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O bem e o mal numa manhã perdida (extra)



Constantino Augusto Peçanha - 2050

Deitei naquela cama que fazia todo aquele lugar parecer uma instalação militar e comecei a lembrar do que tinha acabado de acontecer. Toda aquela tragédia com a tribo tomou conta da minha mente até então, mas naquele momento eu só conseguia pensar nas coisas que a Luíza disse. “Como você pôde saber que uma aberração dessa existe e não fazer nada? Como você pôde ser conivente, guto? Você vai sair dessa liga. Nem volta pra casa se estiver filiado a essa porcaria!”
E ela insistiu, e ela repetiu, tentanto me tirar do silêncio. Mas minha boc anão abria, minha garganta estava travada. Nenhum som poderia sair. Mas eu reuni minhas forças, que eu nem sabia que existiam, e consegui falar uma palavra: “não”.
Ela falou mais e mais, mas eu só entendi uma frase daquilo tudo. “Eu não te aceito, não aceito o que você faz, não aceito as suas crenças e nem o seu trabalho”. E em algum momento eu teria que reagir. Eu não podia viver daquela forma pra sempre, como se estivesse preso numa cadeia cujas barras eram as expectativas dela. Eu podia amar ela mais do que todas as pessoas, mas ela me colocou diante da escolha entre eu e ela. Pra ficar com ela, eu teria que abrir mão dos meus sonhos, do meu legado, de tudo. Claro que essas coisas me custaram muito, mas passaram a me constituir. Passei anos lutando e esperando que minha luta trouxesse resultados. Anos esperando ela me aceitar e, por consequência, amar algo além dos ideais dela. Mas tudo o que restou agora foi um velho deitado num bunker super-tecnológico pensando em um milhão de coisas que poderia ter dito ou não, que poderia ter feito ou não. Um velho confrontado com um casamento de 40 anos chegando ao fim e começando a perder o rumo da vida. Minha pele podia até parecer bem mais jovem, e talvez médicos antigos me desse bem menos idade do que eu tinha, mas eu sentia como se minha alma fosse muito mais velha, muito mais desgastada.
Eu não queria levantar e quem me alimentava eram robôs. Nem sei por quanto tempo dormi até ser acordado por uma chamada emergencial. Só quem podia fazer esse tipo de chamada eram Luíza, Mônica e Creed. Por um instante, criei a fantasia de que a Luíza estava me chamando pra dizer que me aceitava, que me amava pelo que eu era e que entendia que eu poderia mudar as coisas na liga de dentro. Até pegar os óculos, no entanto, eu já estava convencido de que era Creed querendo saber se estava tudo bem. Mas, pra minha surpresa, depois de 5 anos, era Mônica. Recém reconstruída, com aquela pele branca contrastando com o cabelo que ela teimava em manter preto com uma mecha branca.
De certa forma, ela era o oposto da Luíza, que tinha o cabelo todo branco com uma mecha preta. Formas de charme diferentes, mas que exerciam um efeito hipnótico sobre mim que era bem parecido. A única forma de comparar as duas era mostrando as diferenças.
Se, por um lado, uma trazia ordem pra minha vida, um propósito claro, a outra me enlouquecia e tirava tudo do lugar. Enquanto a luíza aparecia cada vez com regras novas, que eram reformulações das mesmas regras de sempre, Mônica cada vez aparecia com uma ideia nova e espetacular. Ela tinha um Self permanente mutante, dizia que seria para sempre um novo eu.
Quando finalmente tomei coragem pra abrir a mensagem dela, as comparações desapareceram. Era como ela me fazia sentir. Como se, pelo menos por uns momentos especiais, nada mais importasse. A guerra, as mortes, o fim do meu casamento. Nada daquilo importaria naquele momento, porque ela estava de volta, talvez até pra vir me ver e me arrebatar daquele inferno.
“Tino, me diz que não é aldeia que nós visitamos! Por favor! Onde você está? Porque não atende seu telefone?”
Foi só aí que eu percebi que meu telefone estava desativado e que ela não sabia que eu tinha criado uma linha direta entre ela e eu. Ela não podia adivinhar que eu estava sempre disponível pra ouvir, pra conversar, pra companhia. Ou talvez ela nem tivesse parado pra pensar nessas bobagens tecnológicas, porque estava com algum empreendimento novo, alguma aventura espetacular nos cantos mais longínquos do planeta. Mas usei a comunicação da base pra entrar em contato.
  • Mônica, tá aí?
  • Tino! Meu Deus, onde você está? Me diz que isso não é verdade! Isso não pode ser verdade.

Ela estava chorando. E de tristeza! Nunca tinha presenciado aquele choro dela. E podia dizer isso com propriedade, porque lembrava bem claramente de todos os momentos que passei com ela. Foram poucos, e curtos demais, mas certamente mágicos. Eu não sabia bem o que dizer pra ela, mas conseguia falar. Ela tinha o dom de fazer as palavras fluirem.

  • Eu sinto muito, Mônica. Eu não pude fazer nada, sabe? Isso é culpa minha, eu devia saber!
  • Do que você tá falando? Olha, eu to chegando na vila agora e vou tirar essa história a limpo!
  • Você está aqui? Espera que eu vou te encontrar. Eu to na base.
  • Você tá aqui? Vem cá, você sabe me achar, né?
  • Sei sim, espera um pouco que já chego aí.

Eu percebi que estava a mais de 24 horas sem tomar um banho. O último que tomei foi logo que voltamos pra base, antes do monitoramento ter começado e tudo aquilo ter acontecido. Fiquei deitado aquele tempo todo e nem senti o tempo passar. Fui até o banheiro daquele lugar, que parecia coisa de ficção científica. Ele foi feito com ideias “futurísticas” daquelas que pessoas tinham no passado e que nunca aconteceram, porque o público simplesmente rejeitou. Aquele cubículo de tomar banho que pode ser brevemente descrito como um lava-jato humano foi inspirado em Isaac Azimov. EU que pedi, por simples diversão e porque era possível. E foi bem conveniente tomar aquele banho louco, com água vindo de todos os lados e secagem por ar quente e seco. Eu não queria deixar a Mônica esperando. Mais especificamente, eu não queria esperar pra vê-la, pra saber como ia a vida dela. Pra ouvir das aventuras recentes, das transformações inspiradoras. Eu não queria mais esperar pra ver ela falar com aquele sotaque único, com aqueles olhos que brilhavam como nenhum outro.
Quando saí, ela já estava na entrada da base.

  • Porque demorou tanto? - perguntou como quem não liga tanto pra resposta
  • Mônica! - exclamei como se ela nem tivesse me perguntado nada

E fui na direção dela e nos abraçamos feito dois ursos. A pressão do rosto dela contra meu coração me fez perceber como ele estava acelerado. Eu podia sentir o calor saindo pela boca dela enquanto ela chorava. Duas lágrimas escorreram pelo meu rosto, como que por milagre, e eu até tentei chorar com ela, mas as lágrimas cessaram. Imaginei que poderia ser algum defeito da minhas glândulas lacrimais, mas acabei deixando aquilo de lado. Mesmo sem chorar, eu conseguia sentir as coisas através dela.

  • É verdade, não é? - ela perguntou soluçando
  • É. Eu vi acontecer da base. Na verdade eu mesmo que fiz a transmissão acontecer.
  • Você lembra deles, não lembra? Eles que carregavam as mochilas, tino! Eles não faziam mal pra ninguém!
  • Eu sei. Eu lembro. Foi um crime horrível. Eu nunca esperei que algo assim fosse acontecer, sabe?
  • Vamos pra base? Eu to com o pé doendo e quero água. Eu quero um refúgio... - a última palavra se transformou em suspiro.

Fomos andando abraçados até a base. Ela chorou um pouco. O choro ia e vinha, até que parou por um tempo e ela começou a falar.

  • Porque você falou que é sua culpa? Você nem é militar, Tino.
  • Você viu daquela arma que usaram, o neuralizador?
  • Vi. Foi você que inventou aquilo?
  • Não. Mas eu sabia que ela existia. Inclusive mostrei pra eles o efeito que a arma tem sobre as funções cognitivas. Basicamente, eu mostrei pro departamento de defesa o poder destrutivo da arma quando não é usada pra matar.
  • Porque você fez isso?
  • Porque estava tendo muita violência na região swahili, ali na áfrica central.
  • Eu sei onde é a região Swahili, Tino. O que isso tem a ver com a arma?
  • Então, um dos membros fundadores da liga foi vítima de latrocínio. Eles queriam roubar reagentes caros. Aquele homem curou o câncer, Mônica. Ele era um gênio, sabe? Todo mundo ficou comovido com aquilo.
  • Nossa, eu não sabia disso. Mas onde a arma entra nisso?
  • Nós pensamos no que poderia assustar esses bandidos, e o ditador que comandava a região na época sugeriu rituais de roubo de alma. Enquanto todos nós achamos aquilo loucura, um físico do departamento teve a ideia dessa arma. A ideia era provocar demência em alguns desses bandidos e soltá-los, pra que as crenças religiosas dos demais os fizessem parar de atacar a liga com medo de perderem a alma. E funcionou bem, sabe? Evitou que acontecessem massacres. Por isso que eu ajudei nos testes. Estavam querendo empregar robôs de guerra pra procurar e matar esses bandidos. A neuralização surgiu como uma de intimidação, não de massacre...

Mas não foi isso que a Luíza entendeu. Pra ela, “Isso é uma arma de terrorismo, que nunca poderia ter nenhum propósito e qualquer ser humano em sã consciência deveria saber disso”.

  • Mas como isso foi parar nas mãos do exército?
  • Eu não sei. Pensei que isso era confidencial. Temos que investigar isso mais a fundo, temos que acabar com isso imediatamente e recolher esse armamento.

Ela esboçou um sorriso enquanto descíamos pela escada da base. Como ela foi diretamente pra cama maior, fui junto e ficamos ali deitados. Aquela base era uma piada, na verdade. Se você pensar bem, ela foi totalmente custeada por mim, cheia de detalhes loucos. Como aquela cama de casal, o banheiro futurístico, ou a voz “robótica” que o computador tinha. Era uma caricatura de futuro, mas ainda assim eu gostava. Trazia boas lembranças, excluindo as mais recentes.
Nós saímos do mundo por uns dias. Mesmo com outras pessoas, só nós dois existíamos e como conversamos! Milhares de palavras, mas pouquíssimas usadas ao acaso. Descobrimos tanto um sobre o outro sobre o outro naquela aventura que fiquei atônito quando ela decidiu ir pra tão longe tão cedo.

  • Desde quando você tá aqui? - ela perguntou
  • Acho que uns dois dias. Eu perdi a noção do tempo.- respondi
  • Quantas lembranças esse lugar trás, não é?
  • Coisas que 5 ou 50 anos nunca poderiam apagar, não é?
  • É. Me diz como ele morreu? Sabe aquele que eu gostava, o Juan?
  • Lembro sim. Ele se foi com um tiro na cabeça. Não teve dor.

Ela me abraçou com força eu pude sentir suas lágrimas escorrendo pelo meu pescoço. Tentei chorar, mas não veio nenhuma lágrima. Apenas fiz carinho no cabelo dela até ela pegar no sono. Naturalmente, acabei pegando no sono.

Sonhei com uma cachoeira gigante. Eu e Mônica estávamos debaixo da água como se não passasse de uma ducha. Estávamos abraçados e logo percebi que a água era nosso escudo. Enquanto estivéssemos ali naquele refúgio, nada poderia nos atingir. Era nosso cantinho do mundo, onde ninguém podia nos alcançar com julgamentos ou qualquer tipo de agressão. Senti um tipo de paz que não sentia há 5 anos. Senti amor, do tipo mais puro que existe.

E quanto acordei, ela estava olhando pra mim. Acordou antes de mim e a primeira coisa que eu vi foi seu sorriso.

  • Tava sonhando comigo, é, Tino?
  • Tava sim. Tinha uma cachoeira, e...

Ela interrompeu minha fala com um beijo, que pareceu durar uma eternidade, mas que ainda assim passou como um instante. Quando o beijo acabou, eu já mal lembrava do que tinha sonhado.

  • Não é sua culpa, sabe? Não é sua culpa que eles fizeram essa coisa horrível. Você não me fez esse mal.
  • Como você sabe?
  • Sei o que?
  • Que, lá, no fundo, eu estava me torturando pelo mal que isso causaria a você mais do que ao mal que isso causou a todas aquelas pessoas?
  • Nem sei se eu sabia, Tino. Só me ocorreu agora. Você é assim comigo.
  • Eu sou um monstro, não sou? Quer dizer, todas aquelas pessoas morreram de forma horrível e eu fiquei mal por tudo aquilo, mas na verdade o que me deixou bem triste mesmo foi imaginar como você ficaria com aquilo. Eu senti a sua dor, Mônica, porque a minha não existe. Eu não passo de um robô.
  • Não é verdade! Você é uma das pessoas mais sensíveis que conheço, tino. Você tem tanto amor pra dar, e tanta imaginação!

As vezes eu pensava se as coisas que ela falava tinham sido especificamente planejadas pra me fazer sentir paz. Se tudo era pra me fazer sentir como se ela fosse realmente aquela pessoa no mundo com quem eu poderia me abrir na certeza de que iria me aceitar e apoiar independentemente de tudo. Eu me pegava imaginando que tinha algum hacker como o Creed monitorando toda a minha vida, sabendo as coisas que eu mais queria ouvir e suspirando nos ouvidos dela. Tudo loucura, tudo paranóia. Mas a única coisa que eu queria fazer era abraçar, era beijar, amar! Se fosse tudo uma mentira, pouco me interessava a verdade. Se fosse tudo um conto de fadas, talvez tivesse chegado o momento de começar a acreditar em fantasias.

  • Eu estou noiva, sabia? - disse ela quebrando o silêncio
  • Porque fala nesse tom desanimado? - perguntou
  • Porque eu não quero mais. Não sei, tino. Eu estou enjoando dele. Sei que não faz sentido, que ele morreria por mim, que ele faz de tudo por mim. E eu estou tentando meu melhor pra ficar ali, mas não quero mais. Eu gosto de liberdade, sabe? Eu não quero passar o resto da minha vida morando em Dubai criando filhos. Já tenho uma filha e estou satisfeita.
  • Eu entendo. Você é como uma gaivota, como uma pluma que sai por aí voando com o vento. A última coisa que você precisa é de raízes, não é? A última coisa que você precisa é de algo de mantendo ali, presa no mesmo lugar, na mesma rotina. Você tem gosto por aventura, gosto pelo desconhecido. E há tanto ainda pra explorar...

Ela esboçou alguma palavra, mas desistiu de falar e só me beijou. Eu conhecia aquele beijo que ela dava respirando fundo. Não que eu soubesse exatamente o que ela sentia ou pensava nesses beijos. Mas eu sabia é que quando ela fazia aquilo, eu perdia o controle. Ela me levava embora. Me arrebatava. Fazia meus olhos se fecharem contra meus comandos e minhas mãos se moverem por conta própria. Se há algo pra dizer a respeito desses momentos, é que o medo deixa de existir. Enquanto que em algumas situações o desejo precisa ser muito grande pra ser maior que o medo, com ela os meus medos desaparecem como se nunca tivessem existido. Se ao menos ela ficasse pra sempre...!

Se ao menos eu pudesse fazer uma manhã durar uma eternidade!

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