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2 - Minha segunda identidade



Constantino Augusto Peçanha, Outubro de 2075

Tropecei e caí no meio da madrugada. A luz estava acesa, mas meus olhos estavam meio fechados e tinha um monte de papéis no corredor. Dei ordens ao meu robô doméstico pra não mover os papéis e isso acabou me rendendo uma pancada de cabeça na quina da porta da minha cozinha.
Eu não fiquei tonto e a dor foi suprimida em dois segundos. Recebi o aviso sonoro do impacto e a confirmação de que ele estava sendo reparado. Lembro do orgulho que tive dos jovens bionanotecnólogos quando eles desenvolveram esse sistema de reparo. Vi animais e pessoas sendo recuperadas de suas feridas em segundos e foi como um sonho se realizando. Com meus olhos já abertos, pus meus óculos e fui pro banheiro. Pude ver meu tecido ser completamente regenerado no vidro. Foi um impacto considerável e meu rosto estava com um trilha de sangue que seguia até minha boca. Quando lavei o sangue, minha pele já tinha recuperado a sensibilidade e todos os danos estavam reparados. Lembrei que em humanos normais isso deixaria uma pequena marca.
Mas afinal, o que eu me tornei? Meus órgãos são artificiais, meus tecidos, com exceção do nervoso, são artificiais. Até minha matriz de células-tronco da medula é artificial em uma taxa de 99,98%, estando as células originais confinadas e inativas. Um símbolo de um organismo que já existiu ali, mas que foi completamente desmontado e teve todas as suas “peças” trocadas. Meu sistema nervoso já há muitos anos se repara com mecanismos artificiais: se eu fosse algo natural, meu hipocampo deveria estar se degenerando. Meus mecanismos de reparo celular já estão quase todos inativos e até mecanismos de metabolismo celular estão começando a ser substituídos.
Chegará um dia em que o núcleo dos meu neurônios estará totalmente artificial, desafiando a natureza e a entropia. O que serei, então? O que sou?
Lembro de debates pueris levantados quando queriam decidir se a criminalidade era “genética” ou se era um “problema de criação”. Bem, se eu me tornar um criminoso agora, pouco se poderá dizer sobre minha carga genética. Com o tempo, aquilo que era um subproduto da diferenciação celular foi tudo o que restou. Minhas memórias, minhas crenças, meu nome são o que restou. Mas memórias são reorganizadas, ressignificadas e, finalmente, completamente alteradas com o passar dos anos. Crenças mudam conforme novas evidências e novas experiências emocionais aparecem. E o meu nome fica escondido por trás de um biofirewall do meu endocomputador. Nem sei se deveria mais usá-lo, pois me aposentei da liga, todos os meus parentes estão mortos ou me desprezam e tudo aquilo que pode definir uma identidade social já não existe na minha vida. Constantino peçanha morreu e foi esquecido. O que é isso, que restou?
Pra responder essa pergunta eu quis considerar minha idade. Mas qual é minha idade agora? Sei que tenho a aparência de um homem de 25 anos, matrizes celulares de apenas alguns meses de vida e um conjunto de memórias de 90 anos. Poderiam fazer um daqueles antigos testes de idade mental comigo, então meu cérebro combinado com meu endocomputador e meus óculos me dariam uma idade mental de 300 anos. Então quantos anos eu tenho? 0, 25, 90 ou 300?
Eu poderia pensar na minha mentalidade, mas até isso se tornou duvidoso. Antes do procedimento tudo era mais calmo, mas agora eu voltei a ter aquele espírito aventureiro de adolescente. Voltei a apreciar músicas agressivas e rápidas, voltei a ter vontade de arriscar minha vida por bobagens. Essas emoções, que normalmente se atribuem à imaturidade, voltaram pra mim. Então isso quer dizer que voltei a ser imaturo? Ou será que isso não passa da confusão hormonal de um organismo jovem e cheio de vida? Se isso for verdade, o envelhecimento nunca me trouxe maturidade e temperança: trouxe apenas cansaço e foi esse cansaço que me parou.
Não que eu tenha sido especialmente selvagem na minha juventude. Tudo era racionalmente calculado e intuitivamente decidido. Minhas decisões, na visão de alguns, era, sábias. Mas eu sabia bem a loucura com a qual eu decidia as coisas. Se fiz algo sábio, foi ao sabor do acaso, porque eu vivia seguindo uma ânsia louca pelo imponderável.
Meu cansaço acabou e tudo o que eu pensava que poderia ter feito agora é possível. Eu poderia ser um fora-da-lei! Sim, isso soa ridículo em português puro, mas sejamos honestos: quantas pessoas vão ler isso pra rir de mim?
Algo em mim permaneceu: minha constante necessidade por reforjar, repensar, rever tudo. E isso que eu decidi fazer: sair por aí explorando o que eu sou. Sentar em alguma forma de transporte público, olhar pela janela e deixar minha imaginação me carregar por lugares belos e sobrios que dizem mais sobre mim do que qualquer análise externa.
Vesti a primeira roupa que encontrei e decidi sair, mas senti medo. Voltei e comandei meu robô pra organizar a casa e organizar os papeis do chão por data e ordem alfabética com o endocumputador.

  • Senhor, as entradas só possuem data em comum se a análise for feita com sensibilidade diária. Caso contrário, todos foram feitos em períodos diferentes.
  • Use essa sensibilidade.
  • Sim, senhor

Não sei quem foi o idiota que decidiu que as máquinas devem marcar datas com precisão de segundos. Isso só serve pra criar essas ambiguidades. Eu já poderia ter trocado esse robô, mas luíza gostava dele. Ele dança.
Tentei sair novamente, e novamente meu coração acelerou. Medo! Olhei pro robô. Já tinha peças que precisavam ser trocadas, mas ela deixou ele assim e eu não tinha coragem de trocar nada. Chamei o robô ele interrompeu a organização de papéis pra me atender.

  • Dance salsa, Wallie. - comandei
  • Sim, senhor.

O robô acionou aquela mesma lista de músicas que ela gostava de ouvir e começou a dançar. Esse nome também foi ela quem escolheu. Aqueles papéis, metade do conteúdo são de autoria dela e boa parte de outra metade são meus lamentos por causa dela. Por anos eu abandonei minha vida pessoal e agora quando ela é tudo o que me resta eu vejo que ela era a minha vida pessoal. Lembro do dia em que ela desistiu de mim, foi naquela sala mesmo. Cinco anos antes de ela morrer.

“Abandone essa liga, Constantino. Eles são monstros! Você não é assim” - ela disse como um último esforço de me recuperar - “Eu não quero viver pra sempre, não quero ser reconstruída. Já vivi o que eu queria viver! Saia desse trabalho e fale com os nossos filhos!”

Eu respondi apenas com o silêncio. Eu não sabia o que dizer e já pensei tantas vezes no que eu poderia ter dito que já não sei o que dizer novamente. Mas ela entendeu meu silêncio, como sempre, e foi embora. Deixou tudo pra trás e seguiu com a vida dela. Nunca mais nos falamos a não ser no dia em que ela estava em seu leito de morte.
Com essas memórias eu lembrei o motivo de eu não querer sair. Tem outra Luíza, idêntica a ela, solta por aí. E ela seria capaz de me reconhecer! Eu tinha medo de sair porque tinha medo de ser confrontado com meus próprios erros. Começei a chorar novamente. Não sei se pela juventude recentemente adquirida ou simplesmente porque finalmente parei pra lembrar essas coisas.
O choro me deu coragem e me acalmou, como sempre, e eu consegui sair. Por algum motivo, no entanto, eu vesti um jaleco sobre minha roupa. Eu queria ter uma rota de fuga, eu acho. A possibilidade de fugir pra um laboratório e começar a trabalhar em alguma hipótese nova que me faria esquecer todo o resto. Mas esse espírito de aventura tomou conta de mim e eu queria ver o mundo que eu insisti em esquecer pra fugir da dor.
Comandei que o robô parasse de dançar e fosse arrumar tudo. Saí de casa com meu jaleco e meu medo. Desci pelo elevador até a estação de transporte público mais próximo e subi no último vagão. Em pleno domingo e com a rota mais improvável, o vagão tinha que estar vazio.
Luíza estava em um debate político a respeito dessa rota estúpida que ninguém tomaria por ser longa e passar por lugares pouco relevantes. Além do superfaturamento, é claro. Obviamente ela perdeu essa luta, porque a linha estava ali firme e forte, dando a volta na cidade, parando em lugares inúteis e consumindo energia elétrica. Eu poderia ter impedido isso de acontecer. Um dos poucos trens Maglev em que você consegue sentir o vagão balançar. Mas a vista é espetacular. O que resta da natureza pode ser visto pela janela. É como fazer um passeio turístico. Imaginei um daqueles robôs guias turísticos falando: “À sua esquerda, é visível o que um dia foi a mata atlântica da costa do Estado do Rio de Janeiro. Aqui ela ficava antes de ser completamente destruída depois da guerra”. Claro que um desses robõs jamais diria isso a não ser que seu programador quisesse ficar sem emprego, mas eu estava imaginando e a isso ninguém poderia me impor limites.
Minha tentativa de rir da desgraça não durou muito. Acabei lembrando que ela me passou todas as informações do superfaturamento na época e também sobre o desmatamento. Se algum dia eu soube algo sobre os problemas sociais, foi porque ela me contava tudo. Dizia que eu ajudava a colocar as coisas sob perspectiva. Ela não sabia que eu podia invadir o sistema dos responsáveis e provar a irregularidades. E eu fiz a escolha idiota de manter as dívidas dos meus hackers pra conseguir privacidade pra nossa “vida nova”. Ela nunca veio e Luiza teria ficado orgulhosa de mim. Tarde demais! Todo esse tempo desde a morte dela e ela ainda vive dentro de mim. Talvez algumas feridas realmente nunca possam ser curadas. Numa situação dessas eu perguntaria pra ela a respeito da história do lugar onde estávamos pra ouvir as descrições dela. Ela me acalmava com aquela voz doce. Fechei os olhos e vi ela entrando no vagão. Com o cabelo branco e a pele trocada, mas que não escondia a idade. Ela tinha uma mecha preta no cabelo. Dizia que era seu charme.
Quando abri meus olhos, a outra Luiza estava diante de mim. Olhando com um sorriso irônico. Só vendo esse sorriso eu percebi a razão de ela não ser idência à Luíza: toda a expressão e movimentação dela é diferente. E eu guardava mais os olhares e gestos dela do que detalhes. Eu conseguia reconhecer ela à distância pelo jeito de andar. Mas Essa Luíza era completamente diferente. Sim, a pele era do mesmo tom, o formato do rosto era idêntico, mas numa época em que todos os corpos são personalizáveis as pessoas começam a ficar estranhamente parecidas. A beleza antiga desaparece e você precisa encontrar outras formas de decidir se uma pessoa é atraente ou não.

  • Você tá olhando pra mim? Ou só está drogado? - ela perguntou
  • Talvez um pouco dos dois...- respondi tentando esconder o constrangimento
  • Pesquisei você e vi que os registros das suas ações desapareceram a mais de 15 anos. Como eu poderia saber que você é você? - ela perguntou num tom sarcástico
  • Você pode saber porque eu te contei. Aliás, como você me achou?
  • Eu não te achei. Esse é meu catinho no mundo. Esse vagão nesse dia. Está quase sempre vazio. Chamo de vagão do coração partido.
  • Porque coração partido?
  • Porque eu tinha terminado um relacionamento longo e vim chorar aqui onde ninguém me encontraria. Me sinto segura aqui.
  • Durou quanto tempo, seu relacionamento?
  • Quase um ano.
  • Então não foi tão longo, não é?
  • É, acho que não... Não pra pessoas da sua época, pelo menos. Mas foi um enorme sacrifício manter aquela relação por tanto tempo. As pessoas hoje em dia não querem mais isso.
  • Quando eu acordei você já tinha saído. Talvez você também não queira, não é?
  • Eu não sabia o que fazer. Você é velho de verdade. Aquele lugar é só pra roleplay e sexo. Você não sabia?
  • Existem lugares em que as pessoas se encontram apenas pra transar? - perguntei
  • E já existiam na sua época, santinho.
  • Todas aquelas pessoas foram ali apenas pra transar?
  • Transar com estranhos encenando a violência do começo do século. É bem específico. E caro!
  • Então tem outros lugares assim?
  • Estão por toda a parte. Em que mundo você vive?
  • Quando eu descobrir, se você estiver por perto, te conto.
  • Deve ser um mundo interessante. Nunca eu vi um homem chorar na minha frente daquele jeito. Até meu ex usou o endocomputador pra barrar o choro quando terminei com ele.
  • Porque uma pessoa em sã consciência escolheria não chorar? Isso é loucura!
  • Pessoas não são mais acostumadas com a dor. Não querem chorar porque não querem lembrar que toda essa sofisticação esconde a miséria de existir.
  • Filosofou, hein menina? Schopenahuer e tudo!
  • O que?
  • Deixa pra lá.

Ficamos olhando pra plantação de soja pela janela com um silêncio constrangedor.

  • O que realmente aconteceu com a floresta que tinha aqui? - ela perguntou
  • Fiz essa pergunta pra Luíza na época em que aconteceu. Foi como que por acaso, sabia?
  • O desmatamento te deixou triste?
  • Não. A biodiversidade foi armazenada em bancos de dados e criamos outra floresta no deserto.
  • Como assim? Quem criou?
  • Deixa isso pra lá.
  • Tudo bem. Mas porque você ficou triste? - ela perguntou com uma avidez que me pressionou
  • Só é estranho vocẽ aí, igual a ela. Falando sobre um assunto que conversei com ela. Fiquei com saudades, só isso.
  • Entendi. A primeira vez que eu pensei em você foi aqui nessa vagão. Imaginei como seria perder alguém que passou tanto tempo junto.
  • Pensou em mim, é? Bem, sinto te desapontar, Luíza, mas ela já tinha me abandonado há anos quando decidiu falecer. Na realidade, ela só falava comigo por causa dos nossos filhos, que ela queria que não me odiassem.
  • Porque os seus filhos te odeiam?
  • Por causa do meu trabalho.
  • Sei como é. Meus pais trabalham tanto que são como se fossem estranhos pra mim. Eu fui criada por um robô. Deve ser por isso que eu quero voltar pra sua época. Quando não existiam robôs, sabe?
  • Sei. Mas enfim, todo mundo já falou sobre sua dor. Voltemos ao assunto da floresta. O que aconteceu foi que os níveis de CO2 foram reduzidos na atmosfera por causa da Liga. Isso diminuiu a força das intituições ambientalistas, que tinham como seu maior argumento a poluição e o aquecimento global. Passados alguns anos e com algumas catástrofes naturais devidamente evitadas, as verbas foram cortadas e a população pobre invadiu essa floresta. Somente quando a devastação era claramente visível em voo de helicóptero que pensaram em fazer algo. Mas era gente demais e o governo parecia não se importar tanto com as reclamações dos ativistas. Muitos votos na região, sabe? Mais alguns anos e desabamentos depois, o governo construiu moradias pra todos e demoliu todas as casas. Mas nesse ponto a devastação já era catastrófica e o preço da comida estava absurdo. Muita demanda, sabe? Isso combinado com a dívida do estado acabou transformando toda a região nessa enorme plantação. Milênios de história natural erradicados em duas décadas.
  • Nossa, quando você fala assim parece que te deixou triste. Mas você falou que não ligava.
  • Essa última frase é da Luíza. Eu gravei no meu computador na época.
  • Mas porque você não liga?
  • Segundo ela, porque eu fui reduzido a um robô. Porque eu não tenho mais emoções.
  • Nossa, mas você é a pessoa mais emocional que eu conheço.
  • Bem, precisei que ela me abandonasse e morresse pra ter emoções, eu acho. Eu era diferente na época.
  • Mas porque você não liga, então?
  • Porque eu mandei uma equipe no local e registrei toda a diversidade genética do local. Eu previ o desmatamento e resgatei as informações antes que elas fossem perdidas. Qualquer um pode ir no Kalahari e encontrar essa floresta.
  • Nossa, pensei que as terras da liga eram mais pro norte.
  • O mundo é da liga.
  • Hahahahaha! Entendi. Tem que vender seu peixe, né?

Por um momento eu esqueci que ela é só uma civil que não sabe de nada. Tanto tempo se passou em que eu só me comunicava com pessoas que sabiam de tudo da liga que esqueci. Passar essas informações pra ela poderia acabar resultando na neuralização da pobre moça. Não tive escolha a não ser mudar de assunto.

  • Seu nome é mesmo Luíza?
  • Não nasci com esse nome, mas mudei oficialmente.
  • Nasceu com que nome?
  • Heloísa.
  • E mudou só por causa da Luíza?
  • Em homenagem a ela, quando ela faleceu. Eu quis que algo dela vivesse em mim.

“Que algo dela vivesse em mim”! Quanto dessa mulher viveu em mim? Ela me conheceu antes de tudo. Antes de eu ser reconhecido pelos trabalhos de neurointerface e os sistemas de reparo neural. Ela conheceu um rapaz que não sabia o que queria da vida e sonhava apenas em ter uma família. Foi o que ela gostou em mim, afinal. Um homem de família dedicado e fiel. Não fui uma coisa e nem outra. Ciência foi o nome da minha amante e por causa dela eu abandonei minha família e fui parar no meio do continente africano. Dois dos meus três filhos foram atrás de mim e até conseguiram o lugar deles na liga. Mas eu tinha vergonha de falar com eles depois de todo o mal que representei na infância deles. Um pai ausente, um pai que faz a mãe chorar. Um pai que era um mundo de promessas que nunca se concretizaram. O que eu diria pra eles? “Desculpe, filhos, mas a ciência é mais importante do que vocês”? Emanuel seguiu um caminho sombrio. Entrou naquele departamento de defesa e eu nem quis saber que tipo de treinamento ele estava recebendo. Minha filha entrou no grupo de preservadores da biodiversidade marinha e ocupa ali seu cargo por anos. Um cargo que ela sempre quis, embora dificilmente vá resultar num avanço tecnológico que dê a ela o poder que seu intelecto merece. Mas ela tem um filho. E ele é feliz. Voltei a ser jovem, mas não voltei no tempo. Eu não posso mais ser um bom pai, mas posso pelo menos não estragar a felicidade dela com a minha presença. Meu filho mais velho, Frederico, se tornou um empresário e não troca uma palavra comigo a anos. Tudo isso me consome por dentro.

  • Mas e aquela Mônica que você falou? Não foi por caus dela que a Luíza de largou?
  • Você não para de fazer perguntas! Parece que está me fazendo de objeto de estudo!
  • Conta!
  • Não, a Mônica e eu nem éramos assim tão próximos. Ela era muito livre e dava as caras quando queria. Foi a única que continuou me visitando na região swahili até o fim. Ela aprendeu a língua de lá, que eu só aprendi em homenagem a ela...
  • Porque não aprendeu antes?
  • Meu endocomputador faz tradução em tempo real de praticamente todas as línguas conhecida. Não há mais necessidade de aprender línguas novas. Basta que você fale uma bem...
  • Então é daí que vem seu sotaque! Você fica falando certinho pro seu endocomputador traduzir o que você diz, daí fica estranho assim!
  • Bem... Eu... Eu nunca tinha pensado nisso, mas suponho que seja verdade. Eu ajustava minha fala pra evitar erros de tradução. Não sei se hoje em dia isso ainda seria necessário, mas acabou que miha forma de falar se moldou por isso.
  • Vem, vamos sair daqui.
  • Porque?
  • Vai começar a entrar gente, vem logo!

Nós saímos e os vagões se encheram pelas portas do outro lado. Pelos gestos e roupas, estavam usando o vagão pra ir a algum evento esportivo. Quem sabe preferiam ir sentados no maglev que balança do que ir espremidos na linha expressa! Ela me puxou por ruas sujas e limpas ao mesmo tempo. É muito difícil descrever. Não tinha lixo no chão, mas fedia como se tivesse. Como seja sujeira estivesse disfarçada pra quem vê de longe, mas não pra quem mora por ali. Meu endocomputador começou a sugerir rotas de fuga e aí percebi que estava na zona pobre da cidade.

  • Vem, vamos na minha casa – ela disse
  • Você mora por aqui? - perguntei tentando esconder a surpresa
  • Algum problema?
  • Não, é que... Você reconstruiu seu corpo. Como...?
  • Meus pais pagaram. Antes de eu sair de casa e tomar as rédeas da minha vida. Ta querendo ir embora? - ela perguntou num tom agressivo

Se ela tinha algo em sua linguagem corporal que lembrava a outra luíza era sua raiva. Tentei fazer o que eu fazia com a antiga.

  • Está de TPM, por acaso?
  • Eu não tenho ciclo menstrual. Ta achando que eu sou louca?

Depois dessa, desisti por completo de comparar as duas Luízas. A aparência era a mesma e o nome também, mas todo o resto era diferente. A semelhança era uma homenagem, não uma tentativa de imitar, como pensei inicialmente. E eu estava gostando dessas diferenças. De alguma maneira, mesmo com toda a estranheza, ela era fascinante.

  • Então, quebrando esse silêncio constrangedor e essa cara de maluco que você estava fazendo, me conta do seu trabalho?
  • Bem... Eu era chefe do departamento geral de reparo e interface neural. Fazia pesquisas, orientava pesquisadores. Não quero falar disso, Luíza.
  • Ah, dessas coisas eu sei. Eu quero saber porque seus filhos detestam você.
  • Porque...

Virei e vi um menino com uma camisa monocromática. As imagens da camisa, além de não terem nenhuma cor, reproduziam um video como se fosse uma sequência de fotos em slides. Ele devia ter uns 4 anos e estava tentando mudar as configurações da blusa como se isso fosse resolver algo. Ele conseguiu entrar em configurações bem avançadas, era um menino brilhante. Mas inocente demais pra saber que aquela camisa gratuita jamais poderia atender aos seus desejos.

  • Quem é esse menino? - perguntei
  • Ah, é um dos órfãos do comando
  • Comando?
  • Eles são criminosos que mandam em tudo por aqui. Todos os órfãos são recrutas deles.
  • O que?! Mas eles não podem usar robôs?
  • Até tentaram, eu soube, mas robôs deixam as operações deles mais expostas. Pessoas não podem ser controlada remotamente.
  • Entendo. Mas o que esse menino vai se tornar? Ele é tão esperto...
  • Vai ser um vendedor de sangue de vênus
  • O que?
  • É um sangue que te deixa drogado por dias.
  • Você sabe a composição desse sangue? Isso não tem como ser seguro pra um organismo sem modificações.
  • E não é. As pessoas morrem e, antes disso, vagam por aí como se já estivessem mortas. A maioria dos vendedores acaba viciado ou morto também.
  • Então esse é o destino desse menino?
  • Acho que sim. Não há o que fazer, sabe? O Comando não abre mão de nenhum órfão. E ele está aí pra fazer mais órfãos.

Eu não sabia o que fazer. Meu coração acelerou. O que a Luíza teria feito? Achei um ponto de entrega de produtos e encomendei roupas com potencial de projeção e holograma. Alguns segundos depois a roupa chegou. Luíza ficou olhando pra mim, com um sorriso meio confuso. Configurei a roupa pra ficar do tamanho do menino e fui até ele.

  • Oi, rapazinho, qual é o seu nome?
  • Rapazinho não, eu sô sujeito hombre!
  • Você quer uma roupa legal, hombre?
  • Não to vendendo sangue não, moço. Vê com o tônio ali no fim da rua.
  • Não quero sangue não. É de presente

Os olhos do menino se arregalaram, mas logo ele se conteve.

  • Essa roupa dói? Porque se doer eu vou te pegar!
  • Não dói não, você vai ver.

Com a inocência que só uma criança desse tamanho pode ter, o menino vestiu o traje, que cobriu todo o seu corpo. Em alguns minutos ele já estava assistindo vídeos coloridos. Ficou tão entretido em descobrir o que a roupa podia fazer que esqueceu que eu existia. Fiquei contente, mas lembrei de uma fala da Luíza: “Essas pessoas vêm aqui e dão brinquedos e dinheiro pra essa gente pra se sentirem melhores, mas não fazem nada pra mudar essa porcaria. São todos hipócritas!”
Minha alegria durou pouco e decidi subir com a Luíza nova. Percebi que ela tinha esse efeito de me acalmar, como a Mônica fazia, com a diferença de que eu não sentia como se ela fosse desaparecer a qualquer momento. Fugi pra um refúgio novo e gostei da sensação.

  • Cuidado com essa escada, tino. - ela falou meio distraída
  • Do que você me chamou?
  • Tino, ué. Seu nome é muito grande!
  • Eu chamava a Luiza de lulu. No começo ela detestou, mas com o tempo acostumou. - falei deixando escapar um sorriso

Quando eu lembrava lá do começo da relação, tudo parecia tão tranquilo e positivo. O tempo vai passando e as coisas vão mudando lentamente sem percebermos o que aconteceu. De repente, tudo estava um inferno.

  • Vem logo, tino, tá esperando o que?

A escada era muito estreita e íngreme. O ambiente era todo meio escuro e claustrofóbico, então tentei subir rápido e tropecei, mas acabei chegando. Quando ela fechou a porta eu parei pra observar o apartamento. Um cubículo com três cômodos, se é que aquele banheiro poderia ser chamado de cômodo. Estava tudo bagunçado e não tinha nenhum robô pra arrumar o lugar, mas ainda assim era tudo bem limpo.

  • pode ligar a TV se quiser! - ela gritou do banheiro como se estivesse bem longe

Usei meus óculos pra acionar a TV e enquanto mudava de canal, me deparei com a mesma coisa em todos. Ela só tinha canais gratuitos e todos relatavam um atentado terrorista. Parei pra ouvir enquanto esperava ela sair. O programa ofereceu a exibição de um video e eu tive a idiota ideia de assistir. Mais cedo ou mais tarde eu descobriria, mas quando eu vi, meu coração parou.

Em menos de um segundo, vidros foram quebrados em vários prédios, pessoas foram despedacadas como se fossem feitas de areia e três dos mais poderosos líderes da américa do norte foram publicamente neuralizados. Quando eu vi a agua do mar subindo e formando aquela trilha no oceano eu não tive dúvida: aquilo foi obra da liga.
Nos meus últimos dias como membro eu fui visitar o departamento de defesa pra falar com meu filho, mas ele estava imerso em realidade virtual pra treinamento. Então eu vi o trabalho deles. Estava criando um trajo monstruoso capaz de suportar todo tipo de estresse químico e físico. E não só isso. Aquele rapaz, aquele moleque brilhante do departamento de física conseguiu alterar o tempo/espaço. Em uma câmara isolada ele conseguiu produzir petróleo a partir de restos de fitoplancton. Ele quase foi expulso por ficar um ano consumindo tanta energia com aquela máquina, mas com esse e outros experimentos ele provou que é possível entrar em uma espécie de hiper-tempo e que, dentro da câmara, se passaram 36000 anos. Vi pessoalmente os resultados do espectrômetro de massa. Quando eu vi aquela notícia, associei tudo: ele fez um traje capaz de produzir aquele “hiper-tempo” e manter um ser humano vivo dentro dele. E um dos seres humanos em treinamento ali era meu filho!
O mundo começou a girar, meu estômago embrulhou a fui até a janela, pensando que ia vomitar. Eu não queria acreditar que aquilo era possível...
Lá fora, vi o menino com meu traje. Ele produziu um holograma de algum super-herói da atualidade, que parecia uma mistura de homem com dragão e saiu correndo e soprando fogo holográfico pela vizinhança. Talvez eu devesse ter dado um traje desse pro Emanuel. Ou talvez eu devesse simplesmente ter dado um pouco de mim...

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