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8 - Recordações da casa dos monstros

Flyn Pinkman - 2075

- Flyn, você tem visita! - o guarda anunciou pela porta da cela
- Diz pra ele que só falo com ele quando ele me tirar daqui. - Flyn respondeu
- É uma mulher te procurando. - guarda respondeu meio confuso
- Você é novo aqui? Diz pra ela que falo com ela quando ele me tirar daqui. E que já estou ficando impaciente.

O guarda não falou mais nada e saiu. Eram todos instruídos a não falar comigo desde o incidente em que convenci um guarda a abrir minha cela e o matei a mordidas. Fui o único Indulger efetivamente expulso do grupo por suas ações. Era brutal demais, intenso demais. Pelo menos essa foi a explicação que me forneceram.
A cela tocava a música erudita que sempre amei e a luz podia ser controlada, mas fora isso era só eu e minha mente. Era um presídio de segurança máxima com poucas pessoas trabalhando. A robótica só não substituiu tudo nas prisões por causa de um filme sobre a fuga em massa de criminosos causada por hackers de uma organização criminosa. Mas a comida era sempre a mesma e o cheiro também. Lembrete da artificialidade que o mundo tinha se tornado. Eu sonhava com a Ópera e com orquestras que nunca poderiam ser mimicados por caixas de som. Um dia jurei que nada me faria perder o fôlego e passei por torturas suficientes pra chegar a acreditar nessas próprias palavras, mas aí descobri a prisão e mudei de ideia. Perder a liberdade num mundo em que você pode trocar de continentes em minutos ou até mesmo pegar uma nave pra lua ou pra marte é como uma ferida pequena, mas inflamada. Ela vai piorando, vai te consumindo. Nem mesmo o mais forte dos homens resiste dentro de uma prisão: não é natural, ele precisa quebrar suas correntes e fugir dali. “Humanos são animais selvagens”, falei sozinho, “Não suportam coleiras e jaulas como cães”. E mesmo se animais selvagens se acostumam com suas jaulas, eu nunca se acostumaria com a minha. Aquele lugar era claustrofóbico e a cada dia eu sentia mais medo. Quanto mais o medo tomava meu coração, maior se tornava sua raiva. Ainda mais: quanto mais apertavam a camisa de força e quanto mais mm drogavam, maior se tornava seu ódio. Depois de todos os anos de existência, a psiquiatria ainda não tinha encontrado meios de “curar” monstros, então retornaram ao paradigma de prendê-los e fazer todo tipo de experimento. Que meu pai tenha permitido que eu ficasse num lugar daqueles me revoltava ainda mais.
Apesar de que eu já tinha perdido a noção do tempo e até da realidade, aquele dia de visitas era meu único alívio. Eu saia da cela assim uma vez por mês e via os outros internos, que costumavam dar shows e tentar homicídios de tempo em tempo. Ficavam, em sua maioria, presos em camisas de força, mas podiam andar por um pátio e até entrar em uma realidade virtual limitada quando bem-comportados. Os meus benefícios eram dados ao acaso como era a minha violência: eu quase sempre me comportava bem, como se espera de um doutor abastado, mas de tempos em tempos apresentava comportamento violento premeditado e sem aviso. Todos os meus ataques resultavam em morte, então a administração do “asylum” não sabia muito bem como lidar comigo. Afinal, minh última vítima foi morta enquanto eu usava a camisa de forças, de maneira que a única forma de me impedir de matar era me isolando do mundo por completo. Mas isso era uma prática ilegal, então cada vez tomavam uma decisão diferente. A ideia, segundo consta, era impedir ele de usar a constância de uma rotina pra premeditar mais um crime. Eles não sabiam como suas estratégias eram óbvias pra ele e nem interpretavam meus comentários.

- Ah, então dessa vez eu tenho minhas mãos? Senhores, senhores! Por acaso vocês realmente não sabem o que eu sou? Lobos não podem ser adestrados!!
- A frase de efeito de hoje foi fraca, em, Flyn? - comentou o diretor pelo alto-falante – a do mês passado eu até publiquei na nuvem!
- Ah, diretor, que gentileza sua se juntar a mim! Como vai sua esposa? Confio que o caroço no seio esquerdo dela já foi removido?
- Ora, precisamos mesmo começar o dia assim? Bem, é uma pena! Samuel...

Um guarda veio pelo corredor com um cassetete e me acertou inúmeras vezes na cabeça e no corpo, mas eu ria enquanto me contorcia pelo chão.

- Confio que você vai se comportar agora? - disse o diretor
- Sim, claro. Sem problemas – respondi sorrindo com gosto de sangue na boca

O guarda me guiou com empurrões pelo corredor e prisioneiros gritavam meu nome, ainda presos em suas celas. Se eu era o único solto, provavelmente seria o único no pátio. Então essa mulher que me procurava realmente fazia questão de me ver. Quem sabe ela não seria mais uma das pessoas obcecadas que poderia sair perturbada dali, rendendo algumas risadas?

- Essa aí transou o mês inteiro com o diretor por essa visita. Nem tem como você mandá-la embora – o guarda comentou
- Então ele finalmente se divorciou da esposa? Mas tudo o que eu precisava era deixar de ser preguiçoso e ela iria gozar!
- Está casado ainda, pelo que sei.
- Pelo seu tom e pelo excesso de informação, ela também transou contigo, não foi?
- Ah sim. Transou. E cara, como transou. Você quando transa com uma mulher que não é artificial acaba mudando de perspectiva sobre o que é ter prazer. Definitivamente ela sabe o que faz!
- E ela pediu pra você dizer isso?
- Sim, pediu.
- Bem, tenho que reconhecer que ela se esforçou. O diretor é um sujeitinho bem repulsivo.
- E ela é uma obra de arte, cara, puta que o pariu. Parece até que é indulger!
- haha! Você por acaso já conheceu algum indulger?
- Só você mesmo. O psicopata renegado deles.
- Bem, cadê a vadia então?
- Ta no pátio com uma mesa e duas cadeiras. Cuidado com o que falar que ela tá com um gravador.
- Ah, uma repórter! Magnífico, vou emputecer meu pai hoje! É um belo dia!

O homem deu uma risada e me deixou no pátio, ainda vazio e escuro. Eu não podia nem mesmo saber se era dia ou noite naquela cela. Ver o céu escuro me causou raiva, mas a mulher acabou mudando minha perspectiva. Sim, era uma mulher formidável, linda. E você podia perceber pelas pequenas imperfeições que era a “versão original”. Mas o que chamou a atenção mesmo foram aqueles peitos. O tamanho, o formato, o decote. Sempre fui era muito exigente nesse quesito. Lembrou da música Rex tremendae, do Jenkins: e com ela os descreveu! E ela percebeu a apreciação.

- Sim, são naturais – ela falou começando o diálogo – te mostro se você me deixar contente
- Bem, o indulgers me ensinaram uma coisa ou outra sobre deixar pessoas contentes. O que você quer?
- Informação...
- ah, sim, todo mundo quer isso hoje em dia! Bem, por onde começo? Primeiro meu pai me deixou em uma jaula com os outros chimpanzés, depois me torturou com choques elétricos...
- Não sou psiquiatra nem nada, cara. Eu quero informação relevante, não palhaçada.
- Bem direta, então? Pensei que faria mais rodeio com toda essa expressão sedutora.
- Não espero te seduzir. Eu sei com quem estou lidando!
- Ah, sim, sim! Mas dessa forma você vai acabar me seduzindo, senhorita? Sabe como adoro prostitutas?
- bem, em tese você já viveu como se fosse um, não foi?
- Tolices, tolices! De certo que você não pensa que indulgers são prostitutos...!
- Eu estava falando de você, não deles. Você não é nem nunca foi um deles, segundo declarações espalhada por aí.
- Cães filhos da puta! Querem agora negar minhas conquistas do passado!

A raiva voltou a tomar conta de mim. Depois de tudo o que eu fiz por essa civilização, por esse mundo, fui abandonado num cubículo pra apodrecer por tempo indeterminado até um lacaio da indústria da saúde mental decidir que conseguiu me curar. E agora até os indulgers, que me anunciaram como um ex-membro, negavam que eu havia sido um deles. Provavelmente com argumentos do tipo: “se fosse um de nós, nunca teria feito isso ou aquilo”. “Filhos da puta vão pagar por isso!” pensei.

- Te irritei?
- Você me condenou a essa vida? A esse maldito lugar!?
- Ah, agora sim! Bem vindo, Flyn! Estive esperando por esse momento por um bom tempo!
- E agora está no seu climáx. O que você quer de mim, rameira?
- Como eu disse, quero informação. Que porra foi aquela em New York?
- Minha cela não tem vista pra porra de uma cidade que fica a centenas de quilômetros.
- Foi um vulto, algo se movendo em velocidade supersônica muito elevada que causou severos estragos na cidade e resultou na morte de muitas pessoas.
- Ah, então finalmente funcionou?! Nunca pensei que alguém conseguiria vestir a porra do traje. Sabe, parece que pra entrar ali você precisa ser bem instável. Alguma coisa gira e se contorce dentro de você de um jeito que os caras não suportam.
- Sim, sim, as fotografias parecem indicar que se tratava de um traje. O que você sabe dele?
- Eu sei que você devia parar de falar nele se tem amor à vida. Seria uma pena que peitos tão naturalmente perfeitos fossem arrancados de você!
- Eu luto pelo que acredito, Flyn, e morro se for necessário.
- Palavras ousadas. Mas quando começam a remover seus órgãos internos sem deixar você desmaiar as coisas mudam de perspectiva!
- E esse traje faz isso?
- Ah não, impossível. Ele te torna pó, mesmo. É a arma mais perigosa que esse mundo já viu.
- E você já pilotou essa máquina?
- Sim e não.
- Como assim?
- Eu pilotei um protótipo que basicamente arrancou meu braço esquerdo por não suportar a pressão da velocidade. Mas sim, eu já entrei em hipertempo e, como pode ver, ganhei um braço novinho antes de ser internado aqui pra deixar ele quase sempre amarrado em camisa de força.
- Entendo que você é doutor em física teórica. Pode me explicar o que é o hipertempo?
- Em termos que uma jornalista entenderia? Complicado!
- Entendo mais do que você imagina!
- Bem, vou desenhar pra você, mas precisa me fazer uma promessa.
- O que quer, ver meus peitos?
- Não seja ridícula, mulher. Eu quero que você propague essa informação pelo mundo inteiro. E que responsabilize o meu pai.
- Um pedido perigoso. Que eu realizaria de qualquer maneira!
- Ah, então você não tem amor à vida mesmo! Mataram todo mundo ou algo assim?
- Não sei. Sou orfã. Provavelmente meus pais eram viciados.
- Nossa, que triste! Eu pegaria um lenço pra você se eu me importasse! Então, você precisa incluir e todas as suas publicações a seguinte frase: “K 13, agora você precisa de mim”
- Fechado. Como funciona o traje?
- Ele aproveita a propriedade do marsídio de suportar pressão temporal pra basicamente colocar um espaço entre duas camadas desse material em um estado em que o tempo passa mais devagar. Em termos simples, tudo o que o traje faz acontece milhares de vezes mais rápido pra você e tudo o que você faz acontece milhares de vezes mais pra quem está no traje. Você basicamente muda a própria fábrica da realidade dentro de um ambiente controlado e torna quem o veste virtualmente indestrutível, já que arma alguma consegue acertá-lo. É mais rápido do que qualquer jato super-sônico. Seja quem for que controla esse traje, é atualmente o dono do mundo.
- Não mesmo! Quando isso cair na mídia o seu pai já era!
- hahahaha! Que mídia, moça? Você realmente não sabe com quem está lidando, né? Acha tetas e buceta vão te salvar? Você já está morta.
- Morro mas salvo vidas, seu psicopata de merda!

O computador detectou a mudança no tom de voz dela e soou o alarme pro diretor. Supostamente as pessoas com doença mental do tipo que eu tinha têm comportamentos que causam perturbações em terceiros. Ou talvez o diretor tenha percebido a merda que fez e só queria preservar a própria vida. Fosse como fosse, rapidamente ela tinha ido embora e eu fui deixado ali no pátio. O efeito das medicações causou mais um daqueles brancos na minha memória e, quando me dei conta, o sol já brilhava no céu. Talvez alguém tenha me dado uma dose sem que eu percebesse. Mas de certo que não foi um sonho, porque despertei no pátio jogado no chão exatamente ao lado da cadeira onde estava sentado. Toda vez que isso acontecia eu se enchia de mais ódio. Contra o destino, contra a natureza, contra Deus. Contra qualquer coisa abstrata o suficiente pra ser incapaz de se justificar...
Eu não podia culpar os médicos, já que eu tinha esses apagões desde pequeno, então o problema foi que eu já nasci defeituoso e nenhuma inteligência foi capaz de me salvar. A tecnologia do Peçanha fez apenas reduzir alguns sintomas, mas foi como se, em resposta, meu cérebro tivesse amplificado meus problemas. Vivendo naquela casa de monstros, sem noção de tempo ou espaço, eu ia ficando cada vez mais insano. A verdade é que ninguém procurava mais a cura pros problemas dos “loucos violentos”. A busca ali era de duas faces: a primeira, e mais óbvia, era a busca por informações extravagantes com o objetivo de escrever livros e ganhar dinheiro; a segunda era pra fazer testes e aumentar a capacidade de identificar pessoas como nós que ainda estão soltas. Basicamente, é como se fossemos animais selvagens: nos capturam, estudam nossos instintos e usam esse conhecimento pra conseguir capturar outros. E aí preparam apresentações audio-visuais em seus livrinhos de horrores e vendem o espetáculo! Eramos animais enjaulados num circo e nosso ódio só fazia aumentar, por mais que o nosso crescente silêncio parecesse indicar o contrário.
O período fora da jaula acolchoada estava próximo, então decidi buscar na nuvem se algo do que eu falei foi publicado – se, aliás, aquela entrevista sequer aconteceu! Acessei o computador no centro da sala e busquei notícias sobre a jornalista ordenando por data. Como eu não sabia o nome dela, procurei pelo meu próprio nome e encontrei apenas uma página. Nela, encontrei uma foto da mulher e seu nome, mas não precisei deles. A notícia era definitiva: a pobre jovem morreu de um ataque no coração. O autor especulava sobre o fato de que ela queria ter contato com um psicopata famoso: teriam seus admiradores matado ela com algum veneno?
“quantos especuladores que desconfiaram do meu pai chegaram a surgir? Quanta gente ele matou?” pensei comigo mesmo

- Está se sacudindo aí no computador porque? Se apaixonou pela jornalista? - me perguntou Ernst, o diretor da prisão
- Eu to me sacudindo porque eu sou um doente mental, não soube?
- Sim, mas o que passa na sua cabeça?
- Uma pergunta.
- E qual seria essa pergunta?
- Será que meu pai recebeu meu recado?
- foi o “k 13, agora você precisa de mim?”
- Exato.
- Sim, eu o entreguei pessoalmente.
- Então você que matou a mulher?
- Ela era... Uma complicação na minha vida pessoal. Além disso, se ela saísse daqui com a informação que você deu, eu estaria morto.
- Porra, você trabalha pro meu pai?
- Não, eu trabalho pra um amigo do seu pai.
- E ninguém vai te matar por você saber o que sabe?
- Parece que não. Eu sei o meu lugar, não tenho a pretensão de entrar em conflito com os grandes. Além disso, seu pai já fez a demonstração pública do traje e já há especulações bem precisas na mídia. O dano que eu poderia causar não seria grande e eu morreria em uma questão de minutos depois de publicar a notícia. Quero comer a buceta seca da minha mulher, sabe?
- Cara, sabe que eu sempre quis saber como é que você consegue se manter casado? Porra, você droga ela ou o que? Não é possível, vocês já estão a 20 anos juntos!
- Da mesma maneira que se segurava relacionamentos no passado. Medo.
- Hahahaha! Não me surpreende que você tenha sido escalado pra tomar conta de nós! Não é muito diferente da gente, né?
- Completamente diferente, caro Flyn. Daqui a 20 minutos eu vou estar em casa bebendo vinho, ouvindo Bach e recebendo um boquete de um robô com a aparência de uma adolescente asiática enquanto você vai estar preso numa cela acolchoada, amarrado numa camisa de força e sozinho.
- Bem, nem todo mundo tem a sua sorte, né? Mas diga: algum recado do meu pai
- Ah sim, sim. Veja aqui.

Era uma equação mostrando um cálculo de energia cinética molecular na situação hipótetica do hipertempo. Mostrava o que acontecia com moléculos a 13 ºK dentro do hiper-tempo, basicamente. Mostrava a razão pela qual o Marsídio era perfeito pro hiper-tempo e, mais ainda, tinha um recado pra mim. Que tudo ali naquele lugar queimaria. E 10.000 vezes mais rápido do que eu imaginava! Só pela empolgação de ler aquela equação eu já rompo ligamentos do peitoral e dos ombros, dando lugar à minha musculatura artificial novamente. Naquela noite eu destruiria o circo dos horrores! E todas as bestas seriam libertas!
O corredor do asylum até a minha sala era longo e a minha cela era a última. Enquanto eu andava, me senti como se fosse o próprio Jesus Cristo montado em seu burro e sendo recebido com toda honra e toda a glória. Os loucos me chamavam, eles perceberam que era a primeira vez que eu sorria dentro daquele inferno em 5 anos. Sabiam que eu tinha um plano. Mesmo com toda a importância daquele momento eu ainda não ouvia música nenhuma na minha mente. Se instaurou um silêncio sombrio e pacífico na minha mente e passavam imagens da destruição que eu iria causar, me dando calafrios.
Entrei na cela, as luzes se apagaram e eu ativei todos os meus músculos. A dos excruciante parecia ter se transformado em prazer. Eu nem precisava ampliar minha força muscular: ela não seria suficiente pra abrir minha cela e não seria necessária pra pilotar o traje. Mas de, alguma maneira, ativar aquela força dentro de mim era como liberar a besta adormecida. A luz forte bateu na minha janela 15 minutos depois e eu já sabia o que estava acontecendo: era a salvação!
Senti o cheiro de queimado enquanto o robô abria um buraco diretamente na parede da minha cela e quis derrubar aquela placa de titânio com as próprias mãos, mas me controlei imaginando que meu traje usual poderia ser derrubado no mar. Aliás, pra quem não sabe, essa prisão fica numa enorme e inóspita ilha no meio do oceano pacífico.
Quando a placa caiu, no entanto meu traje usual não estava ali. O que ele enviou foi o traje de hipertempo. Ele tinha a mesma aparência do primeiro protótipo que vesti, mas tinha modificações reforçando os braços. Ele colocou uma placa bem na cabeça do traje. “prove que preciso de você. Prove que é sangue do meu sangue”.
E eu simplesmente pulei pra dentro do traje. Saltei de costas, contra a possibilidade de despencar naquele abismo e vi o traje se fechando automaticamente em volta de mim. Ele estava pré-montado e os robôs começaram a selar as camadas mais externas enquanto o sistema operacional se iniciava e se coordenava com meu endocomputador. Eu não senti medo, mas adrenalina. Naquele momento eu finalmente entendi o que meu pai pretendia me internando. Ele não estava de fato me punindo por ser vergonhoso pra família. Há centenas de anos a nossa família carrega um legado de poder e morte e nunca nos envergonhamos disso. Ele só queria que eu parasse pra lembrar o que eu sou, o que eu sempre fui. Que eu nunca poderia ter sido indulger, que eu nunca aprenderia a amar. Em 5 anos preso nesse buraco eu tive ampla oportunidade pra lembrar desse fato crucial. De certo ele soube que eu estava matando pessoas desde o começo, mas me assistiu e pensou em como lidar com a situação. Ele projetou o futuro, decidiu que eu precisava me recuperar e que essa tortura era o que eu precisava. Naquele momento, eu mostraria pra ele que era poderoso, que era um verdadeiro Pinkman!

O traje se fechou a os robôs voaram pra longe imediatamente. O hipertempo se ativou e eu assisti de olhos abertos enquanto o tempo desacelerava, as cores mudaram, o mundo escurecia de medo do meu poder! Alguém deixou o cão sair e ele pretendia soltar toda a matilha! Uma lança de marsídio nano-afiada estava agregada nas costas do traje e não foi difícil romper o lacre de tungstênio pra soltá-la e começar a brincadeira. Liguei as hélices e fui voando e cortando todo o teto do prédio. Naquela noite, a razão e a ordem artificial da sociedade não estariam protegidos da tempestade. Voltei pra minha cela com todo o cuidado pra não destruir o lugar todo. Andei até a porta e a arrombei. Quantas vezes eu não sonhei com ter aquele poder! O guarda estava parado diante da porta, assombrado com o que via. Ele provavelmente pensava que estava enlouquecendo e que aquilo não era real. O novo sistema operacional conseguia falar em hiper-tempo.

- Senhor Pinkman, temos agora a funcionalidade do pulso hiper-sônico. Deseja testá-la?
- Sim, prossiga.
- para ativá-lo, basta o senhor gritar. Seu grito será projetado adiante.

E como eu queria comemorar! Meu pai de fato queria ver minha fúria liberta. Esse pulso já estava projetado em termos teóricos e era genial. Obre de um Pinkman, evidentemente! Que ele fosse ativado por grito, no entanto, era apenas um presente do meu pai. E eu fiz questão de lançar o grito mais gutural de que eu era capaz.

- Giiiaaarrgh!!

Pude ver a vibração do som se propagando lentamente, mesmo que não pudesse ouvir mais do que um leve zumbido grave. A parede se rompeu a porta voou na direção do guarda, o esmagando contra a porta da frente. A loucura finalmente teve voz! Era hora do mundo testemunhas aquilo!
Removi minha porta e a outra, abrindo a cela do louco que ficava de frente pra mim. E andei pelo meu corredor do triunfo, libertando todos aqueles que viviam sob o impetuoso julgo da razão. Minha adrenalina fez com que eu rompesse algumas portas rápido demais, provocando pequenos incêndios que tive que rapidamente apagar. Depois de algum tempo, alguns já tinham entendido que a liberdade estava vindo e sorriam. Pareciam parados, vivendo na dimensão normal de tempo e espaço, mas sabiam que eu estava lá e me agradeceram com seus olhos. Rompi todas as celas, quebrei todas as portas e a minha presença foi como um grande terremoto. Naquele momento, eu era Deus libertando Paulos! Matei todos os funcionários do lugar, destrui todos os robôs. Deixei apenas o diretor viver, já que ele poderia se tornar um homem leal ao meu pai por esse gesto. Foi a minha forma de agradecer por aquele grandioso presente.
Saí da prisão com outro grito pra abrir as enormes portas de madeira. Ainda se podia ver pássaros fugindo em pânico. Qual não foi minha surpresa quando vi aquele enorme navio no cais. Tripulado apenas por robôs! Gritei pro céu e vi as próprias nuvens saírem do caminha da minha fúria.
Pra orientar os que ainda estariam drogados, enfiei minha lança naquele chão rochoso e desenhei uma trilha até o cair. Lá, escrevi no chão. “Fucking freedom!”


E voei, e girei, deixando minha trilha de gotas de chuva evaporadas. Naquele momento, a música voltou pro meu coração. “the world's on fire!” Abri meus braços, fechei meus olhos. Finalmente meu momento chegou.

Scream, sidney, scream!

Flyn Pinkman – 2070

Eu acordei com a raiva ancestral. Uma coisa que foi passada por muitas gerações na família e até eu, o cético, aprendi a aceitar sua validade. Assim que me desvinculei dos indulgers, também me desvinculei do mundo e naquele ponto somente tinha minha ciência e o apoio do meu pai nas pesquisas. Mas eu queria trazer à tona a raiva ancestral. Ora, já que o nome referia à ancestralidade e que nossa espécie é a mais raivosa e destrutiva que já existiu nesse planeta, decidi procurar na nuvem por algum registro de ato violento cometido pelos antepassados. De certo encontrei muitos registros detalhados, mas eu queria alguma coisa minimamente tragicômica!
Foi nesse ímpeto que acabei entrando em contato com filmes do século passado e dei de cara com um trabalho que eu tive muita dificuldade pra caracterizar. Em alguns momentos o longa metragem dava a impressão de que queria assustar garotinhas de 10 anos de idade, em outros ele parecia querer evocar algo como comédia. Você tenta avaliar o trabalho de outra época imparcialmente e considerando coisas como o contexto histórico, mas não dá. Eu assisti o filme rindo do começo ao fim. Não sei se era um filme pra adolescentes retardados, se as pessoas naquela época eram retardadas ou se era pra ser um filme de comédia.

- Flynn, ta ocupado? – perguntou Emanuel pela linha de emergência
- Porra, Emanuel, ta usando essa linha indulger comigo? – perguntei impaciente
- Essa linha é minha.
- Tá, tudo bem, o que você quer.
- Decidi entrar pro treinamento. Vou vestir a porra do traje
- Você sabe que essa porra arrancou meus dois braços, não sabe?
- Bem, os braços novos que você recebeu funcionam bem. Isso não será problema.
- Tem certeza que vai suportar a dor?
- É o que vamos descobrir!
- E você quer satisfazer a quem com essa porra? Meu pai?
- Eu quero satisfazer algo imaterial. Alguma coisa essencial que existe dentro de todos, inclusive de mim. I wanna indulge mankind’s hatred, man.
- Ah! Leu meus diários de adolescência, é? Você é um pervertido!
- Não somos todos?
- Exato! Bom treinamento, Emanuel. Faça aqueles moleques sofrerem e abrace a dor!

Emanuel se desconectou e eu não podia ficar pra trás. Abri os comentários do filme e achei apenas um.
“Um absurdo a maneira como o cinema distorcia a cultura e os seres humanos. Isso jamais aconteceria no mundo real!”
Aquele comentário me transtornou e inspirou ao mesmo tempo. Durante toda a minha vida eu ouvi que sou um absurdo distorcido pelas minhas costas e só não fui perseguido e agredido por causa do poder da minha família. Mas não há poder que te faça ser “equilibrado”. Muito pelo contrário, quanto mais poder você tem, mais liberdade tem pra ser extremo. O que esse cara falou do filme já foi dito sobre mim tantas vezes que se tornou imperativo provar o contrário.

- Computador, encontre e imprima essa fantasia pra mim em fábrica de algodão do século 20. Quero 15 cópia.

O computador rapidamente encontrou várias versões, mostrando como essa fantasia invadiu o século 21 em celebrações de fantasia. Mesmo alguns anos depois desse filme se produzido, foi satirizado por outros filmes e pela própria cultura popular. A cultura popular estava prestes a pagar. Sentiriam a raiva ancestral e veriam Sidney gritar. Eu e esse filme jamais seríamos comédia!
Tudo o que eu precisava fazer era me tornar Danny rolling vestido de Ghostface em alguma cidadezinha americana e então começar a matar adolescentes. Coisa corriqueira! Nada impossível pra um expert em computação bilionário e ocioso! Tudo o que eu precisaria é desativar o monitoramento, os robôs e, quem sabe, a própria energia elétrica!
O segredo de assustar pessoas, segundo meu tio Benjamin, reside precisamente em lhes apresentar inconstância, imprevisibilidade. Chegamos à segunda metade do século 21 e realizamos o sonho positivista. Ordem, progresso e muita putaria! Mas alguém precisava parar essa porra. Alguém precisava relembrar a humanidade de um pequeno fato: ninguém controla nada e os deuses ainda brincam com o nosso destino!

- computador, facas inoculadoras. Projeto 36, gutting knife versão 2.7 com titânio e fio artesanal.
- Sim, senhor flyn. Devo acrescentar à fila ou adiantar?
- Quantos trajes já foram feitos?
- Sete, senhor
- Então faça agora as facas.
- Sim, senhor.

Aquela impressora 3D já era velha, mas dava conta do recado muito melhor do que as outras disponíveis. Uma verdadeira beleza ver aqueles braços robóticos trabalharem de forma aparentemente aleatória e de repente apresentarem o trabalho exigido. Cheguei ao ponto em que parei de comprar coisas pra minha casa e passei a simplesmente imprimir tudo. Somente pela diversão de dizer que eu mesmo fiz tudo o que tenho. Eu até quis imprimir outra impressora, mas seria insuportável ter que montar tudo e não há robôs que saibam fazer isso por conta própria, então, desisti.

- Flyn, está disponível? – disse martha
- Puta que o pariu, to popular hoje, em? O que você quer, Stewart?
- Estou procurando Emanuel. É urgente, cara. Você sabe onde ele se meteu?
- Por acaso alguém sabe por onde Emanuel se mete. Talvez ele esteja nadando na porra do ártico!
- Ele disse da última vez que o vi que te ligaria. Ele te ligou?
- Ligou sim, Martha.
- Ele não disse pra onde ia?
- Não disse pra eu dizer onde ele estava indo. Sabe como é, né?
- Não, Flyn, isso é sério. Cadê o Emanuel?
- Garotinha, eu to ocupado. Se você ama tanto seu indulger, porque ele não te disse onde está? Pra alguém que tem assuntos com ele você me parece bem mal informada, não?
- Vai se foder, cara. Você nunca foi um indulger.
- Bem, eu também nunca fui uma putinha transando com mendigos, fui? Cada um com seus problemas, Rita!
- Ele... te contou isso?
- Quem, meu hacker? Ah, Emanuel sabe disso!? Que genial!
- Você é um merda, Flyn.
- Bem, nesse caso você bem que poderia enfrentar seus demônios e vir aqui chupar meu pau, loirinha. Seu pai ficaria tão orgulhoso!
- Deixa meu pai fora disso! Cadê o Emanuel?
- Ah, eu me esqueci de mencionar. Eu removi o cérebro do seu pai com uma colher nanoafiada e dei pro cachorro dele comer. Foi cômico seduzir o cachorro que estava com raiva de mim usando o cérebro do dono como suborno!
- Cara, um dia eu vou arrancar a porra da sua cabeça.
- Não, você vai ser uma bela cachorrinha indulger e vai vir aqui se superar. Vai amar seu inimigo e chupar o pau dele.

Ela desligou. Difícil olhar pra ela e não se lembrar da nossa história. Nós nos conhecemos através do pai dela e tivemos um relacionamento de uns 2 meses. Conturbado como qualquer coisa que envolve a mim, o relacionamento acabou com ela fazendo um escândalo numa festa do meu pai. A verdade é que ela sempre foi tão louca e danificada como eu e que até nos dávamos bem, mas que ela fez aquilo pra ficar com Emanuel. Perfeitamente compreensível, já que ele sempre foi um indulger melhor do que eu. Até eu largaria ela por ele, afinal! Foi uma relação de 4 anos, muito mais do que o aconselhado pelo conselho, e no fim das contas eu não sei se somente falhou ou se decidiram terminar porque ele virou indulger. De qualquer maneira, os separou, porque senão eles não poderiam ser indulgers eficientes...!
Depois de um tempo ela descobriu que Emanuel era meu amigo e começou com esse hábito retardado de vir me perguntar por onde ele andava sempre que sentia vontade de ter ele dentro dela pra aquecer seu útero frígido. A questão urgente dela só poderia ser a necessidade de receber o orgasmo que aparentemente só ele conseguia fornecer. Segundo ele, era uma questão circunstancial que os unia, não a habilidade dele. Eu não sei dizer se isso é verdade, porque esse cara tem talento pra ambiguidade: a circunstância pode ser simplesmente que ele sabe chupar frígidas!

- Flyn, responda a porra do telefone! – Meu pai disse na minha tela
- Quem te deixou hackear meu computador?
- Porque você não está trabalhando no software que te pedi?
- Porque eu estou de férias. Sabe o significado dessa palavra?
- Férias não sobe o nome Pinkman.
- bem, lorde Pinkman, que tal você mudar seu nome pra Sir Leagueman? Você já serve esse grupo, afinal!
- Eu comando esse grupo, Flyn. Nós seremos os donos desse mundo!
- Corrigindo, você será dono desse mundo. Eu sou só seu cachorro pra morder quando você manda e fazer programinhas em sigilo.
- Se te incomoda tanto, fique de férias então. Estou com uma nova leva de recrutas pra vestir o protótipo e espero que ao menos morram ao invés de ficarem remoendo bracinhos perdidos dentro de casas trancadas.
- Foda-se. Quer brincar? Então vamos brincar!

Desliguei a comunicação, tomei minhas facas e inseri a ricina. O traje estava pronto e a máscara atrapalhava minha visão, mas decidi seguir usando aquela mesmo pra honrar o filme.
Pra falar a verdade aquela noite foi completamente entediante. Adolescentes retardados e desprotegidos estavam sozinhos em casa. Eu quis brincar com o primeiro, mas com os outros eu decidi só fazer o que devia fazer. Era desligar a comunicação, depois os robôs, depois as trancas eletrônicas e então remover a eletricidade. Você nem precisa mais falar muita coisa: basta você remover, uma por uma, as parafernalhas tecnológicas e as pessoas entram em pânico. Criamos ferramentas pra facilitar nossas vidas e nos tornamos tão dependentes dela que viver sem é como ser uma criança pequena abandonada no meio da selva. O primeiro foi até interessante no começo. Invadi os óculos dele, que ele usava compulsivamente pra tentar fazer ligações mesmo estando sem recepção.

- Hey, quem está falando? – perguntei em tom casual
- Puta merda, graças à Deus!
- Ah, então você acredita em Deus? Que fofo!
- Quem tá falando? – ele perguntou irritado
- Você que me diga: quem tá falando?
- Que palhaçada é essa? Isso é algum tipo de trote?
- Ah, sim, sim. Eu sei um trote, quer ouvir?
- Cara, deu algum problema aqui em casa, chama ajuda pra mim. Para com essa palhaçada.
- Aí é do açougue?
- O que é um açougue?
- Porra, você estragou o meu trote. Seu filho de uma puta!

Acabei entrando na casa dele com a roupa do pânico e a reação dele foi hilária. Tirou os óculos que não pesavam nem meio quilo e começou a bater com eles na minha cabeça e gritar num tom agudo. De fato as antigas previsões estavam certas: os homens perderam sua masculinidade. E isso nada tem a ver com a homossexualidade, pelo que vi nas minhas vítimas. É uma coisa de idade: quanto mais jovem, mais afeminado é o cara. O infeliz conseguiu desmaiar de medo somente porque alguém entrou em sua casa com uma fantasia do século passado. Deprimente! Que aquilo tenha me feito rir balançou meu propósito: comecei a querer fazer tudo pra conseguir algumas risadas. Mas eu sempre fui um cara determinado, então o objetivo tinha que ser o mesmo de antes. Eu iria fazer uma piada do passado se tornar terror real e todos os que riram desse filme (e já morreram) vão pagar!
Enfiei a faca no peito do moleque e liberei 10 miligramas de ricina. Era uma coisinha pequena e frívola sem nenhuma reconstrução ou procedimento plástico. Dentro dez bilhões de habitantes, quem sentiria falta do pobre afeminado?
Conforme planejado, deixei cicatrizadores fecharem a ferida dele e ativei seu robô no local, dando a entender que a máquina salvou sua vida.
Fora esse pequeno incidente, todos os outros sete jovens reagiram da mesma maneira. Gritaram feito crianças, tentaram me estapear e correr, mas não conseguiam nem correr pela casa depois que decidi desligar também seus óculos que já não os avisava sobre obstáculos pelo caminho. Que tipo em mundo vivemos em que jovens não sabem mais fugir de um simples assassino em série?
Com todos eles a encenação foi a mesma. Facada no peito, salvos pelo robô herói que agia sob meus comandos e cicatrizados enquanto o agressor fugia. E ninguém tinha tecnologia pra detectar a porra do veneno. Há 20 anos essa tecnologia está disponível e ainda é luxo!
Voltei pra casa e hibernei em sono sem sonho por dois dias. Por algum motivo essa matança me sugava a energia. Era, de fato, a única coisa capaz de me acalmar, mas ao mesmo tempo parecia que eu mesmo morria por algum tempo depois de fazer essas coisas.
Quando despertei, descobri que formaram um grupo de apoio para os jovens “traumatizados”. Quanta solidariedade! Assisti a uma reunião e me dei conta do quão patética a nossa civilização se tornou. Todos se tornaram vítimas querendo atenção do mundo e sem nada pra dar em troca. Um mundo sem religião, mas com uma população que faria Nietzsche arrancar o bigode! Querem pecar, mas ainda querem o papai do céu pra passar a mão na cabeça. Essas pessoas mereceram a morte que tiveram!
O mais irônico de tudo foi o organizador do grupo atribuir os sintomas do meu veneno a efeitos somatizantes do trauma. Até mesmo as doenças se tornaram apenas problemas psicológicos, tamanha a previsibilidade do mundo contemporâneo. Quem pensaria que um veneno usado há cem anos estaria matando adolescentes medíocres no meio do nada? Até que perceberam depois que o segundo morreu e a cidade realmente entrou em toque de recolher. Aquilo só me inspirou.

- Flyn, tenho um presentinho pra você! – Martha falou
- Porra, Emanuel te passou a ligação direta comigo?
- Não, eu tenho amigos. Acessa o vídeo! Boas festas!

Eu nem sabia, mas estávamos em época de natal. Abri o arquivo que ela me mandou e era um vídeo bidimensional de uma animação 3D. A visão congelou o meu corpo. Eu queria parar de assistir, mas nem meus olhos se moviam. Era um homem correndo com os braços abertos e se chocando contra dois pilares de marsídio. Os braços se separaram do corpo e ele se debateu no chão por alguns segundos sem nenhuma forma de cicatrização. Era eu, dentro daquela merda de traje. Perdi os dois braços e a máquina não desligava. Vi minha vida diante dos meus olhos como quando uns moleques mais velhos queimaram meu rosto num motor de caminhão quando eu era criança. Só que dessa vez foi meu próprio pai que se aproveitou da minha resistência à dor pra me colocar diante da morte.
Eu caí no chão da minha sala e comecei a convulsionar e tive um daqueles malditos lapsos de tempo. Os robôs me seguraram pelo que vi no vídeo, e fiquei me debatendo por um dia inteiro no chão da sala. Limparam minha urina, minha saliva e minha merda. Todo esse maldito avanço e ninguém sabia dizer que porcaria de doença é essa que eu tenho. Bem que eu mereci esse ataque da Martha, depois de confessar o assassinato do pai dela. Mas naquele ponto até o idiota do Peçanha já tinha desistido de me curar e eu não estava com nem um pouco de disposição pra conseguir o conhecimento necessário pra começar a fazer isso por mim mesmo.
Quando acordei, a cidade estava em alerta. Casas trancadas, robôs com sistemas de segurança mais avançados, trancas mecânicas nas portas. E, acredite se quiser, estavam treinando crianças pra correr em ambientes domésticos e encontrar abrigo! Pessoas estavam sendo vacinadas contra minha velha toxina e pensavam realmente que poderiam se defender de mim! Assistir aquilo da minha casa era tão hilário quando ver abelha tentando aplicar ferrão em robôs de crianças destruidoras. Eles vão destruir o ninho, não há nada que os insetos possam fazer, mas eles reagem, porque é tudo o que sabem fazer!
Os meus insetinhos estavam me convidando ao massacre com essas defesas fúteis!
Computador faça a haste pra encaixe da minha lâmina de marsídio. Leia a lâmina. Eu adorava dar comandos na ordem contrária pra confundir os computadores e amava o fato de que você pode fazer isso com esse algoritmo caótico que fizeram na liga.
Pela primeira vez o modelo impresso falhou e a haste não encaixou na lâmina. Tive que fazer medidas manualmente e construir o modelo tridimensional pra me armar. A espada ficou elegante com o fio nanométrico. Pronta pra cortar através do concreto dessas casas ridículas.
Eram casas bem separadas umas das outras, como somente em lugares isolados como aquele permitiam. Tinha árvores reais espalhadas por campos reais. Um disparate numa civilização onde praticamente tudo já havia se tornado artificial e controlado. Era literalmente mato que cresceu por meio de sucessão ecológica! Perfeito pras minhas exibições.
Minha primeira vítima era a mãe do desmaiado. Estava em estado de choque porque sua cria morreu, removendo sua razão de viver. Ou talvez ela simplesmente nunca tivesse tido contato com alguém que posteriormente morreu e esperasse que seu filhote frívolo vivesse pra sempre! Fosse como fosse, parecia imperativo reintroduzir ao mundo a morte. Por incrível que pareça, a perda da noção de finitude estava removendo toda a paixão do mundo!
Bem, decidi ativar meus músculos artificiais e causar estrago!
Qual não foi minha surpresa quando descobri que o nome dela era Sidney!
Aquela maldita dor de cabeça voltou e perdi o controle do lado esquerdo do meu corpo. Ativei o controle artificial dos membros, mas segui com aquela velha sensação de meu braço e minha perna tinham sido removidos, arrancados. E eu removi a tontura, mas mesmo assim continuei sentindo como se não fosse eu mesmo. Há coisas que tecnologia nenhuma resolve. Na tentativa de curar os sintomas da doença mental, acabamos por apenas ocultá-la. Pessoas como eu, diagnosticadas com uma doença pra cada médico, se beneficiam desses tratamentos porque podem ter vidas relativamente normais e se desenvolver cognitivamente. Mas a eterna sensação de que em boa parte do tempo você não é você, mas um artefato tecnológico, já me motivou a simplesmente deixar meu corpo convulsionando no chão. Em momentos quietos eu me perguntei se esse ódio infinito que parece brotar de dentro de mim é fruto das tradições de família ou se é porque tenho genes que me levaram a ser assim. No fim das contas percebi que as duas explicações são perfeitamente compatíveis e simplesmente aceitei quem sou.
Ela estava com um homem pequeno e gordo. Logo que eu ouvi sua voz, percebi que se tratava do pai da minha vítima. Um homem frívolo como o filho, chorando mais do que a própria mulher. Esses arranjos familiares modernos parecem cada vez mais estranhos pra mim. As únicas famílias que parecem funcionar são entre amigos que nunca sequer se tocaram, porque vínculos românticos já não duram o bastante pras pessoas sequer considerarem ter filhos. De fato, a mais nova forma de família é entre homossexuais do sexo oposto, que chegam a morar juntos como se fosse um casal clássico, mas nunca se tocam. A humanidade sempre acaba encontrando um jeito de seguir se propagando como a praga que é, mesmo que seja de maneiras cada vez mais bizarras.
Contra a homossexualidade eu nunca tive nenhum problema. Afinal, isso seria hipocrisia, dado que meus melhores relacionamentos foram com homens. Mas se tem uma coisa que me dá raiva é homem com comportamento frívolo, frágil. O que os gregos atribuíam às mulheres. Eu tive que começar por ele.
Apaguei todas as luzes, desliguei a comunicação e comecei a correr em torno da casa. As pancadas que eu dava nas árvores começou a chamar atenção dos dois e rapidamente Sidney saiu de casa com um rifle de assalto. Minha surpresa foi grande quando ela me rastreou e me atingiu com um tiro na cabeça que me derrubou desorientado no chão. Desativou o reparo do meu cérebro e perdi o controle dos membros esquerdos. Os tiros começaram a destruir toda a minha roupa e ela parecia não perceber que eu estava sob proteção pesada demais pra ser atingido por uma arma daquele porte. Ela gritava enquanto sua arma destruía minha fantasia e eu me arrastava pro refúgio da escuridão. Assim que meu cérebro se recuperou e minha crise acabou eu lancei uma granada sonífera e o jato de gás no rosto a derrubou instantaneamente. Uma cidadã comum, impotente diante dos milhares truques tecnológicos da elite intelectual do mundo.
E o gordinho logo apareceu berrando e correndo na direção da amiga/baby mama. Quando me viu, no entanto, escorregou e caiu no chão. O infeliz bateu de cabeça numa mesinha e desmaiou sozinho. Essa foi uma das razões porque eu passei tanto tempo sem caçar e matar pessoas. Há uns trinta anos atrás você ainda encontrava presas dignas que conseguiam fugir e lutar. Presas como essa Sidney eram coisa comum. Mas a frivolidade tomou conta desse mundo. Estamos seguros demais, acomodados demais. Perdendo cada vez mais o contato com nossas origens caçadoras e assassinas. Como os próprios cães, que foram adestrados através dos milênios para se tornarem dóceis, a maioria das pessoas aceitou esse adestramento frívolo ao ponto de um homem se tornar aquilo que eu via diante de mim.
Coloquei o homem no ombro puxei Sidney pelo cabelo até o Carvalho do quintal dos fundos.  Dando a volta na casa, percebi como ela era velha. Devia ter uns cem anos de idade. Afinal, com uma casa daquele tamanho eles deveriam ricos se fosse uma coisa nova. A tinta nova escondia a madeira podre abaixo. Uma estrutura condenada pelo progresso.
O carvalho era mais novo do que a casa, mas nem por isso deixava de ser velho. Fosse como fosse, Era forte o bastante pra minha brincadeira. Ele tinha cicatrizadores, mas eram antigos, daqueles bem burros que chegavam a matar pessoas. Deitei ele na grama bem na base da árvore e abri um buraco cirurgicamente limpo  na sua barriga, passando camada por camada até chegar ao seu intestino delgado. Eu precisaria de uns 5 metros, então foi o que consegui. O intestino do homem era absurdamente grande, como se a natureza o estivesse obrigando a ser obeso como era. Então usei os próprios cicatrizadores dele pra fechar o que sobrou de tubo digestivo, Deixando o homem com um tubo digestivo minúsculo, mas teoricamente funcional. Os outros órgãos ficaram soltos por uns instantes, mas logo o excesso de gordura tratou de preencher o espaço recém-liberado e a cicatriz cirúrgica foi fechada. Encontrei uma mangueira e joguei agua gelada no rosto daquele bípede desprezível até ele despertar, rapidamente retomando seu pânico juvenil. Mas ele já não conseguia se levantar. Ainda estava se recuperando de sua recente “cirurgia”. Lancei sobre ele um dardo com 10 miligramas de nicotina e ele ficou ainda mais desorientado, embora tenha diminuído seus sinais de medo. Nada mais divertido do que ativar a região responsável pela sensação de “recompensa” do cérebro logo antes de matar uma pessoa: mostra a futilidade e irrealidade das alegrias da vida.
Com seu intestino cheio nas mãos, apertei a musculatura lisa e produzi peristaltismo externo, liberando aquele bolo alimentar fétido na boca dele, porque meu objetivo não era roubar comida. Ele vomitou uma mistura de suco gástrico, sangue e suco de maçã: fiz questão de fazer a análise nanoquímica daquilo. Quando o tubo estava limpo, preparei meu nó de forca e subi na árvore com um salto. Ainda sobrava um tubo anti-asma de nanocelulose no meu compartimento traseiro, então logo inseri ele naquele verme pra me certificar de que ele não seria sufocado. E certamente, com o peso que tinha, ele já tinha instalado sistemas facilitadores de circulação sanguínea, de maneira que não tinha como ele morrer rápido. Amarrei e preguei o intestino em um ramo grande enquanto ele chorava.

- Por favor, pelo amor de Deus! O que eu fiz pra merecer isso?
- Você nasceu, porco, e polui o mundo com sua existência.

Logo depois de fazer isso, meu chute o derrubou, impedindo que ele seguisse implorando. Ele tossia e se debatia em pleno, possivelmente na esperança de quebrar o galho, mas era grosso demais até pra alguém com o peso dele. Sidney já estava próxima de despertar, embora estivesse bem longe de se livrar da desorientação que aquele tranquilizante causa. Se debatia em algum tipo de pesadelo, então decidi acordá-la com alguns tapas na cara pra que ela pudesse ver o espetáculo. Acordando, ela viu o homem se debatendo, a cada segundo menos disposto. A vida estava se esvaindo aos poucos, já que menos sangue chegava até o cérebro e os neurônios iam morrendo aos poucos. Daquele jeito ele levaria meia hora pra morrer porque a tecnologia da sua corrente sanguínea impedia a obstrução de veias e artérias e meu aparelho de asma impedia que ele se sufocasse. Era um dano constante, irreversível e fatal.
Sidney estava deitada de bruços e eu estava sentado sobre suas costas assistindo o espetáculo. “como seria”, imaginei, “se ela o salvasse agora?” De certo ele já estaria levemente demenciado. Ela ia se fortificando a cada minuto enquanto a luta ia deixando os olhos de seu companheiro. A partir daquele dia, ela teria que associar seu fortalecimento e recuperação à morte de seu “amor”, pai de sua cria morta. Sozinha no mundo e sem perspectiva, aquela mulher sofreria mais que seu moribundo marido. Ponderei, por um instante, não mata-la.

- Seu... Filho de uma puta... – ela disse
- Oh, já ganhou força pra falar, doce?

Virei ela de barriga pra cima e  vi suas lágrimas de ódio escorrendo pelo rosto. Limpei as lágrimas enquanto ela passava as mãos pelo corpo. Encontrou uma arma e, por incrível que pareça, conseguiu dar dois tiros no meu peito antes de a arma cair de suas mãos. Mas ela sabia que aquela pistola não tinha como me ferir.

- Eu vou te matar. Um dia eu vou ter a sua cabeça...

Eu não conseguia parar de rir. O cara parecia ser capaz apenas de pequenos espasmos e ela alternava entre olhar pra mim e olhar pra ele. Num instante ela pareceu ter um insight e pegou algo no bolso direito da calça. Uma injeção de adrenalina! Que tipo de civil carrega algo assim no bolso? Não pude resistir. Tomei a injeção dela e injetei em seu coração. Ela respirou fundo e rapidamente se soltou de mim. Correu na direção de seu amigo, que naquele ponto já estava morto. Seu abraço e seu choro chegaram a me comover e pela primeira vez em muito tempo eu me senti vivo. Mas já era hora de dar fim à brincadeira e matar a cadela. Segurei seus cabelos negros e a puxei pra trás, mas ela se debateu e lutou. Socos, chutes e até mordidas na minha roupa. A mulher simplesmente nunca parava de me enfrentar, não importando o quão desesperadora fosse a situação. Seus gritos ecoavam pelo campo. Quando finalmente levantei minha espada pra remover sua cabeça, meu pai apareceu.

- Então é assim, vai desrespeitar a sua mãe assim? – ele disse
- O que... O que você tá fazendo aqui?
- Pensa que eu não sei o que você anda fazendo, geniozinho da computação? Eu te conheço. Você ficou traumatizadinho de novo e agora quer desrespeitar a sua mãe.
- Isso não tem nada a ver com ela!
- Não, claro, porque ela não foi decapitada, né? Pensa que não sei quantas mulheres você já matou assim?
- Isso não tem nada a ver com ela, você não sabe de nada.

E foi por aí que o diálogo acabou. Ele lançou uma esfera estranha na minha cabeça e eu ativei a defesa contra neuralização, mas ela não fez mais do que abrir meus olhos e mostrar meu braços sendo arrancado dentro daquele traje maldito. E quando eu berrei o vídeo se repetiu, dessa vez em câmera lenta. Eu podia ver as pequenas fibras de musculo sendo rompidas, podia ver minha dor agonizante. Caí no chão em terror e gritei até ficar inconsciente. Quando acordei, já estava naquele maldito hospício com uma camisa de força e paredes acolchoadas.
Alguém deixou a tela que ficava no teto da sala com um pequeno vídeo que eu poderia comandar que fosse executado. Era o rosto do meu pai em uma conferência midiática e tinha só alguns segundos.


“A ciência é justa, e ela deve sempre ser imparcial. Não há como negar que meu filho é um psicopata. Embora no meu coração eu acredite que ele possa um dia ser curado, é irracional que ele seja livre. Que fique claro hoje que nenhuma emoção ou fraqueza ou preconceito deve regular nosso mundo. Hoje eu abro mão da minha família pelo bem do mundo.”