanho, minha mão mal podia conter os braços dele, mas ele não reagia. Só sorria, olhando pra mim e tentando roubar beijos que eu não iria dar até a hora certa. Ele gostava de fazer as coisas com calma, no momento certo, e só eu sabia que momento é esse. Fiquei em cima dele e tirei aqueles óculos estranhos que ele tem mania de usar. Sei que ele gosta disso, porque sem os óculos ele não consegue ver nada que não esteja próximo. Ele diz que adora que eu seja a única coisa no mundo que ele pode ver. E é bom mesmo, porque eu sou linda!
Beijei o pescoço dele e puxei aquele cabelo grisalho com força o bastante pra mover a cabeça pra cima. Ele ria e se contorcia. Dava pra sentir a barriga dele se contraindo involuntariamente, como se ele nunca tivesse sentido aquilo antes. De certa forma eu invejava essa sensibilidade que ele tinha

  • Me beija, Lu. Só um beijo!

Neguei com um gesto com a mão e ele tentou pegar meu dedo com a boca, mas não alcançou. Parte do jogo era não falar nada com ele, porque responder era deixar ele ter algum controle e no fundo o que ele gostava era de estar totalmente à deriva, sob meu controle. Ele era meu escravinho e faria tudo o que eu quisesse. Com o tempo eu aprendi a gostar disso. Principalmente a parte em que ele perde o controle, me vira e me olha com aquele olhar de desejo que ele tem. Como se nada mais no mundo importasse além de mim e daquele momento.
Mas dessa vez, quando ele me virou, não deixei ele tomar o controle. Não, dessa vez eu levei a coisa pro próximo nível e simplesmente peguei a cabeça dele e levei pelomeu corpo. Ele foi beijando meu peito, minha costela, minha barriga. Sempre lembrando de beijar em todos os cantinhos que ele sabe que eu gosto. Engraçado que percebi que ele sempre beija os lugares na mesma ordem!
E quando ele chegou lá embaixo, me surpreendeu! Por um momento eu saí daquele quarto e me perdi em devaneios. Pensei que ele poderia ter aprendido isso com ela, mas eles já não se veem há cinco anos e ele nunca tinha feito aquilo. Ele não mentiria pra mim. Preferi acreditar que era apenas a inspiração do momento e me entreguei. Não que eu possa dizer que foi o melhor orgasmo de toda a minha vida, mas foi pelo menos o melhor que já tive desse jeito. Arranquei vários fios de cabelo dele no processo. Meu corpo amoleceu, e começou a tocar aquela música que eu amo tanto Duda, da Julieta Venegas, versão clássica de estúdio. E o mundo girou enquando ele voltava, beijando meu corpo todo até chegar no meu pescoço e ir direto pra minha orelha direita, que eu gostava mais do que a esquerda. A tela da TV começou a exibir mensagens, e consegui reunir a concentração pra desligar a tela.

  • Ativar proteção de tela – disse em voz alta
  • Então é nisso que você pensa quando estamos na cama, é? Tudo bem, eu sempre soube, não se sinta culpada

Dei uma risada, mas ele não me deu tempo de terminar. Antes que eu entendesse o que estava acontecendo, ele já estava dentro de mim, e a contração no meu ventre que era de risada passou a ser de prazer. Então o tempo deixou de existir. Fomos de um lado a outro, de uma posição a outra, do êxtase ao total relaxamento e de volta ao êxtase. Foi como na nossa lua-de-mel, quando eramos um casal jovem e cheio de paixão e de planos. E talvez fosse isso mesmo. Com essa viagem que faríamos, tínhamos algo maior nos unindo além do amor e do casamento. Unidos por um ideal, nos tornamos uma pessoa só. Talvez seja esse o segredo do sexo bom!

  • O que foi isso, Guto?!
  • Isso foi amor!
  • Ah, mas teve alguma coisa a mais, que eu sei. Você estava louco!
  • Acho que foi aquela cara que você fez. Cara de teimosa discutindo que iria pra Venezuela de qualquer maneira. Eu sentia falta disso em você. Você ficou madura demais com todo o trabalho, e alunos, e orientandos comendo aqui. Tudo era trabalho, sei lá. Não que eu esteja diferente, sabe? Mas sei lá, eu gostei.
  • Posso te sacanear? - perguntei com aquela minha risada de quem vai falar bobagem que ele conhece
  • Haha! Manda!
  • Se eu soubesse que seria necessário uma guerra continental pra isso acontecer, já tinha comedito alguns atentados!

Ele teve um ataque de risos como costumava ter antigamente. Se contorceu tanto na cama que acabei rindo junto com ele. E rimos até cansar, até acabarmos abraçados e sussurrando coisas que nenhum dos dois ouvia com clareza. Pegamos no sono, mas ele foi bem curto. Aparentemente, passamos tanto tempo na cama que já era manhã, os rapazes já tinham chegado do meio do continente africano. Era hora da nossa viagem e tínhamos que sair.

  • Nossa, mas não tem como adiar a viagem só um pouquinho, guto?
  • A viagem vai durar 7 horas, Lu. A gente dorme no avião
  • Como assim 7 horas? Porque?
  • Nós vamos entrar numa zona de guerra. Se formos rápido demais, seremos localizados pelos radares. Esse avião é praticamente invisível na velocidade em que viajaremos, então é mais seguro assim.
  • Praticamente? E se eles nos avistarem?
  • Ah, não tem como. Só a liga consegue detectar aviões feitos desse nanomaterial. E ainda vamos estar cobertos de resíduos anti-chama e a blindagem é boa. Estamos seguros pra chegar lá.
  • Entendi. Mas onde nós vamos pousar?
  • Nós não vamos, lu. Vamos ter que saltar de paraquedas
  • Você enlouqueceu, por acaso? Esqueceu que eu tenho medo de alturas?
  • Claro que não, lulu! Sua lululu!
  • Para de graça, eu não vou pular, deixa de ser maluco!
  • Olha, eu vou aplicar uma técnica em você que vai te deixar grogue e você vai perder o medo. Se não funcionar você grita que nós voltamos e pousamos em algum lugar. Tudo bem?
  • Você vai me drogar?
  • Não, o negócio não precisa de drogas não. Fica tranquila que vai dar tudo certo.

Se tinha uma coisa que eu detestava era quando o Guto aparecia com essas soluções experimentais e ainda queria que eu fosse cobaia. Mas realmente não teríamos como pousar sem passar por inspeção de militares. Acabei torcendo pra essa maluquice dele dar certo e tirar meu medo de altura.

  • Você sabe qual é a tribo, onde temos que descer?
  • Peguei com o Creed uma tribo que é provável alvo de ataque. Vamos instalar o sistema e produzir um holograma que será imediatamente transmitido pra nossa base e postado na nuvem em tempo real.
  • Então vão poder assistir ao vivo?
  • Bem, se tiver alguém naquela nuvem naquele instante, sim. Mas não fala pra ninguém, lu, senão vai comprometer nossa operação. Depois que estiver tudo gravado nós espalhamos esses dados pelo mundo. Até lá, precisamos de sigilo.
  • Tudo bem, eu entendo. Agora para de falar tanta coisa técnica que senão eu vou dormir, mon robot.

Ele começou a juntar as tralhas tecnológicas dele, e percebi que se eu não fizesse nada, ele viajaria sem levar roupa direito e teria que pedir emprestado. Anos e anos trabalhando com mentes brilhantes em projetos inovadores e ele ainda não aprendeu a fazer a própria mala! Talvez seja culpaminha por sempre arrumar pra ele...

  • Não se preocupa com roupas, lu. Tem uma base subterrânea da liga ali perto onde vamos ficar. Daí eu uso os uniformes mesmo, é mais prático.
  • Ah não, guto, você não andar atrás de mim vestido assim! Nem adianta!

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Constantino Augusto Peçanha, 2050

Nos atrasamos um pouco por causa daquela mala meticulosamente organizada e porque o Wallie parece ser um dos poucos robôs incapazes de lidar com peso. Levei um susto com alguma coisa no corredor em direção ao elevador e,por um instante, tive a impressão de que estava sonhando. Foi como quando levo aqueles sustos na cama, parecendo que estou caindo. A partir desse momento, fiquei com um nó na garganta e a horrível sensação de que algo muito ruim estava prestes a acontecer. Como de costume, comecei a pensar no que poderia dar errado, pois aí eu poderia encontrar soluções pra esses riscos e diminuir minha ansiedade.
Poderíamos ser avistados por tropas terrestres bem treinadas e munidas de detectores contrabandeados. Mas a maioria da liga nem sabe que esses detectores existem, já que sua existência ainda não foi publicada no jornal mensal. Também poderíamos ter nossa comunicação interceptada, mas Creed já tratou de tornar nossa rota digital impossível de ser rastreada.
Talvez existissem espiões nas tribos, talvez câmeras. Bem, câmeras enviando sinais à distância podem ser encontradas pelo creed!

  • Creed, na escuta?
  • Guto, você por acaso tem um amor platônico por esse Creed aí? - disse Luíza rindo de mim
  • O que? Ele é meu hacker, ué.
  • Você estava aí todo pensativo. Pensei que você iria falar alguma coisa comigo, sei lá, compartilhar um sentimento, daí você vai e chama o Creed! Pode isso, envolvimento emocional com seu hacker? Romance secreto em!
  • Hahaha! Sinto te desapontar, mas não. Só percebi que eu não tinha verificado se a tribo está sendo monitorada pelo exército.
  • Peçanha, na escuta? - ouvi pelos meus óculos
  • Me engana que eu gosto! - disse luíza
  • Pera só um minuto, lu. Fala, Creed.
  • Você perguntou sobre a monitoração ontem. Inclusive também solicitou que eu desabilitasse as câmeras no caminho como precaução, caso eles tenham algum software novo pra detectar padrões de difração de luz achar seu avião “invisível”. Está feito, as câmeras vão ser adulteradas diretamente pelo seu avião.
  • Peraí, você tava ouvindo minha conversa e alterou meu avião? Cara, as vezes eu me pergunto se é possível confiar em hackers!
  • Bem, você reparou meu sistema nervoso e me deu esse overclock porque quis, não é?
  • É, mas se você abusar eu te neuralizo de volta pro seio da sua mãe!

Ele enviou aquela velha imagem do Grumpy cat e se desconectou

  • Que é isso de neuralizar? Pesquisei e só achei referências sobre homens de preto na nuvem. Tem como apagar as memórias das pessoas?
  • É... É só uma brincadeira que temos entre nós.
  • Sei... Já estão com brincadeirinhas próprias, não é? Preciso ver esse cara pessoalmente pra ver se seriam um belo casal!
Depois de falar isso, Luíza acabou pegando no sono e eu me perdi em pensamentos. Lembrei de como conheci creed e de como tudo aquilo mudou minha carreira. E o tempo voou, como sempre acontece quando faço isso. Ele era uma das poucas pessoas que conheci na vida com disposição pra experimentar e quebrar barreiras.
E estávamos fazendo justamente isso: desafiando estados e entrando numa zona de guerra. Aquilo era crime de tantas formas diferentes, mesmo sendo justo, que nós simplesmente precisávamos levar a termo. Sim, eu estava fazendo aquilo pela Luíza, talvez pra salvar nosso casamento, mas aquela aventura era espetacular por causa das fronteiras. Era um sistema experimental de proteção do avião e outro ainda mais experimental de produção de hologramas em ambiente aberto. Isso sem falar que poderíamos simplesmente ser encontrados por soldados e nenhum sistema de reparo de tecidos nos salvaria dos tiros deles. Muita coisa poderia dar errado porque eram muitos militares e nem todas as atividades deles podiam ser monitoradas pelo Creed sozinho. Mas, pela primeira vez em anos, eu quis a aventura.
Quando finalmente peguei no sono, faltava pouco pra chegarmos, então apenas dei um cochilo e fui o primeiro a acordar, apesar de o o pouso do avião não fazer praticamente nenhum barulho. Estávamos perto da base da liga e eu reconhecia o lugar. Era perto de uma pequena aldeia que visitei com a Mônica. Quais eram as chances de eu ir parar naquele lugar mais uma vez? É difícil não acreditar nas loucuras que fiz naquelas duas semanas. Aquela mulher tem o poder de me tirar do sério!
Acabei saindo sozinho do avião e fui andando na direção da tribo. As lembranças inundavam minha mente, trazendo de volta aquela adrenalina, aquela sensação de estar vivo e poder tudo. Cada passo ainda me dava aquele medo de não conseguir dar meia volta e retomar minha vida, meu trabalho,minha família! Minha esposa que queria me transformar em alguma coisa que não entendo, meus filhos que são dessa nova geração que não entendo. Tudo aquilo que eu repetia pra mim mesmo que deveria ser o único centro das minhas atenções, mas que nunca tomou toda a minha atenção. Sempre houve uma ruptura dentro de mim, alguma parte de mim que estava viajando pelo mundo e fazendo loucuras inaceitáveis pra um pai de família. Eu queria que aquilo fosse diferente e que eu fosse uma pessoa melhor. E também queria a aventura. A ambiguidade do meu interior se refletia em cada passo que eu dava.
Quando cheguei perto da tribo, algo atingiu meu pescoço. Um dardo contendo alguma coisa que meu sangue começou a filtrar foi lançado contra mim. Meus óculos mostraram a estrutura molecular do principal componente injetado em mim. Cianureto. Alguém estava tentando realizar um assassinato limpo e silencioso. Um que Creed não detectou.
  • Peçanha, tem uma escolta na sua localidade. Cortei as comunicações dele, mas tome cuidado andando por aí. É melhor esperar... Porra, porque você saiu sozinho?!
  • Achei ele. Vou lidar com o problema. - respondi
  • Não desliga a porra do audio! Espera que eu...

Cortei nossa comunicação tirando meus óculos e andei na direção do homem, que me olhava com um tom de espanto. Enquanto eu andava, pensei que aquilo poderia ter atingido a Luíza e senti um tipo de fúria que nunca havia sentido antes. A presença dele colocava a vida dela em risco e eu o odiava por isso. O Cianureto se acumulou na minha mão, pronto pra ser eliminado mediante meu comando. Por algum motivo, o homem ficou paralisado por uns instantes, até puxar uma pistola de disparar um tiro no meu ombro. A bala atravessou minha pele e eu senti a dor, mas não parei de andar. Senti a ferida se fechando, por causa daquele maldito efeito de coceira. E ele largou a arma e começou a falar.

  • Caralho, que porra é essa!? Porra eu sonhei com isso. Acorda! Acorda!

Não sei que tipo de droga estão dando pra esses soldados, mas na hora nem me importei. Coloquei minha mão na boca dele e deixei o cianureto sair. E ele ainda engoliu! Deitou com calma no chão, como se estivesse tudo bem:

  • Vai ficar tudo bem, só tenho que acordar. Vai ficar tudo bem, só tenho que...

Ele ficou inconsciente e pus de volta meus óculos.

  • Esse soldado foi considerado desertor. Ele estava com transtorno de estresse pós-traumático e não estava nessa vila em missão. A zona está tranquila.
  • E você sabe o que aconteceu?
  • Sim. Seus pupilos filmaram tudo.

Só aí percebi que eles estavam me olhando, com expressões que pareciam misturar espanto com confusão.

  • Você invadiu os óculos deles?
  • Só do primeiro que acordou. Esses hackers da liga são amadores, cara, numa boa. Conheço meia dúzia de anonymous que conseguiriam quebrar a defesas desses óculos em minutos!

Luíza veio logo atrás, limpando os olhos e bocejando com aquela cara inchada que ela tem quando acorda. Acho que ela é a única pessoa que fica bem assim que acorda. Ou talvez eu seja a única pessoa que pensa isso.

  • O que aconteceu com esse homem? - ela perguntou
  • Tentou me envenenar. Neuralizei ele.
  • O que? - neutralizei, digo.
  • Você matou ele? Você enlouqueceu?
  • Ele estava armado e poderia ter te machucado. Eu não podia correr o risco.
  • Mas você não podia só deixá-lo inconsciente?
  • Não. Às duras penas, lá na base principal na áfrica central, aprendemos que não vale a pena tomar meias medidas. Se você vê um problema e o resolve apenas pela metade, ele volta pior. Não cabe colocar vírgulas onde é necessário um ponto final.
  • Você ficou louco? Agora acha matar pessoas uma coisa comum?
  • Ele era um soldado. Eu não ia deixar ele te ferir. O risco era grande demais.
  • E você podia se colocar em risco? Ou será que não havia risco, porque esse departamento de defesa que você sempre menciona está te treinando pra ter o instinto assassino? - Ela gritou

Eu realmente detestava quando ela gritava. Não que fosse uma coisa comum, mas também não havia necessidade. Os rapazes começaram a organizar o equipamento e tentar fingir que não estavam ouvindo nada, mas o desconforto estava em seus rostos.

  • Não havia riscos porque as armas mais comuns em guerrilha são dardos de veneno. E eu tenho um sistema de nanofiltros no meu sangue que elimina venenos.
  • E esse sangue no chão? Seu sangue também filtra balas?
  • Não, mas ele fecha feridas. E esta cicatrizando agora enquanto falamos. Daqui a uma semana, estará quase como se o tiro não tivesse acontecido.
  • O que é isso, Constantino? Sangue artificial, cérebro artificial, pele artificial! Você quer o que, viver pra sempre?
  • Não acho que isso será possível, mas, se for, porque não?
  • Não acredito nisso.

E ela lançou aquele olhar de raiva, mas que mostrava um pouco de tristeza e desgosto no fundo. Não sei que tipo de louco eu fui ao pensar que uma viagem filantrópica pro meio do nada nos traria de volta. Tudo estava se desfazendo diante de mim e meus esforços eram vãos. Eu sabia que estava fadado ao fracasso, mas amava ela demais pra simplesmente desistir. Eu tinha que ir até o fim, eu tinha que dar tudo de mim. E sentia que meu limite estava chegando.

  • Com licensa, senhor peçanha. Senhor? - falou um dos rapazes
  • Hey, oi. Desculpe, eu estava distraído. Algum problema?
  • Não, é que estamos pré-calibrando o equipamento e temos que esperar. Posso te fazer uma pergunta?
  • Sim, claro. Contanto que não seja pessoal...
  • Não, de maneira alguma. É sobre seu sistema de interface neural.
  • Bem, se você conseguir aturar o bla bla bla técnico...
  • Não precisa ser técnico não. É sobre a participação dos programadores. Ouvi falar que esse sistema só está em fase de teste por causa dos programadores, mas não consigo achar nenhum programa que tenha servido de base pra tecnologia.
  • Ah, entendo. Bem, acontece que os programadores ajudaram como cobaias e não como autores.
  • Há! Eu te falei que esse código não existia! 50 na minha mão agora – outro deles falou
  • Desculpem, mas quais são seus nomes?
  • Bem, eu sou o Ronald - respondeu o ganhador da aposta
  • Eu sou Mark – respondeu o perdedor
  • E eu sou o Patrick – falou outro que estava prestando atenção na conversa sentado na frente de um computador.
  • Bem, Ronal, Mark e Patrick, também não é o caso de vocês subestimarem a importância dos programadores nesse processo. Especialmente porque eles estão sendo essenciais na criação da interface entre computadores eletrônicos e os endocomputadores. É coisa bem complicada.
  • Sim, mas não foi um código de algum programador que tornou isso possível. - disse ronald
  • Mas foram códigos, de certa forma. Vou tentar ser sucinto sobre isso.
  • Desculpe, mas o que é sucinto? - Disse mark
  • É dizer coisas de maneira resumida, clara.
  • Ah sim, entendi.
  • Então, eu fiz uma pesquisa pra descobrir se o ato de programar era um evento linguístico que era controlado pela região de broca no cérebro e descobri que não. Na realidade, quando um programador começa a escrever seu código, ele está produzindo uma forma de linguagem não natural. Agora, até hoje os sistemas de interface cérebro-máquina não funcionaram porque a linguagem humana tem estruturas universais que são inerentemente ambíguas e confusas e que não conseguem se comunicar com códigos, que são objetivos demais. Mas os programadores mostraram que nosso cérebro é plástico o bastante pra formar uma forma completamente nova de linguagem, que é mais lógica e precisa, embora muito mais restrita pra comunicação entre pessoas. Nosso cérebro, em suma, é capaz de se comunicar diretamente com computadores através do lobo pré-frontal. E os programadores já estavam falando essas linguagens não naturais há quase um século! Então começamos a desenvolver um sistema que não interage com regiões envolvidas com a linguagem natural, mas diretamente com esse tipo de pensamento. E funcionou!
  • Há! Então os programadores são um novo passo na evolução humana! - disse Patrick
  • Eu diria que propiciaram essa evolução, mas...
  • Ok, feito. Agora basta colocarmos o equipamento na tribo.

Luíza apareceu novamente e eu não sabia o que dizer, então fiquei em silêncio. Ela chegou com dois dos nativos.

  • Eles falam um tipo de portunhol por aqui. Muitos turistas brasileiros, sabe? - ela disse num tom brando
  • Ah, eu sei.

Porque eu fui falar aquilo não sei. Mas a tentativa de encerrar o conflito que ela mostrava nos olhos desapareceu. O passado lança sombras longas...

  • Que ésto? - perguntou um dos nativos

Ele era um homem jovem, de no máximo uns trinta anos. Era bem pequeno e magro, mas parecia saudável. Estava bem adaptado ao local.

  • Essas são as luzes que vão proteger a aldeia.
  • Mas que ser luces que no brillan? Donde está lo brillo?
  • Ele fica escondido, olha só. Você ve a luz, mas ela não te toca porque você está protegido. - ela falou
  • Estedes são de brasil, certo? Que quieren aqui? No quieremos guerra.
  • Nós também não. Nos disseram que as aldeias daqui estão correndo perigo, então viemos ajudar. Vamos colocar um escudo protetor na aldeia – ela disse.
  • E enton se vão embora?
  • Sim, depois vamos embora.
  • Entonces pongan logo o escudo e se vão.

O homem obviamente não acreditou na versão que ela passou, mas sabia do risco de ter estrangeiros vagando perto da tribo. Poderíamos atrair atenção militar. Acabamos passando o dia inteiro por lá, porque os membros da aldeia não deixam robôs entrarem. Então foi uma jornada de subir em árvores e colocar receptores holográficos no topo de cabanas que parecia não terminar.

  • Você está louco, mark. Não pode ser essa a tangente. A imagem nesse canto vai borrar. - disse Patrick
  • Ah, cara, para com isso na boa. Vamos logo embora, eu quero tomar um banho e você fica vendo cada mísero detalhe!
  • Well, if at least we could get some robots to check this out... – Reclamou Ronald
  • Hey, sem falar inglês por aqui. Olhem o respeito. - disse Luiza
  • Desculpe senhora. - Respondeu mark. - Está tudo pronto então, já podemos ir.

O chefe da tribo pareceu aliviado com a nossa partida. Embora eu e Luíza tenhamos andado lado a lado, não falamos nada. Estávamos tristes, não bravos. Tudo parecia se encaminhar para um desfecho trágico. Só que eu nunca imaginei o quão trágico ele seria...

  • Certo, os sistemas estão ligados. O holograma está sendo captado processado e armazenado. Cadê o borrão naquele canto, Patrick – disse Mark em tom sarcástico
  • Gira a imagem, gênio. A nitidez está vindo do detector a 109 graus do centro. Aí, viu? Borrão! - apontou Patrick
  • Mas a imagem ainda pode ser vista. Quando foi que já conseguimos uma imagem 100% nítida de todos os ângulos fora do estúdio? - reclamou mark
  • Ok, guys, Essa discussão não vai chegar a lugar nenhum. Temos um problema com um dos roteadores no backbone e nossa conexão está lenta demais pra transmissão direta pra nuvem. Suponho que isso seja mais urgente, não? - falou Ronald
  • Ah, não não. Eu sei qual é o problema nesse roteador. Eu danifiquei um cabo por acidente. Alternem ele pra Wi-fi que a conexão fica rápida o bastante – Falei sem medir as consequências
  • Certo, está tudo no ar. Estamos transmitindo!
  • Como você danificou esse cabo, guto? - Luíza perguntou num tom de quem não quer ouvir a resposta
  • Ah, foi só um acidente, não foi nada demais.
  • Você estava fazendo o que com ela? Arrastou a cama pra cima dos cabos, foi? - ela perguntou com um tom de ressentimento que eu nunca tinha ouvido

O silêncio tomou conta do lugar e os rapazes se concentraram em corrigir erros de processamento de imagem pequenos pra se ausentarem daquele conflito. Eles pareciam querer ir embora e houve momentos em que eu também quis isso.

  • As camas são presas à parede. Elas não se move, lu... - respondi tentando encerrar o assunto

E consegui. Ela sentou na poltrona com uma taça de vinho e começou a assistir ao holograma. Não sei se ela percebeu que eu deixei aquela garrafa aqui anos antes. Compramos, mas nunca chegamos a abrir. Deitei na cama ali perto dela. Estávamos numa base subterrânea e não tinha muito pra onde ir e ficar longe dela. Estávamos no campo de visão um do outro, mas evitando o cansaço. Ela tentando se acalmar e eu tentando encontrar alguma solução pro problema. Mas não importa o quão grande seja seu esforço pra reparar os problemas do presente, o passado não volta e não muda. Se eu soubesse que as coisas seriam assim, talvez nunca tivesse vindo pra esse canto remoto. Talvez essa base nunca nem fosse construída! Mas a vida sempre toma rumos inesperados, quase sempre trágicômicos, e lá estavamos nós! Todo aquele aparato tecnológico passava uma sensação de ordem e controle, mas por dentro estávamos todos perdidos. E se eu pensava que até ali tudo estava perdido, o que veio em seguida terminou de destruir as últimas esperanças:

  • Olha, olha. Ala oeste! - afirmou Mark
  • Caralho, são soldados! Um monte deles! Estão indo na direção da tribo!

Um membro da aldeia estava voltando pra casa com peixes numa cesta e foi atingindo com um tiro na cabeça assim que entrou na zona holográfica. Os peixes caíram pelo chão e um comentário foi gravado logo em seguida: “Boa, garoto!”. Subi tão rápido levantando na cama que bati a cabeça na cama de cima e fiquei tonto por alguns instantes, sem acreditar no que estava acontecendo

  • Não! Porque eles fizeram isso?! Caralho, Guto, manda algum robô pra lá agora! - Luíza gritou com os olhos cheios d'agua
  • Cadê os robôs? - eu gritei
  • Diz o registro que eles foram confiscados pelo exército pra operações tática – disse Patrick
  • Porra, isso é roubo. Aqueles robôs são meus!

Minhas palavras convidaram o silêncio. Foi um protesto que nada fez do que demonstrar nossa impotência. E assistimos enquanto todos aqueles soldados entravam na zona holográfica, aparentemente sem perceber que estavam sendo gravados. Eram mais numerosos do que toda a aldeia junta. Não fazia sentido terem mandado tantos homens assim. Eles carregavam o homem que matei em uma maca.

  • Certo, seus índios filhos da puta. Eu não vou sair daqui até descobrir quem matou meu soldado desertor! - falou um homem que parecia ser um comandante

Um dos soldados se aproximou e sussurrou no ouvido do comandante. Mark rapidamente pôs em foco o som abafado: “Senhor, a causa de morte foi envenenamento por cianureto. Ele se matou”.

  • O senhor está me questionando, cabo? O senhor não sabe que esse índios têm zarabatanas com dardos venenosos?
  • Mas senhos, ele estava com proteção de fibra de carbono. Eles...

O comandante deu um tapa na cara do subordinado.

  • Você sabe que eles estão escondendo guerrilheiros aqui, cabo! Você ouviu o tiro. E o Messias era louco, mas ele nunca disparou uma arma sem precisar! Tem guerrilheiro aqui nessa merda e eu vou achar esse filho da puta!

O que aconteceu depois disso é difícil descrever em palavras. Eu estava assistindo de pé e caí no chão em terror. Ronald colocou um fone que cancela ruídos externos, fechou os olhos e abraçou as pernas enquanto todos os outros não conseguiam se mover. Mas ninguém pode descrever aquela cena em todos os seus detalhes. Apenas Luíza conseguiu captar ângulso certos pra formar uma espécie de curta-metragem bidimensional. Deixo, portanto, que as palavras dela falem por si só...

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Luiza Gomes Pereira Peçanha, 2050

Você já ouviu falar do termo neuralização, caro leitor? Pois é, somente aos que têm estômago forte recomendo assistir ao vídeo anexado a essa mensagem. E aos que não se importam de vomitar algumas vezes, como eu, podem acessar o holograma inteiro clicando aqui.
Pois então, vamos à definições teóricas: A neuralização é um processe de degeneração cerebral super-rápida por meio de um equipamento. Sim, existe uma arma que causa a degeneração da mente de um ser humano, o nosso exército tem essa arma e a usa indiscriminadamente. O que esse equipamento faz é induzir a morte das células cerebrais em um padrão parecido com a doença de alzheimer, causando demência irreversível e finalmente a morte. E é isso que é a guerra, caro leitor. É demência, é abominação, miséria, sofrimento...! Então se você tem estômago, continue lendo a saga do Juanito, apenas mais uma vítima da nossa “guerra pela liberdade”!
Ele estava indo na direção de seu pai até ver os soldados se aproximando. Estava feliz pelo peixe que comeria em breve. Mas ele se escondeu atrás de uma árvore, presumivelmente por perceber os soldados camuflados se aproximando. E antes que seu pai pudesse se virar pra ver os soldados, uma bala atravessou sua cabeça. O único pecado daquele homem foi pescar, aparentemente.
E Juanito correu, provavelmente como nunca correu em sua vida. Ouviu soldados gritando atrás dele e as pessoas gritando à sua frente, na direção de sua casa. Foi apenas então que ele se deu conta de que a vila estava totalmente cercada. Sem ter pra onde fugir, ele encontrou sua mãe no centro da tribo com outras mulheres e tentou chegar até ela, mas foi segurado por um soldado.
Ele era um menino de uns nove anos e bem magro, como quase todos naquela aldeia. O Soldado, com sua monstruosa armadura corporal, parecia um gigante segurando o menino enquanto ele se debatia inutilmente. Quando perceberam sua mãe gritando por ele, tiraram ela do meio das mulheres.

  • Donde está lo gerrillero!? - gritou um deles
  • No lo se, señor! Por favor, dá-me mi niño. Por dios! - a mulher gritou aos prantos
  • Deus? Vocẽ acha que Deus vai te salvar!? Não é na mãe natureza que você confia? Pois bem, vou mostrar o que um homem faz com a mãe natureza!

Ele rasgou a roupa da mulher como se fosse feita de papel enquanto ela lutava inutilmente pra chegar em seu filho. Trouxeram outra mulher diante dela e aí aconteceu a primeira neuralização.

  • Veja só o que vai acontecer com você. Isso aqui é o que chamamos de ceifador de almas!

O homem tinha um sorriso doentio no rosto e não tirou os olhos da mulher sendo neuralizada por um instante. É uma das cenas mais chocantes de se ver. Olhos virando pra cima, saliva escorrendo com espuma pela boca e um rouco som sendo emitido, como uma tentativa de gritar por socorro. Naquele momento, todos os membros da tribo começaram a gritar e três deles tentaram correr, apenas pra serem atingidos por tiros na nuca.
Mas ele não terminou a neuralização, que deveria levar a vítima à morte. Ele deixou a mulher se debatendo no chão, já completamente demente. Quem já viu uma vítima da doença da vaca louca em estava avançado sabe como é uma visão horroroza. Um ser humano reduzido a espasmos, uma alma presa a um corpo de que vegeta.

  • Cadê a porra do guerrilheiro! - gritou o comandante
  • No hay guerrillero!

Começaram a bater no menino e matar os homens da tribo. Alguns por neuralização, outros por fuzilamento e alguns poucos por espancamento. Assistindo aquilo, o terror nos olhos da mulher começaram a se transformar em algo como tristeza e desespero. Ela já não conseguia gritar e desistiu de tentar se soltar. No momento em que começaram a estruprá-la, todas as outras já estavam na mesma situação. E os homens sorriam enquanto seguravam as mulheres pros seus colegas terem sua “diversão”. E juanito viu sua mãe ser estuprada por mais de doze soldados até que o comandante se aproximou. Os olhos dela já estavam quase totalmente fechados pelos golpes que ela recebeu durante os estupros e ela mal conseguia respirar.

  • Já sabem o que fazer, rapazes!

E quando um homem veio neuralizar a mulher, aquele mesmo cabo chegou atirando contra seus companheiros. Nenhum deles se feriu, por causa das armaduras, e ele foi derrubado no chão.

  • traidor filho da puta! - gritou o comandante – Eu vou arrancar a porra do seu coro!
  • Foda-se, eu não aguento mais! Eu não vou mais assistir de camarote enquanto vocês fazem isso! Isso não é diversão, isso não é justiça e nem liberdade! Eu não me alistei pra isso, eu vou falar com...

E a bala atravessou o olho dele antes que mais uma palavra pudesse ser proferida. Os outros militares pararam por alguns instantes e então começaram a fuzilar as mulheres restantes, até que só Juanito, sua mãe e outra mulher escondida debaixo de um monte de folhas sobraram. E o comandante começou a estuprar a mulher enquanto um soldado a neuralizava. Não tenho palavras pra descrever o horror daquela cena. Parece que no começo você está assistindo um filme de terror que é tão horrível que você só quer mudar de canal. E eu assisti àquilo impotente, assim como todos nós cidadãos assistimos a essa guerra que não autorizamos impotentes até agora!
O homem ainda neuralizou Juanito, mas não o deixou vegetando. Deixou ele semi-consciente pra assistir sua mãe terminar de ser estuprada e degolada. O menino foi deixado apenas meio-vivo, vagando de um lado pro outro e sendo empurrado por soldados que o empurravam de um lado pro outro como se aquilo fosse tudo uma brincadeira. Até que o derrubaram e ele não conseguia mais se levantar. Ouvindo sons de helicópteros, os homens rapidamente entraram em formação. Um deles desenhou o símbolo dos alegados guerrilheiros no chão com spray vermelhor. Não sei até agora se aquilo foi uma mensagem pra mídia, tentando responsabilizar outras pessoas por seus atos, ou se apenas fizeram aquilo pra atingir os homens que se escondem pela mata e lutam contra essa invasão.
E depois que foram embora, a mulher saiu debaixo das folhas. Era uma senhora já idosa. Andou pelo vilarejo como se um pouco de sua alma também tivesse sido neuralizada pra fora dela. Ela olhava de um lado ao outro sem expressar nenhuma emoção. Chegou no menino, que se debatia aparentemente tentando se levantar, com toda aquela saliva saindo de sua boca. Pegou a pistola no bolso do cabo e atirou na cabeça dele. Então sentou-se no chão e ficou ali por horas e horas. Anoiteceu, o dia amanheceu e ela ainda estava lá. Até que chegou um fotógrafo, que tirou a última foto dela viva. E é aquela foto que espalharam pela internet, de uma indígena idosa dando um tiro na própria boca.

Isso tudo me pôs pra refletir sobre o que é a guerra, meus caros leitores. E vocês não sabem quantas vezes eu parei de escrever esse pequeno texto, não sabem que eu destrui dois computadores tentando escrever isso. Porque os dementes não são aqueles inocentes que foram neuralizados. O dementes somos nós, que ouvimos alguém falar que guerra pode trazer algo bom e nos calamos. Não temos alzheimer nem pakinson! Nós temos é demência de guerra!