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3 - Hassen Geboren


Emanuel Pereira Peçanha, Outubro de 2075

Já houve o tempo, anos atrás, quando fiz as seguintes perguntas pra mim mesmo: “Como é que cheguei até esse ponto?” ou “Como posso ter ido tão longe com isso tudo?”. Como quando coloquei aquela tatuagem no peito e desapareci pelo mundo pela primeira vez. Naquele momento, enquanto eu vestia camada sobre camada daquele traje monstruoso, apenas uma pergunta me passou pela mente: “Como eu posso ter esperado tanto pra chegar até aqui?”
Sim, era completa loucura. Até monstruoso, dependendo da sua sensibilidade moral. Mas não espero, é claro, que uma pessoa com sensibilidade moral excessiva entenda esse tipo de permissividade. O computador me dava instruções como se eu não tivesse praticado dezenas de vezes tudo aquilo. Aquele Walter com todas as suas medidas redundantes de segurança, querendo garantir que todos os seus planos dessem certo. Mas eu segui os mandamentos e realizei todas as etapas conforme o computador orientava até que, duas horas dempois, eu me tornei um monstro. Aquele apartamento enorme continha apenas o equipamento e a pasta nutritiva que eu deveria comer. Eles pensaram em tudo.
O traje só seria ativado sob comando remoto, é claro, porque aparentemente tenho uma personalidade instável demais pra que esse controle seja posto em minhas mãos, então decidi dar uma olhada nos meus alvos antes do ataque. Aquilo abalaria a política do mundo inteiro e só a ideia do caos que eu estava prestes a criar enchia meu peito de fogo. As nuvens não carregariam meu nome, eu não teria meu lugar na história, mas morreria sabendo que eu a fiz com as minhas próprias mãos. Além disso, como todas as câmeras são destruídas em hipertempo, eu seria a primeira e única pessoa a ver o mundo em real slow-motion. Os líderes da américa do norte começaram seu discurso e meu coração acelerou. Eu sabia que o ataque deveria ser no meio daquele discurso: a qualquer momento eu poderia entrar em hiper-tempo. O sinal estava muito fraco, então liguei apenas o áudio do broadcasting:

A comunidade global está em alerta. Nós sabemos que a ciência, quando feita sem ética, gera desastres. Mas os líderes que nos precederam foram tímidos diante do avanço dessa liga de cientistas. Hoje temos relatórios de que as alterações climáticas que eles produziram no planeta podem ter causado danos irreversíveis ao equilíbrio geológico do planeta, e sabemos também que inúmeras espécies animais foram extintas devido às ações deles. A liga não é sustentável!

A plateia gritou com euforia. Tomaram as ruas em protestos quando descobriram que estava sendo produzida a tecnologia de hipertempo e alguns chimpanzés foram carbonizados junto com as instalações e os robôs que as operavam. Começou um boato de que a liga brinca de Deus e que o tempo não é de domínio do homem pra que ele alterar. A histeria em massa, aparentemente, também acometeu esses líderes, que quebraram acordos com a liga e tentaram dar passos maiores do que as próprias pernas.

Não impedimos esse cientistas sociopatas e o que eles fizeram? Criaram a neuralização, fizeram experimentos sem consentimento com seres humanos e foram responsáveis por milhares de mortes! E agora, depois da pretensão de controlar a vida e o planeta, querem também controlar o tempo! Especialistas afirmam que, se eles conseguirem aperfeiçoar esse tipo de tecnologia monstruosa, tudo o que entendemos por física pode ser subvertido e toda a vida na terra pode ser extinta! Nós viemos aqui dizer basta! Não vamos ser intimidados por terroristas! Nós vamos...”

E o hipertempo veio, estranhamente inesperado. Acabei entretido com o discurso do político, que foi estranhamente coerente, embora tão ingênuo.

Tudo em minha volta mudou completamente e faltam palavras pra descrever a experiência. Todos os meus aparatos de comunicação perderam seu sinal e o apartamento escureceu consideravelmente, apesar de aquela ser uma manhã ensolarada e todas as luzes estarem acesas. Quando me ergui com o traje, pude sentir o chão de concreto esfarelando como se fosse areia da praia sobre todas aquelas camadas. Olhei em volta e descobri um homem com uma pistola na mão olhando pra mim com espanto.
Ele parecia uma daquelas fotografias holográficas de anúncios de filme de terror, tamanho era o medo que ele mostrava. Não pude perceber nenhum movimento. Uma estátua de carne que pretendia salvar o dia. Mas esse dia não poderia ser salvo, aparentemente, porque aquela arma não podia causar nenhum tipo de dano no traje, que é capaz de resistir a condições extremas.
Encostei na arma e ela soltou algo parecido com faíscas, mas que tinham um brilho tão fraco que chegavam a ser macabras. Na realidade, pensando bem, tudo estava sombrio. Até as lâmpadas acesas do lugar pareciam ter passado por algum tipo de processamento de imagem que lhes reduzia o brilho.
Pressionei a arma com as duas mãos e ela se desfez como uma pedra entre duas chapas de aço. Eu gostaria de ver a reação daquele super-herói depois de ver aquele traje de três metros de altura simplesmente desaparecer e sua arma virando pó. A mão dele provavelmente também seria carbonizada no processo. Mas era óbvio que eu não podia deixar ele vivo e que ainda muitas pessoas no mundo enlouqueceriam com as minhas ações. Então eu apenas dei um tapa no rosto dele. Vi aquelas faíscas sombrias paradas em pleno ar e aquele rosto completamente desfeito. Alguns pedaços de ossos mantiveram tamanhos consideráveis, mas a pele parecia areia em pleno ar. Eis aí o preço do heroísmo!
Eu tinha que quebrar aquela velha parede de tijolos, mas decidi fazer uma loucura. Ao invés de usar as superfícies externa da luva e do braços que foram projetada pra isso, pulei de costas.
O traje tinha aqueles dispositivos de neuralização super resistentes presos na parte traseira, então tive que removê-los, abraça-los e pular. Foi a sensação mais inexplicável da minha vida. Pela primeira vez eu ouvi algum som, mas sinceramente eu não consegui identificar sua origem. Foi bem grave, até parecia com uma explosão, mas eu sabia que som é um fenômeno dependente do tempo, como praticamente tudo no mundo sensorial. Poderia ter sido o som do vidro quebrando.
A parede se quebrou como se fosse um daqueles velhos castelos de cartas, que admiram pelo simples fato de se manterem de pé. Minha concepção de matéria ficou abalada e tive um leve momento de reflexão psicodélica. Tudo aquilo que consideramos “concreto”, na verdade não passa de um castelinho de cartas pronto pra esfarelar! Quando a parede era apenas pó em volta de mim, guardei um dos neuralizadores, que mais parecia uma lança depois que foi solto do traje, e coloquei os outros dois em cada mão. Fechei os olhos, abri meus braços e fiquei ali por uns dois minutos flutuando. Se alguma câmera minimamente eficiente estivesse filmando aquele local, poderiam aplicar o slow-motion e me ver com minhas “lanças”. Não havia gravidade no mundo que fosse capaz de ficar entre eu e a glória! Esse pode ter sido o momento mais vaidoso de toda a minha vida. Mas eu não pude resistir. Logo eu me vi em rota de colisão com outro prédio e percebi que o aquecedor do meu traje estava trabalhando dobrado. Isso tinha sido previsto: o calor é dependente do tempo. O ar ali era extremamente frio, pois as moléculas mal vibravam. Então abri meus olhos e vi o sol. Na realidade, inicialmente eu não o reconheci!
Um pontinho de luz tímido que mal dava conta de iluminar aquela manhã escura. Depois que minha brincadeira estava concluída, me voltei pra missão. Acendi aquele holofote absurdo que fica acima do capacete do traje e vi a luz se movendo. Digam que é impossível o quanto quiserem, mas eu vi a luz saindo, como se fosse um daqueles velhos efeitos especiais. Foi rápido, é claro, mas ver aquilo me pôs em um estado de euforia indescritível.
Liguei as hélices traseiras pra reduzir a força do impacto com o outro prédio, mas o que acabou acontecendo foi que eu flutuei de volta pro prédio inicial. Parecia uma criança aprendendo a andar e cambaleando!
Quando estabilizei minha velocidade, desconsiderei a ordem do Walter, de que os neuralizadores deveriam permanecer intactos, e usei a hastes deles como ganchos pra me puxar pra baixo. Acabou que, novamente, perdi o controle do meu movimento, pois comecei a cair rápido demais. Mesmo as partes da parede que minhas lanças não tocavam começaram a virar pó e percebi que eu estava me movendo rápido demais. Minha hélice controlou a queda, mas causou uma linha de destruição no prédio. Foi como um rastro sendo formado, só que ele aparecia antes de eu passar pelo local. Mesmo achando que estava lento, quando eu caí no chão, o asfalto afundou e por um momento pareceu que ele estava prestes a me engolir como se fosse areia movediça. Mas finalmente eu estava com o pé no chão.
Ao invés de ir na direção dos meus alvos, não resisti e comecei a brincar com a luz. Aquele era o melhor brinquedo que poderiam ter me dado e eu não passo de uma criança grande. Dava pra perceber um tímido atraso entre meu movimento e a luz do holofote. Passei quase um minuto somente movendo o traje e no fim das contas isso foi bom, porque diminuiu a carga do aquecedor, já que o ar em volta de mim começou a esquentar por radiação.
A multidão de estátuas era grande demais. Primeiro eu pensei em saltar sobre ela, mas qual seria o drama disso? Eu não tinha instruções sobre como proceder nessa situação, então decidi brincar de boliche. E foi completamente fascinante.
Tentei correr, mas perdi o equilíbrio por um instante. Mesmo com toda a leitura e todo o treinamento em realidade virtual, é difícil se acostumar com o fato de que o chão deixou de ser firme. Eu acelerei devagar, fazendo buracos pela rua, até que consegui alcançar uma velocidade considerável e comecei a desintegrar minhas primeiras estátuas com os braços abertos. Comecei a contar e falar sozinho:

- Minha nossa, ninguém para esse furacão! É um, é dois, cinco, quinze, ele é incontrolável!

É fácil esquecer que você está matando pessoas numa situação dessas. Por um instante eu me senti como se estivesse ainda em realidade virtual e que aquelas pessoas nem mesmo existiam. Mas a verdade é que eu não me importava com o destino delas. Tudo o que importava era meu brinquedo novo e toda a fantástica realidade que ele me trazia. Todas as possibilidades de aprendizado, de destruição, de prazer. Eu simplesmente precisava desativar todos os mecanismos de controle remoto daquele máquina. Como aceitar que aquele idiota do Walter controle essa máquina se ele nem é capaz de passar pelos mais básicos testes em realidade virtual?
O covarde viu que de dez voluntários eu fui o único que sobreviveu e terminou o treinamento, e logo concluiu que o lugar dele era num laboratório inventando coisas que ele nunca poderia usar. É a diferença entre o astrônomo e o astronauta! Ou pelo menos era. Quando eu cheguei no meio da multidão, minha velocidade era tanta que eu nem sentia mais as colisões. Tudo o que pude perceber foi uma dor excruciante que começou na altura do meu coração e logo se espalhou pelo meu corpo inteiro. Era como se eu mesmo estivesse em processo de desintegração, meu corpo se desfazendo de dentro pra fora. Mas eu já tinha sentido pior em simulação e não parei. Com o tempo, me acostumei com a dor, mas isso certamente tirou um pouco da diversão da coisa toda. Bem antes de chegar até os líderes, acionei a hélice, que deve ter matado mais gente que minha brincadeira de boliche, e tive um insight pra aprimorar o traje. Ele precisava de uma superfície elástica na região do torso e isso possivelmente reduziria a fricção e, quem sabe, amenizaria aquela dor. Já queria levar o brinquedo pra garagem e começar a fazer alterações. Uma pena que eu não podia simplesmente levar tudo embora! Parei diante do palanque que eles estavam usando. Estava bem em frente de um imenso holograma deles mesmos que mostrava apenas o tamanho da pretensão daqueles imbecis.
Subi bem lentamente, pois a estrutura precisava se manter inteira, já que a neuralização aconteceria em tempo real. Ativei as lanças e posicionei o campo de neuralização sobre a cabeça de cada um deles. De onde eu via, ficaram parecendo mulheres de antigamente em um salão de beleza com aquela estufa estranha realizando algum tipo de tratamento estético. A neuralização foi ativada, mas obviamente demoraria tempo demais, então saí lentamente do palanque. Devo ter passado uns 5 minutos fazendo apenas isso e notei que realmente a estrutura sofreu poucos danos. Não que eu possa dizer o mesmo das outras pessoas que estavam ali em cima, como os seguranças.

No caminho pro mar eu já não queria sentir aquela dor insuportável, que somente então estava começando a diminuir. Então, mesmo sem saber ao certo a causa da dor, decidi saltar sobre a multidão em direção à praia de Manhatan. Quebrei algumas estruturas no caminho, mas percebi que impactos constantes me incomodavam mais do que impactos mais intensos e rápidos. Rapidamente eu cheguei na agua, pois já conseguia usar a hélice pra controlar o voo. Mas a agua parecia não me tocar. Pousei lentamente e encostei o pé no chão com todo o cuidado, mas consegui apenas afundar a areia e afastar a agua em volta. Talvez os materiais mudem de propriedade quando submetidos ao hipertempo, então as nano-fibras se tornaram hidrofóbicas. Ou talvez eu só precisasse esperar. Mas eu já não tinha tempo a perder. Meu limite era de 30 minutos e uns vinte e poucos já tinham passado. Até quando você subverte as leis do mundo físico, e desacelera o tempo, fazer algo fascinante o faz passar depressa demais. Voei pro alto mar e mergulhei. Eu vi o mar se abrindo na minha frente e a agua subindo. Senti o gosto da divindade, como se eu fosse completamente indestrutível e nem mesmo a fúria dos mares pudesse me engolir. Alguns minutos depois, percebi as coisas em voltade mim acelerarem lentamente. Tudo foi ficando mais claro e a dor foi diminuindo até não ser mais perceptível. Meu rastro desapareceu e o mar fechouem volta de mim, mas passaram-se alguns minutos até eu desacelerar completamente. Minha velocidade era absurda e eu estava quase no meio do oceano atlântico em pouco mais de 5 minutos. Foi sinceramente o melhor dia da minha vida e eu não suportava a ideia de que eu poderia nunca mais vestir aquele traje. Antes de entrar no submarino e começar toda a bateria de exames eu já estava decidido decidido. Mesmo que aquilo fosse me matar, o traje seria meu. Ativado quando eu quisesse, desativado quando eu quisesse. Planos foram se formando na minha cabeça, mas por algum motivo eu comecei a me sentir exausto como nunca me senti antes. Dormi por quase 24 horas e não lembro de ter sonhado. Talvez tenham me drogado durante os exames preliminares.


O Manifesto da liga dos cientistas (extra)

Recebi uma ligação no meu dia de folga pedindo que eu escrevesse algo que nos represente como um grupo, que dê um caráter de legitimidade ao que nós somos. Pensei e pensei, mas percebi que tudo o que tenho pra falar é aquilo que nós sempre discutimos e que todos sabemos. Se tem que ser oficial, que seja, mas não será em formato burocrático, não fará referência a leis e nem nada. Vou colocar aqui apenas os nosso ideais, aquilo que nos une, pra que esses conflitos presentes se mostrem pequenos como são. Aqui eu vou apenas lembrar a razão de todos termos feito tantos sacrifícios e as consequências que já obtivemos, pra que ninguém esqueça do valor disso tudo.

Nosso diferencial

De onde vem o nosso diferencial? Afinal, não somos um grupo na sociedade como qualquer outro com suas tradições e com preconceitos que entravam o avanço da ciência? Somos tão arrogantes que ousaríamos dizermo-nos neutros? É o que muitos dos nossos críticos afirmam quando confrontados com os avanços que obtivemos e que foram a público. Pois eu digo que não é esse nosso diferencial.
Nosso diferencial é precisamente que respondemos apenas a nós mesmos. Não há pessoas que não entendem nada do que fazemos querendo ditar rumos pro nosso trabalho. Não há padres e nem legisladores que possam podar nosso potencial criativo. Nosso diferencial, em essência, é a nossa liberdade!
Aqui nós temos ideias contrárias, mas fatos falam mais do que qualquer argumento. Aprimorar uma técnica antiga ou criar uma outra completamente nova com base em um paradigma exótico é uma escolha que nós temos. No final, são os resultados que ditam o valor do nosso trabalho. Não é a mídia que decide nosso rumo, não é governo, não é religião e muito menos senso comum.
Nos unimos aqui por esse diferencial da liberdade: é aqui que fazemos a mágica da ciência acontecer! Essa emoção da descoberta, de saber mais e de poder mais. De curar uma doença, de melhorar a comunicação, de aprimorar a agricultura e as matrizes energéticas. De fazer avançar nossa ciência, que tanto amamos!
Não temos mais que esperar uma geração inteira até que as pessoas de fora comecem a entender e assimilar nossos avanços. Podemos dar o próximo passo! Podemos cruzar a fronteira e desvendar mistérios sem a preocupação de convencer estranhos e ignorantes de que nosso trabalho vale a pena! Afinal, como eles poderiam entender? Quem de fato entende a emoção de ver seu trabalho científico dar certo quando nunca fez um trabalho desse tipo? Não é ninguém de fora, ninguém que não nos entende, que deve nos regular. Nós somos seres pensantes, pensar é o nosso trabalho e temos pleno potencial de decisão. E escolhemos saber!

Nossos sacrifícios e conquistas

Sim, nós fomos embora de nossos países. E apenas com muito esforço aprendemos a língua dessa região. Apenas com muito esforço entramos em acordo com líderes locais pra manter o nosso sigilo enquanto nos mantivemos na luta pra manter o mínimo de subsistência com os esparsos recursos de que dispúnhamos. Mas agora temos patentes, agora nós temos recursos e, espero, estamos perto de alcançar total autonomia nessa região e no mundo! Agora nós somos uma força respeitada por governos e agências de espionagem!1
Nós agora fazemos experimentos no espaço e no centro da terra e a nossa ciência está sendo usada pra controlar o clima. Quem poderia sonhar que em tão pouco tempo nós seríamos capazes de controlar o aquecimento global e ao mesmo tempo desfazer desertificações por meio de manipulações climáticas? E quem diria que faríamos isso sem desequilibrar a dinâmica do planeta?
Quem diria que criaríamos o sistema nervoso artificial, que traríamos tanto avanço pra interface homem-máquina, que produziríamos exo-esqueletos tão precisos?
Pensavam que a ciência tinha poder, mas nem imaginavam do que somos capazes quando dispomos da rédeas de nosso próprio trabalho! Nós sacrificamos muito por isso, mas chegamos longe e tudo promete que chegaremos ainda mais. Nosso futuro é brilhante como o nosso presente e não podemos deixar conflitos pessoais entrarem no meio disso.


1É simplesmente irônico que eles pensem que, numa instituição tão burocrática como a deles, pode haver maior avanço técnico-científico que o nosso ao ponto de acharem que podem nos espionar. Como se não fosse de nós, os cientistas, que as técnicas de espionagem deles dependessem! Interessante foi quando deixamos um deles ver o que estávamos fazendo apenas pra ele relatar algo que eles nem sequer foram capazes de entender. Agora parecem ter entendido nosso poder e querem se aliar a nós. E nós sabemos fazer acordos mutuamente benéficos, não é mesmo?

2 - Minha segunda identidade



Constantino Augusto Peçanha, Outubro de 2075

Tropecei e caí no meio da madrugada. A luz estava acesa, mas meus olhos estavam meio fechados e tinha um monte de papéis no corredor. Dei ordens ao meu robô doméstico pra não mover os papéis e isso acabou me rendendo uma pancada de cabeça na quina da porta da minha cozinha.
Eu não fiquei tonto e a dor foi suprimida em dois segundos. Recebi o aviso sonoro do impacto e a confirmação de que ele estava sendo reparado. Lembro do orgulho que tive dos jovens bionanotecnólogos quando eles desenvolveram esse sistema de reparo. Vi animais e pessoas sendo recuperadas de suas feridas em segundos e foi como um sonho se realizando. Com meus olhos já abertos, pus meus óculos e fui pro banheiro. Pude ver meu tecido ser completamente regenerado no vidro. Foi um impacto considerável e meu rosto estava com um trilha de sangue que seguia até minha boca. Quando lavei o sangue, minha pele já tinha recuperado a sensibilidade e todos os danos estavam reparados. Lembrei que em humanos normais isso deixaria uma pequena marca.
Mas afinal, o que eu me tornei? Meus órgãos são artificiais, meus tecidos, com exceção do nervoso, são artificiais. Até minha matriz de células-tronco da medula é artificial em uma taxa de 99,98%, estando as células originais confinadas e inativas. Um símbolo de um organismo que já existiu ali, mas que foi completamente desmontado e teve todas as suas “peças” trocadas. Meu sistema nervoso já há muitos anos se repara com mecanismos artificiais: se eu fosse algo natural, meu hipocampo deveria estar se degenerando. Meus mecanismos de reparo celular já estão quase todos inativos e até mecanismos de metabolismo celular estão começando a ser substituídos.
Chegará um dia em que o núcleo dos meu neurônios estará totalmente artificial, desafiando a natureza e a entropia. O que serei, então? O que sou?
Lembro de debates pueris levantados quando queriam decidir se a criminalidade era “genética” ou se era um “problema de criação”. Bem, se eu me tornar um criminoso agora, pouco se poderá dizer sobre minha carga genética. Com o tempo, aquilo que era um subproduto da diferenciação celular foi tudo o que restou. Minhas memórias, minhas crenças, meu nome são o que restou. Mas memórias são reorganizadas, ressignificadas e, finalmente, completamente alteradas com o passar dos anos. Crenças mudam conforme novas evidências e novas experiências emocionais aparecem. E o meu nome fica escondido por trás de um biofirewall do meu endocomputador. Nem sei se deveria mais usá-lo, pois me aposentei da liga, todos os meus parentes estão mortos ou me desprezam e tudo aquilo que pode definir uma identidade social já não existe na minha vida. Constantino peçanha morreu e foi esquecido. O que é isso, que restou?
Pra responder essa pergunta eu quis considerar minha idade. Mas qual é minha idade agora? Sei que tenho a aparência de um homem de 25 anos, matrizes celulares de apenas alguns meses de vida e um conjunto de memórias de 90 anos. Poderiam fazer um daqueles antigos testes de idade mental comigo, então meu cérebro combinado com meu endocomputador e meus óculos me dariam uma idade mental de 300 anos. Então quantos anos eu tenho? 0, 25, 90 ou 300?
Eu poderia pensar na minha mentalidade, mas até isso se tornou duvidoso. Antes do procedimento tudo era mais calmo, mas agora eu voltei a ter aquele espírito aventureiro de adolescente. Voltei a apreciar músicas agressivas e rápidas, voltei a ter vontade de arriscar minha vida por bobagens. Essas emoções, que normalmente se atribuem à imaturidade, voltaram pra mim. Então isso quer dizer que voltei a ser imaturo? Ou será que isso não passa da confusão hormonal de um organismo jovem e cheio de vida? Se isso for verdade, o envelhecimento nunca me trouxe maturidade e temperança: trouxe apenas cansaço e foi esse cansaço que me parou.
Não que eu tenha sido especialmente selvagem na minha juventude. Tudo era racionalmente calculado e intuitivamente decidido. Minhas decisões, na visão de alguns, era, sábias. Mas eu sabia bem a loucura com a qual eu decidia as coisas. Se fiz algo sábio, foi ao sabor do acaso, porque eu vivia seguindo uma ânsia louca pelo imponderável.
Meu cansaço acabou e tudo o que eu pensava que poderia ter feito agora é possível. Eu poderia ser um fora-da-lei! Sim, isso soa ridículo em português puro, mas sejamos honestos: quantas pessoas vão ler isso pra rir de mim?
Algo em mim permaneceu: minha constante necessidade por reforjar, repensar, rever tudo. E isso que eu decidi fazer: sair por aí explorando o que eu sou. Sentar em alguma forma de transporte público, olhar pela janela e deixar minha imaginação me carregar por lugares belos e sobrios que dizem mais sobre mim do que qualquer análise externa.
Vesti a primeira roupa que encontrei e decidi sair, mas senti medo. Voltei e comandei meu robô pra organizar a casa e organizar os papeis do chão por data e ordem alfabética com o endocumputador.

  • Senhor, as entradas só possuem data em comum se a análise for feita com sensibilidade diária. Caso contrário, todos foram feitos em períodos diferentes.
  • Use essa sensibilidade.
  • Sim, senhor

Não sei quem foi o idiota que decidiu que as máquinas devem marcar datas com precisão de segundos. Isso só serve pra criar essas ambiguidades. Eu já poderia ter trocado esse robô, mas luíza gostava dele. Ele dança.
Tentei sair novamente, e novamente meu coração acelerou. Medo! Olhei pro robô. Já tinha peças que precisavam ser trocadas, mas ela deixou ele assim e eu não tinha coragem de trocar nada. Chamei o robô ele interrompeu a organização de papéis pra me atender.

  • Dance salsa, Wallie. - comandei
  • Sim, senhor.

O robô acionou aquela mesma lista de músicas que ela gostava de ouvir e começou a dançar. Esse nome também foi ela quem escolheu. Aqueles papéis, metade do conteúdo são de autoria dela e boa parte de outra metade são meus lamentos por causa dela. Por anos eu abandonei minha vida pessoal e agora quando ela é tudo o que me resta eu vejo que ela era a minha vida pessoal. Lembro do dia em que ela desistiu de mim, foi naquela sala mesmo. Cinco anos antes de ela morrer.

“Abandone essa liga, Constantino. Eles são monstros! Você não é assim” - ela disse como um último esforço de me recuperar - “Eu não quero viver pra sempre, não quero ser reconstruída. Já vivi o que eu queria viver! Saia desse trabalho e fale com os nossos filhos!”

Eu respondi apenas com o silêncio. Eu não sabia o que dizer e já pensei tantas vezes no que eu poderia ter dito que já não sei o que dizer novamente. Mas ela entendeu meu silêncio, como sempre, e foi embora. Deixou tudo pra trás e seguiu com a vida dela. Nunca mais nos falamos a não ser no dia em que ela estava em seu leito de morte.
Com essas memórias eu lembrei o motivo de eu não querer sair. Tem outra Luíza, idêntica a ela, solta por aí. E ela seria capaz de me reconhecer! Eu tinha medo de sair porque tinha medo de ser confrontado com meus próprios erros. Começei a chorar novamente. Não sei se pela juventude recentemente adquirida ou simplesmente porque finalmente parei pra lembrar essas coisas.
O choro me deu coragem e me acalmou, como sempre, e eu consegui sair. Por algum motivo, no entanto, eu vesti um jaleco sobre minha roupa. Eu queria ter uma rota de fuga, eu acho. A possibilidade de fugir pra um laboratório e começar a trabalhar em alguma hipótese nova que me faria esquecer todo o resto. Mas esse espírito de aventura tomou conta de mim e eu queria ver o mundo que eu insisti em esquecer pra fugir da dor.
Comandei que o robô parasse de dançar e fosse arrumar tudo. Saí de casa com meu jaleco e meu medo. Desci pelo elevador até a estação de transporte público mais próximo e subi no último vagão. Em pleno domingo e com a rota mais improvável, o vagão tinha que estar vazio.
Luíza estava em um debate político a respeito dessa rota estúpida que ninguém tomaria por ser longa e passar por lugares pouco relevantes. Além do superfaturamento, é claro. Obviamente ela perdeu essa luta, porque a linha estava ali firme e forte, dando a volta na cidade, parando em lugares inúteis e consumindo energia elétrica. Eu poderia ter impedido isso de acontecer. Um dos poucos trens Maglev em que você consegue sentir o vagão balançar. Mas a vista é espetacular. O que resta da natureza pode ser visto pela janela. É como fazer um passeio turístico. Imaginei um daqueles robôs guias turísticos falando: “À sua esquerda, é visível o que um dia foi a mata atlântica da costa do Estado do Rio de Janeiro. Aqui ela ficava antes de ser completamente destruída depois da guerra”. Claro que um desses robõs jamais diria isso a não ser que seu programador quisesse ficar sem emprego, mas eu estava imaginando e a isso ninguém poderia me impor limites.
Minha tentativa de rir da desgraça não durou muito. Acabei lembrando que ela me passou todas as informações do superfaturamento na época e também sobre o desmatamento. Se algum dia eu soube algo sobre os problemas sociais, foi porque ela me contava tudo. Dizia que eu ajudava a colocar as coisas sob perspectiva. Ela não sabia que eu podia invadir o sistema dos responsáveis e provar a irregularidades. E eu fiz a escolha idiota de manter as dívidas dos meus hackers pra conseguir privacidade pra nossa “vida nova”. Ela nunca veio e Luiza teria ficado orgulhosa de mim. Tarde demais! Todo esse tempo desde a morte dela e ela ainda vive dentro de mim. Talvez algumas feridas realmente nunca possam ser curadas. Numa situação dessas eu perguntaria pra ela a respeito da história do lugar onde estávamos pra ouvir as descrições dela. Ela me acalmava com aquela voz doce. Fechei os olhos e vi ela entrando no vagão. Com o cabelo branco e a pele trocada, mas que não escondia a idade. Ela tinha uma mecha preta no cabelo. Dizia que era seu charme.
Quando abri meus olhos, a outra Luiza estava diante de mim. Olhando com um sorriso irônico. Só vendo esse sorriso eu percebi a razão de ela não ser idência à Luíza: toda a expressão e movimentação dela é diferente. E eu guardava mais os olhares e gestos dela do que detalhes. Eu conseguia reconhecer ela à distância pelo jeito de andar. Mas Essa Luíza era completamente diferente. Sim, a pele era do mesmo tom, o formato do rosto era idêntico, mas numa época em que todos os corpos são personalizáveis as pessoas começam a ficar estranhamente parecidas. A beleza antiga desaparece e você precisa encontrar outras formas de decidir se uma pessoa é atraente ou não.

  • Você tá olhando pra mim? Ou só está drogado? - ela perguntou
  • Talvez um pouco dos dois...- respondi tentando esconder o constrangimento
  • Pesquisei você e vi que os registros das suas ações desapareceram a mais de 15 anos. Como eu poderia saber que você é você? - ela perguntou num tom sarcástico
  • Você pode saber porque eu te contei. Aliás, como você me achou?
  • Eu não te achei. Esse é meu catinho no mundo. Esse vagão nesse dia. Está quase sempre vazio. Chamo de vagão do coração partido.
  • Porque coração partido?
  • Porque eu tinha terminado um relacionamento longo e vim chorar aqui onde ninguém me encontraria. Me sinto segura aqui.
  • Durou quanto tempo, seu relacionamento?
  • Quase um ano.
  • Então não foi tão longo, não é?
  • É, acho que não... Não pra pessoas da sua época, pelo menos. Mas foi um enorme sacrifício manter aquela relação por tanto tempo. As pessoas hoje em dia não querem mais isso.
  • Quando eu acordei você já tinha saído. Talvez você também não queira, não é?
  • Eu não sabia o que fazer. Você é velho de verdade. Aquele lugar é só pra roleplay e sexo. Você não sabia?
  • Existem lugares em que as pessoas se encontram apenas pra transar? - perguntei
  • E já existiam na sua época, santinho.
  • Todas aquelas pessoas foram ali apenas pra transar?
  • Transar com estranhos encenando a violência do começo do século. É bem específico. E caro!
  • Então tem outros lugares assim?
  • Estão por toda a parte. Em que mundo você vive?
  • Quando eu descobrir, se você estiver por perto, te conto.
  • Deve ser um mundo interessante. Nunca eu vi um homem chorar na minha frente daquele jeito. Até meu ex usou o endocomputador pra barrar o choro quando terminei com ele.
  • Porque uma pessoa em sã consciência escolheria não chorar? Isso é loucura!
  • Pessoas não são mais acostumadas com a dor. Não querem chorar porque não querem lembrar que toda essa sofisticação esconde a miséria de existir.
  • Filosofou, hein menina? Schopenahuer e tudo!
  • O que?
  • Deixa pra lá.

Ficamos olhando pra plantação de soja pela janela com um silêncio constrangedor.

  • O que realmente aconteceu com a floresta que tinha aqui? - ela perguntou
  • Fiz essa pergunta pra Luíza na época em que aconteceu. Foi como que por acaso, sabia?
  • O desmatamento te deixou triste?
  • Não. A biodiversidade foi armazenada em bancos de dados e criamos outra floresta no deserto.
  • Como assim? Quem criou?
  • Deixa isso pra lá.
  • Tudo bem. Mas porque você ficou triste? - ela perguntou com uma avidez que me pressionou
  • Só é estranho vocẽ aí, igual a ela. Falando sobre um assunto que conversei com ela. Fiquei com saudades, só isso.
  • Entendi. A primeira vez que eu pensei em você foi aqui nessa vagão. Imaginei como seria perder alguém que passou tanto tempo junto.
  • Pensou em mim, é? Bem, sinto te desapontar, Luíza, mas ela já tinha me abandonado há anos quando decidiu falecer. Na realidade, ela só falava comigo por causa dos nossos filhos, que ela queria que não me odiassem.
  • Porque os seus filhos te odeiam?
  • Por causa do meu trabalho.
  • Sei como é. Meus pais trabalham tanto que são como se fossem estranhos pra mim. Eu fui criada por um robô. Deve ser por isso que eu quero voltar pra sua época. Quando não existiam robôs, sabe?
  • Sei. Mas enfim, todo mundo já falou sobre sua dor. Voltemos ao assunto da floresta. O que aconteceu foi que os níveis de CO2 foram reduzidos na atmosfera por causa da Liga. Isso diminuiu a força das intituições ambientalistas, que tinham como seu maior argumento a poluição e o aquecimento global. Passados alguns anos e com algumas catástrofes naturais devidamente evitadas, as verbas foram cortadas e a população pobre invadiu essa floresta. Somente quando a devastação era claramente visível em voo de helicóptero que pensaram em fazer algo. Mas era gente demais e o governo parecia não se importar tanto com as reclamações dos ativistas. Muitos votos na região, sabe? Mais alguns anos e desabamentos depois, o governo construiu moradias pra todos e demoliu todas as casas. Mas nesse ponto a devastação já era catastrófica e o preço da comida estava absurdo. Muita demanda, sabe? Isso combinado com a dívida do estado acabou transformando toda a região nessa enorme plantação. Milênios de história natural erradicados em duas décadas.
  • Nossa, quando você fala assim parece que te deixou triste. Mas você falou que não ligava.
  • Essa última frase é da Luíza. Eu gravei no meu computador na época.
  • Mas porque você não liga?
  • Segundo ela, porque eu fui reduzido a um robô. Porque eu não tenho mais emoções.
  • Nossa, mas você é a pessoa mais emocional que eu conheço.
  • Bem, precisei que ela me abandonasse e morresse pra ter emoções, eu acho. Eu era diferente na época.
  • Mas porque você não liga, então?
  • Porque eu mandei uma equipe no local e registrei toda a diversidade genética do local. Eu previ o desmatamento e resgatei as informações antes que elas fossem perdidas. Qualquer um pode ir no Kalahari e encontrar essa floresta.
  • Nossa, pensei que as terras da liga eram mais pro norte.
  • O mundo é da liga.
  • Hahahahaha! Entendi. Tem que vender seu peixe, né?

Por um momento eu esqueci que ela é só uma civil que não sabe de nada. Tanto tempo se passou em que eu só me comunicava com pessoas que sabiam de tudo da liga que esqueci. Passar essas informações pra ela poderia acabar resultando na neuralização da pobre moça. Não tive escolha a não ser mudar de assunto.

  • Seu nome é mesmo Luíza?
  • Não nasci com esse nome, mas mudei oficialmente.
  • Nasceu com que nome?
  • Heloísa.
  • E mudou só por causa da Luíza?
  • Em homenagem a ela, quando ela faleceu. Eu quis que algo dela vivesse em mim.

“Que algo dela vivesse em mim”! Quanto dessa mulher viveu em mim? Ela me conheceu antes de tudo. Antes de eu ser reconhecido pelos trabalhos de neurointerface e os sistemas de reparo neural. Ela conheceu um rapaz que não sabia o que queria da vida e sonhava apenas em ter uma família. Foi o que ela gostou em mim, afinal. Um homem de família dedicado e fiel. Não fui uma coisa e nem outra. Ciência foi o nome da minha amante e por causa dela eu abandonei minha família e fui parar no meio do continente africano. Dois dos meus três filhos foram atrás de mim e até conseguiram o lugar deles na liga. Mas eu tinha vergonha de falar com eles depois de todo o mal que representei na infância deles. Um pai ausente, um pai que faz a mãe chorar. Um pai que era um mundo de promessas que nunca se concretizaram. O que eu diria pra eles? “Desculpe, filhos, mas a ciência é mais importante do que vocês”? Emanuel seguiu um caminho sombrio. Entrou naquele departamento de defesa e eu nem quis saber que tipo de treinamento ele estava recebendo. Minha filha entrou no grupo de preservadores da biodiversidade marinha e ocupa ali seu cargo por anos. Um cargo que ela sempre quis, embora dificilmente vá resultar num avanço tecnológico que dê a ela o poder que seu intelecto merece. Mas ela tem um filho. E ele é feliz. Voltei a ser jovem, mas não voltei no tempo. Eu não posso mais ser um bom pai, mas posso pelo menos não estragar a felicidade dela com a minha presença. Meu filho mais velho, Frederico, se tornou um empresário e não troca uma palavra comigo a anos. Tudo isso me consome por dentro.

  • Mas e aquela Mônica que você falou? Não foi por caus dela que a Luíza de largou?
  • Você não para de fazer perguntas! Parece que está me fazendo de objeto de estudo!
  • Conta!
  • Não, a Mônica e eu nem éramos assim tão próximos. Ela era muito livre e dava as caras quando queria. Foi a única que continuou me visitando na região swahili até o fim. Ela aprendeu a língua de lá, que eu só aprendi em homenagem a ela...
  • Porque não aprendeu antes?
  • Meu endocomputador faz tradução em tempo real de praticamente todas as línguas conhecida. Não há mais necessidade de aprender línguas novas. Basta que você fale uma bem...
  • Então é daí que vem seu sotaque! Você fica falando certinho pro seu endocomputador traduzir o que você diz, daí fica estranho assim!
  • Bem... Eu... Eu nunca tinha pensado nisso, mas suponho que seja verdade. Eu ajustava minha fala pra evitar erros de tradução. Não sei se hoje em dia isso ainda seria necessário, mas acabou que miha forma de falar se moldou por isso.
  • Vem, vamos sair daqui.
  • Porque?
  • Vai começar a entrar gente, vem logo!

Nós saímos e os vagões se encheram pelas portas do outro lado. Pelos gestos e roupas, estavam usando o vagão pra ir a algum evento esportivo. Quem sabe preferiam ir sentados no maglev que balança do que ir espremidos na linha expressa! Ela me puxou por ruas sujas e limpas ao mesmo tempo. É muito difícil descrever. Não tinha lixo no chão, mas fedia como se tivesse. Como seja sujeira estivesse disfarçada pra quem vê de longe, mas não pra quem mora por ali. Meu endocomputador começou a sugerir rotas de fuga e aí percebi que estava na zona pobre da cidade.

  • Vem, vamos na minha casa – ela disse
  • Você mora por aqui? - perguntei tentando esconder a surpresa
  • Algum problema?
  • Não, é que... Você reconstruiu seu corpo. Como...?
  • Meus pais pagaram. Antes de eu sair de casa e tomar as rédeas da minha vida. Ta querendo ir embora? - ela perguntou num tom agressivo

Se ela tinha algo em sua linguagem corporal que lembrava a outra luíza era sua raiva. Tentei fazer o que eu fazia com a antiga.

  • Está de TPM, por acaso?
  • Eu não tenho ciclo menstrual. Ta achando que eu sou louca?

Depois dessa, desisti por completo de comparar as duas Luízas. A aparência era a mesma e o nome também, mas todo o resto era diferente. A semelhança era uma homenagem, não uma tentativa de imitar, como pensei inicialmente. E eu estava gostando dessas diferenças. De alguma maneira, mesmo com toda a estranheza, ela era fascinante.

  • Então, quebrando esse silêncio constrangedor e essa cara de maluco que você estava fazendo, me conta do seu trabalho?
  • Bem... Eu era chefe do departamento geral de reparo e interface neural. Fazia pesquisas, orientava pesquisadores. Não quero falar disso, Luíza.
  • Ah, dessas coisas eu sei. Eu quero saber porque seus filhos detestam você.
  • Porque...

Virei e vi um menino com uma camisa monocromática. As imagens da camisa, além de não terem nenhuma cor, reproduziam um video como se fosse uma sequência de fotos em slides. Ele devia ter uns 4 anos e estava tentando mudar as configurações da blusa como se isso fosse resolver algo. Ele conseguiu entrar em configurações bem avançadas, era um menino brilhante. Mas inocente demais pra saber que aquela camisa gratuita jamais poderia atender aos seus desejos.

  • Quem é esse menino? - perguntei
  • Ah, é um dos órfãos do comando
  • Comando?
  • Eles são criminosos que mandam em tudo por aqui. Todos os órfãos são recrutas deles.
  • O que?! Mas eles não podem usar robôs?
  • Até tentaram, eu soube, mas robôs deixam as operações deles mais expostas. Pessoas não podem ser controlada remotamente.
  • Entendo. Mas o que esse menino vai se tornar? Ele é tão esperto...
  • Vai ser um vendedor de sangue de vênus
  • O que?
  • É um sangue que te deixa drogado por dias.
  • Você sabe a composição desse sangue? Isso não tem como ser seguro pra um organismo sem modificações.
  • E não é. As pessoas morrem e, antes disso, vagam por aí como se já estivessem mortas. A maioria dos vendedores acaba viciado ou morto também.
  • Então esse é o destino desse menino?
  • Acho que sim. Não há o que fazer, sabe? O Comando não abre mão de nenhum órfão. E ele está aí pra fazer mais órfãos.

Eu não sabia o que fazer. Meu coração acelerou. O que a Luíza teria feito? Achei um ponto de entrega de produtos e encomendei roupas com potencial de projeção e holograma. Alguns segundos depois a roupa chegou. Luíza ficou olhando pra mim, com um sorriso meio confuso. Configurei a roupa pra ficar do tamanho do menino e fui até ele.

  • Oi, rapazinho, qual é o seu nome?
  • Rapazinho não, eu sô sujeito hombre!
  • Você quer uma roupa legal, hombre?
  • Não to vendendo sangue não, moço. Vê com o tônio ali no fim da rua.
  • Não quero sangue não. É de presente

Os olhos do menino se arregalaram, mas logo ele se conteve.

  • Essa roupa dói? Porque se doer eu vou te pegar!
  • Não dói não, você vai ver.

Com a inocência que só uma criança desse tamanho pode ter, o menino vestiu o traje, que cobriu todo o seu corpo. Em alguns minutos ele já estava assistindo vídeos coloridos. Ficou tão entretido em descobrir o que a roupa podia fazer que esqueceu que eu existia. Fiquei contente, mas lembrei de uma fala da Luíza: “Essas pessoas vêm aqui e dão brinquedos e dinheiro pra essa gente pra se sentirem melhores, mas não fazem nada pra mudar essa porcaria. São todos hipócritas!”
Minha alegria durou pouco e decidi subir com a Luíza nova. Percebi que ela tinha esse efeito de me acalmar, como a Mônica fazia, com a diferença de que eu não sentia como se ela fosse desaparecer a qualquer momento. Fugi pra um refúgio novo e gostei da sensação.

  • Cuidado com essa escada, tino. - ela falou meio distraída
  • Do que você me chamou?
  • Tino, ué. Seu nome é muito grande!
  • Eu chamava a Luiza de lulu. No começo ela detestou, mas com o tempo acostumou. - falei deixando escapar um sorriso

Quando eu lembrava lá do começo da relação, tudo parecia tão tranquilo e positivo. O tempo vai passando e as coisas vão mudando lentamente sem percebermos o que aconteceu. De repente, tudo estava um inferno.

  • Vem logo, tino, tá esperando o que?

A escada era muito estreita e íngreme. O ambiente era todo meio escuro e claustrofóbico, então tentei subir rápido e tropecei, mas acabei chegando. Quando ela fechou a porta eu parei pra observar o apartamento. Um cubículo com três cômodos, se é que aquele banheiro poderia ser chamado de cômodo. Estava tudo bagunçado e não tinha nenhum robô pra arrumar o lugar, mas ainda assim era tudo bem limpo.

  • pode ligar a TV se quiser! - ela gritou do banheiro como se estivesse bem longe

Usei meus óculos pra acionar a TV e enquanto mudava de canal, me deparei com a mesma coisa em todos. Ela só tinha canais gratuitos e todos relatavam um atentado terrorista. Parei pra ouvir enquanto esperava ela sair. O programa ofereceu a exibição de um video e eu tive a idiota ideia de assistir. Mais cedo ou mais tarde eu descobriria, mas quando eu vi, meu coração parou.

Em menos de um segundo, vidros foram quebrados em vários prédios, pessoas foram despedacadas como se fossem feitas de areia e três dos mais poderosos líderes da américa do norte foram publicamente neuralizados. Quando eu vi a agua do mar subindo e formando aquela trilha no oceano eu não tive dúvida: aquilo foi obra da liga.
Nos meus últimos dias como membro eu fui visitar o departamento de defesa pra falar com meu filho, mas ele estava imerso em realidade virtual pra treinamento. Então eu vi o trabalho deles. Estava criando um trajo monstruoso capaz de suportar todo tipo de estresse químico e físico. E não só isso. Aquele rapaz, aquele moleque brilhante do departamento de física conseguiu alterar o tempo/espaço. Em uma câmara isolada ele conseguiu produzir petróleo a partir de restos de fitoplancton. Ele quase foi expulso por ficar um ano consumindo tanta energia com aquela máquina, mas com esse e outros experimentos ele provou que é possível entrar em uma espécie de hiper-tempo e que, dentro da câmara, se passaram 36000 anos. Vi pessoalmente os resultados do espectrômetro de massa. Quando eu vi aquela notícia, associei tudo: ele fez um traje capaz de produzir aquele “hiper-tempo” e manter um ser humano vivo dentro dele. E um dos seres humanos em treinamento ali era meu filho!
O mundo começou a girar, meu estômago embrulhou a fui até a janela, pensando que ia vomitar. Eu não queria acreditar que aquilo era possível...
Lá fora, vi o menino com meu traje. Ele produziu um holograma de algum super-herói da atualidade, que parecia uma mistura de homem com dragão e saiu correndo e soprando fogo holográfico pela vizinhança. Talvez eu devesse ter dado um traje desse pro Emanuel. Ou talvez eu devesse simplesmente ter dado um pouco de mim...