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Gênese de opostos - Parte 2 (extra)


Frederico Peçanha - 2041

A vida deu voltas, girou com o mundo. Certamente ela não aprovaria o que estou fazendo, o que eu me tornei. Mas o que começou como uma reação à morte dela se transformou na minha libertação. Seria muito irônico se eu me transformasse em uma pessoa melhor por uma pessoa que, no fim das contas, me usava como uma ferramenta. Finalmente cheguei num ponto em que tudo o que era belo nela se transformou num retrato da sagacidade feminina: nós dois éramos dependentes dela e, sob seu feitiço, fazíamos tudo o que ela precisava. A quantidade de tempo que perdi me revoltaria se hoje não me servisse de lição.
Tudo começou com aquele tiro na cabeça, que virou meu mundo de cabeça pra baixo. Nós tínhamos nossas indas e vindas numa relação escondida e eu não esperava um final feliz, mas também já tinha desenvolvido certa dependência por ela. Meu mundo se desestruturou. Fiquei pensando em tudo que eu podia ter feito, já que eu tinha me transformado efetivamente no guardião dela, resolvendo seus problemas e suas ânsias. Mas não pude protegê-la da morte, porque aceitava as barreiras morais dela. Se eu tivesse dado passos além das exigências que ela fazia, estaria armado naquele dia. Porra, eu teria alguém de olho nela o tempo todo e pronto pra neutralizar qualquer risco junto comigo. Mas lá estava eu, sem o recurso da violência, sem segurança particular, sem ódio: desempoderado por uma mulher.
Quando comecei essa “escalada” que é minha vida hoje, a minha desculpa era que eu precisava de poder pra nunca mais deixar algo assim acontecer. Mas o tempo passou e eu fui percebendo que isso nunca mais ia acontecer simplesmente porque eu nunca mais amaria ninguém como a amei. Na realidade, as únicas relações honestas que eu pude ter foram com prostitutas e elas duraram a quantidade de dinheiro que eu investi. Com o tempo, fui aprendendo sobre as mais diversas formas de se exercer poder e entendi a sedução. Reconheci que ela efetivamente mudou seu comportamento pra me seduzir e me usou. Não que tenha sido ruim, muito pelo contrário, mas não era coerente com aquela aura angelical que ela gostava de passar e que Emanuel comprou. Ela era um diabinho e nos fazia de marionete para suas conveniências. Sabe-se lá quantos mais ela tinha!
Eu pensei que sentiria desprezo, mas isso tornou a memória dela muito mais admirável. Ela deixou de ser a menina indefesa que eu protegia e comia pra passar a ser uma mulher que me manipulou e usou meu poder como bem entendeu. Ela me fez entender que poder é um fenômeno amplamente psicossocial: ele está exatamente onde as pessoas acreditam que ele está. Dinheiro, conhecimento, sedução, networking! Ela foi minha mestra e me ensinou a brincar...
Naquele dia eu dei o meu primeiro grande passo na minha escalada. Esperei a morte dela completar um ano pra fazer tudo acontecer, com todos os documentos prontos. Disse pra toda a equipe que estava ocupado, mas que hoje tudo sairia. Eles desenvolveram um sistema bem eficiente para a manipulação de recursos hídricos capaz de converter grandes quantidade de água salgada ou até poluída em água potável. O projeto mais promissor de toda a universidade, idealizado e abandonado por Emanuel. Nanorremediação tão eficiente que a liga demonstrou interesse em comprar a patente do projeto. Claro que a equipe era estúpida demais pra entender que você não bate de frente com a liga. Convenientemente, entrei no grupo por indicação do Emanuel bem antes de ele abandoná-lo e passei a cuidar de suas burocracias. Vivemos no Brasil, a nação das burocracias onde você precisa ser artista pra manejar todas as regrinhas, fichas e subornos necessários pra fazer tudo fluir bem. Eles passaram a me amar por eu fazer tudo funcionar tão bem e conseguir levantar recursos pro projeto dentro da universidade. Não entendiam o jogo que eu estava jogando e nem o envolvimento da maior facção criminosa do país naquilo tudo. Pra eles, era só a ciência, eram só resultados, era o fim da sede no mundo. Como eles chegaram a acreditar num absurdo desses eu honestamente não entendo.
Fiquei sentado dentro do meu carro depois de tudo estar pronto, esperando Reginaldo chegar com seus protestos. Deixei que ele descobrisse que a patente do projeto estava sendo registrada no meu nome exatamente quando todos os outros membros do grupo estavam numa excursão pro Piauí. Ele não era exatamente o tipo de pessoa que para pra pensar e, pior de tudo, era ex-militar treinado. Ele chegou mais ou menos uma hora antes do que eu planejei, mas tudo já estava pronto.

- Fred, que porra é essa aqui? Tá de sacanagem com a minha cara?! Você criou a tecnologia sozinho, agora? Um administrador especialista em nanotecnologia?
- Calma, Reginaldo, eu posso explicar – falei tentando fingir medo
- Explicar? É o caralho, filho da puta! Eu vou acabar com a sua raça!

Quanto mais eu pedia pra ele se acalmar, mais nervoso ele ficava, exatamente como eu esperava. Estávamos numa rua deserta e eu precisava que ele parasse de perceber as coisas em sua volta pra fazer as coisas funcionarem. Não foi muito difícil: em alguns minutos ele correu na minha direção. Nem precisei correr muito: ele veio na minha direção, seu foco em seu alvo, e finalmente deu abertura pro meu atirador de elite aparecer numa janela e atirar o dardo tranquilizante.
Matá-lo foi uma pena: ele era único. Fizeram alguma coisa com ele no exército que o tornou extremamente alerta e detalhista. Ele conseguiu matar dois atiradores meus de maneiras absurdas que desafiam as crenças gerais sobre a capacidade perceptiva humana. Se ao menos eu pudesse fazê-lo entrar na minha equipe! Mas não, o desgraçado era filho de dois advogados e, por incrível que pareça, eram honestos e viviam numa luta contra a União. Aquela facção, que, com seu nome, pretendia desafiar a própria soberania do estado com seus atos de terrorismo por todo o país, estava dificultando os meus negócios com a liga praticamente em toda a região sudeste. Eles precisavam cair, mas não queríamos guerras sem fim. Eles tinham um ciclo de vida curto, morte fazia parte da estrutura da facção. Aos 20 anos de idade, boa parte dos homens já tinha dois ou três filhos e a maioria deles seguia o legado do pai até a morte. Era necessário eliminá-los com alguma estratégia mais estrutural, então entrei em acordo com eles pra resolver esse problema e cimentar de vez minha relação com a liga. Conheci muitos que não confiaram no poder que essa instituição estava construindo, especialmente porque não tinha tanto conhecimento sobre a quantidade de acordos lucrativos secretos que eles estavam estabelecendo. Pensavam que se tratava de um grupo inofensivo de cientistas, mas, pelo que eu vi na minha vida, cientistas nunca são inofensivos. Criaram a boma atômica, robôs de guerra, neuralização! O colete à prova de balas que uso todos os dias é a prova de que, nos dias de hoje, quem possui conhecimento e tecnologia é quem dita as regras. E eles sabiam muito bem disso. Disponibilizaram 50 homens treinados e bem pagos pra eu realizar a limpeza da cidade e, posteriormente, do país desse empecilho. Bem mais do que eu precisava, é claro, mas eles não sabiam qual era meu plano. Cientistas têm o hábito de não entender tão bem a sociedade que os rodeia...
Com Reginaldo preso, sua família estava toda desprotegida e convenientemente reunida num churrasco de páscoa. Muitos, inclusive, estavam tão bêbados que foram apenas carregados pra fora da casa. Fiquei esperando no carro enquanto a casa era cercada e todas as pessoas eram levadas em plena luz do dia. Pessoas na rua viam o que estava acontecendo e se limitavam a correr por suas vidas, confirmando o que eu esperava. Sob efeito de tranquilizante, álcool ou simplesmente pancadas na cabeça, todos foram levados desacordados e a polícia local estava devidamente “à bordo” da situação, de maneira que liberaram todas as estradas para as diversas rotas que as vans tinham planejado e tudo correu bem, fora em um dos casos em que um dos nossos motoristas foi morto por um passageiro. Não havia seguranças no veículo e ele carregava outros membros da família, mas decidiu ser herói e seguiu a rota indicada no GPS do carro. Foi cômico ver o homem sair da van atirando com um velho M-17 como se fosse causar algum dano com aquela arma. Acabou causando nosso primeiro acidente de percurso, quando a van em que ele estava acabou explodindo no meio da troca de tiros, matando ele e os demais tripulantes. Ficaram torrados, é verdade, mas não conforme o planejado. Mas, como dizia mamãe, tudo tem um lado positivo: com essa morte, os homens ficaram cheio de ódio e fizeram seu trabalho de tortura com mais vontade, deixando belas marcas no corpo.
O local onde tudo foi realizado era uma grande fazenda de propriedade da Liga enquanto instituição, o que mostrava a consideração que eles tinham sobre a autoridade do Estado. Ela ficava no interior de Minas Gerais e tinha um depósito com exatamente o tamanho necessário para manter 50 pessoas cativas e bem presas. Todos os ferros estavam prontos e aquecidos com o símbolo da união: duas mãos e uma corrente as prendendo. Nunca me perguntei o que essa merda significa até o dia em que vi pessoas esquentando ferro na brasa e marcando toda uma família como gado. Aquele cheiro de carne queimada era estranhamente apetitoso. Não que eu tenha pensado em comer carne humana, é claro, mas quando você sente o cheiro de uma pessoa queimando na sua frente, você lembra que não somos mais do que animais como qualquer outro: E estamos no topo da cadeia alimentar. Ouvimos todos os gritos, todas as súplicas desesperadas por piedade. Pessoas tentando morrer no lugar uma da outra como se alguém fosse sair dali vivo. Seria comovente se não fosse cômico. Deixamos Reginaldo por último, porque eu queria ver até onde o treinamento militar o ajudaria a suportar a tortura. Infelizmente, no entanto, ele não durou muito. Acordou gritando, parecia raivoso e confuso, até olhar em volta e começar processar a informação. Alguns segundos se passaram e a luta dele acabou. No momento em que aceitou que toda a sua família havia sido torturada e morta pelos meus homens, todo o brilho desapareceu de seus olhos. Ele estava morto em vida e aquilo de alguma forma me incomodou tanto que acabei dando um tiro na cabeça dele antes de fazerem as marcações, contrariando o plano. Ver aquele cara que era tão cheio de vida se entregar daquele jeito foi desagradável em um nível intenso demais e eu nunca mais esqueci aquele olhar perdido. E bem, o plano era meu: qual é o sentido de se criar um plano se você não pode modificá-lo segundos suas próprias conveniências?
Depois disso, o plano continuaria sem mim, então fui resolver meus problemas menores. Em uma das minhas franquias de fast food, meu gerente decidiu abrir mão de seu cargo e estava apontando outro funcionário para ocupar seu lugar. Foi quase premonitório que ele tenha saído justo no começo dos anos de sangue, se livrando de todo o perigo que estava bem diante dele. De qualquer forma, eu precisava fazer meu papel e informar o novo gerente sobre suas novas atribuições. O homem baixinho e já ganhando peso com o novo emprego parecia apavorado com a minha presença. Seu cumprimento foi quase uma homenagem, com cabeça baixa e olhos no chão.

- Bom dia, senhor – ele disse
- Vejo que você está assustado. É bom mesmo que você demonstre o mínimo de sabedoria.
- Desculpe, eu não entendi?
- Geralmente eu tomo mais tempo pra apresentar suas condições, mas hoje não vou ter como. Aqui estamos na sua reunião de promoção e são quase 4 da manhã. Eu quero dormir, então vou ser rápido e explicar sua situação. Você estará sob constante vigilância de câmeras e todas as transações e lanches servidos serão registrados pelo robô central. Se for verificado deficit entre o caixa e as transações, você vai pagar com a sua participação de lucro e descobrir quando e como ele foi produzido. Identificado o funcionário, ele deve ser entregue a mim. Se você proteger seus funcionários, será tratado como o culpado.
- E o que acontece com o culpado?
- Bem, esse é um tipo de coisa que você entenderá melhor vendo do que ouvindo. Mas deixe que eu coloque dessa maneira: não é nem um pouco agradável e é irreversível.

O homem pareceu assustado. Provavelmente ouviu boatos de funcionários desaparecidos, mas, como nunca foram feitos boletins de ocorrência, foi como se nunca tivessem ocorrido. Viraram aqueles boatos que ninguém sabe de onde saíram e que provavelmente são um exagero da imaginação coletiva. Não nesse caso, é claro.

- É pra eu desistir do cargo que você está falando isso?
- Não, é pra você entender o que está em jogo. O risco grande vem com recompensa grande. Você tem total liberdade para deixar o cargo, dado que comprove que não houve nenhum desvio de caixa, se você encontrar alguém pra te substituir. Nesse cargo, seu pagamento será uma participação de lucro de 40%. A média mensal desse mês foi de 20 mil, certo Messias?
- Isso mesmo, seu Fred. O negócio melhorou depois da reforma.
- Então eu ganharia o que, 8 mil por mês?
- Não, 20 mesmo. Isso é 40% do lucro mensal. É uma franquia grande, sabe?

A mistura de cobiça e medo nos olhos dele me disse o suficiente. Ele estava contratado e teria exatamente a mão de ferro que eu precisava.

- Então porque o seu Messias está saindo?
- Ele ocupou esse cargo por 5 anos e economizou bastante. Eu admiro homens de ambição e ele quer andar suas próprias pernas. Está cumprindo nosso acordo até o fim e terá meu suporte com seus empreendimentos futuros. Entenda, Joaquim: você vale tanto quanto a sua palavra. Se você a quebra, eu te quebro e ponho alguém confiável no seu lugar. Não é nada pessoal, entende. Eu tenho projetos maiores e preciso manter essas franquias como uma fonte estável e constante de renda pra usar como capital de giro. Estou certo de que você entende não tenho tempo pra perder administrando franquia de fast food e lidando com vegans protestando.
- Entendo. Eu aceito o cargo de bom grado e faço da minha palavra o meu valor.
- Haha! Você mandou ele dizer isso, Messias?
- Eu falei que disse isso pra meter um medo nele. O cara decorou! Esse aí quer mesmo o emprego!

Coloquei a caixa de cerveja na mesa e dei uma larga risada daquelas bem treinadas.

- Bem, chega desse papo chato. Vamos jogar um truco, porra, porque a noite já tá acabando!

Cada um deles pegou uma lata e bebemos e jogamos pra assistir o tempo passar. Lá pras 5 da manhã os dois estavam dormindo nas mesas do estabelecimento, que não abriria em virtude do feriado e eu liguei a TV. Era minha mãe falando:

- Mas é exatamente isso que estou propondo, Arnaldo. O hábito de lutar contra as influências nocivas do poderia econômico nos deixou cegos, deixou nosso pensamento estereotipado. Esse maniqueísmo absurdo está nos impedindo de perceber essa nova classe de poder que parece estar chegando pra ficar: os cientistas! - ela disse
- Os internautas estão perguntando, em tom de brincadeira, o que o seu marido acha dessa sua resistência aos cientistas!
- hahahahahahaha! Bem, casamento nenhum é perfeito, certo?

As risadas foram intensas, mas com a insipidez típica dos acadêmicos com sua polidez intelectual.

- Negócio familiares à parte, você pode elaborar melhor essa conversas de cientistas do mal? - perguntou o jornalista.
- Sim, claro. São inúmero exemplos! Pense nas atividades recentes dessa tal liga dos cientistas.
- Da qual seu marido faz parte e que foi responsável pela cura da epilepsia?
- Sim, meu marido faz parte e ele mesmo me explicou, em termos simples, que essa cura ainda carece de testes de longo prazo. Reclamou, inclusive, a forma sensacionalista que o tratamento foi mencionado na mídia, apesar de que eu vi a diferença na vida de dois amigos epiléticos que tenho. Mas não é disso que estou falando. Por trás de curas e soluções energéticas, ele têm acumulado conhecimento, informação, que não está se tornando patrimônio público.
- Você tem algum exemplo disso?
- Sim, claro, tenho vários. Pense nesse novo elemento que está sendo extraído de marte. Está sendo chamado de Marsídio e, aparentemente, pode formar ligações mais fortes do que qualquer outro elemento na terra. Se entendi bem, com caldeiras bem quentes você consegue desfazer ligações que ele forma e evaporar todos os elementos comuns que ficam ligados a ele, fazendo com que ele forme cadeias literalmente inquebráveis. E o mundo ficou chocado quando um grupo de terroristas jogou um avião contra o prédio central da liga e ele teve apenas vidros quebrados. Que metal é esse, que só esses cientistas usam?
- Bem, é comum que materiais novos em fase experimental sejam de uso apenas dos cientistas.
- Com todo respeito, Arnaldo, você não pode estar querendo sugerir que o Marsídio é “experimental” e, ainda assim, é usado como escudo a prédios vitais. E não pode também estar sugerindo que os únicos cientistas do mundo pertencem à liga, já que são apenas esses cientistas que trabalham com esse metal.
- Mas diversos países também compraram Marsídio do assentamento um em marte. Não são só os cientistas da liga que possuem esse elemento.
- Acontece que o cientista que foi responsável pela descoberta desse elemento é da liga e não está compartilhando a informação. E mais: apenas China, Coreia e japão não venderam suas reservas de marsídio pra liga. O material é extremamente pesado e foi comprado de outro planeta, acarretando gastos imensos que não foram compensados, já que só a liga conseguiu o nível de pureza adequado pra dar a este as suas propriedades mais assombrosas. A caudeira que eles construíram é tão grande que você pode vê-la por satélite de baixa resolução. O que me assombra mais é que tem um grupo de cientistas dominando uma tecnologia tão importante, retendo para si próprios os benefícios dessa tecnologia e ninguém diz nada! Eles poderiam ganhar bilhões comercializando Marsídio, mas não parecem estar fazendo um investimento econômico.
- Exatamente esse é o ponto. Com os gastos elevados que eles estão tendo na produção desse metal, é bem óbvio que dinheiro de premiações nobel e patentes não segurará a estabilidade econômica da instituição. Eles vão falir muito em breve e os investidores estão começando a ser dar conta disso.
- É exatamente aí que está o ponto do meu livro, Arnaldo. Eles não vão falir. Se você retomar o significado mais basal do dinheiro, vai entender que ele significa poder. Se você o possui, você adquire produtos e faz coisas acontecerem. Houve um tempo em que se usava outros tipos de influência, como a religiosa, pra realizar interesses de indivíduos, mas chegamos num ponto em que até os líderes religiosos precisam retirar dinheiro dos fiéis, porque a religião como fonte de poder está entrando em extinção. O que as pessoas não estão percebendo é que, com tecnologia da liga e de fora, estamos chegando na era da abundância. Continuamos melhorando nossos métodos de produção e distribuição de bens de consumo enquanto que um fenômeno cultural fez com que nossa população não aumentasse proporcionalmente. Com a abundância de recursos, reduziu-se a desigualdade social e foi se tornando cada vez menos importante ter dinheiro. Hoje nós temos que até os empregos pior remunerados são suficientes pra um indivíduo ter casa própria, um carro, alimentação de qualidade! Os nanomateriais revolucionaram todos os mercados mais restritos e isso mudou os eixos de poder do mundo. Tanto isso é verdade que o Marsídio da Arábia Saudita foi vendido não em troca de dinheiro, mas de informação: eles queriam ter cientistas treinados pra produzir água potável em abundância pra sua população. Foi um acordo em que os investimentos financeiros se resumiram em gastos de transporte, alimentação e hospedagem! Você, há décadas atrás, imaginaria que uma transação dessas envolveria bilhões de Dólares e especulações do mercado, mas não foi isso que aconteceu. Foi uma troca direta, uma troca que desconsiderou por completo a importância do dinheiro! Talvez seja essa a mensagem da Liga com esse mega-projeto do Marsídio. Mostrar pra Wall Street que suas muralhas de dinheiro já não são fortes o bastante. Minha proposta, Arnaldo, é que estamos diante de uma revolução, uma mudança fundamental nas estruturas da sociedade. Se passamos, e certo ponto, da Era de Reis para a Era do capital, estamos agora chegando em uma Era tecnocrática, que pode ser ainda mais impiedosas do que aquela que a precedeu, porque não só controlará os recursos e monitorará toda a nossa vida, mas também terá controle sobre o desenvolvimento de nossas crianças pra decidir o que elas podem ou não pensar. Estamos diante de uma enorme ameaça a qualquer ideal de sociedade livre, de uma besta logosófica que ameaça nos devorar sem o mínimo de aviso!

Já perdi a conta de quantas coisas eu já aprendi com a minha mãe. As vezes, eu ficava com a impressão de que eu era o único que realmente entendia essas ideias dela, que leu mais de uma vez os livros que ela escreveu. Depois de toda a tragédia da família, ela fugiu pro trabalho e eu fui atrás dela pra descobrir todos esse segredos magníficos que ela investigava. A sociologia do poder, que Mistura Foulcault com Marx e Feyerabend pra mostrar pro mundo que os heróis da civilização estão se transformando em algozes, em tiranos! É claro que ninguém ouve o que ela diz e que 500 páginas são algo inaceitável pra uma geração que cresceu lendo apenas 144 caracteres, então acabou que eu fui uma as poucas pessoas a entrar em contato com esse segredos que realmente pôde fazer algo a respeito. Não que ela fosse ficar orgulhosa do que eu acabei fazendo com suas ideias, provavelmente ficaria enojada, mas pessoalmente eu a considerava uma heroína pessoal.
O sol começou a nascer e chegou a hora do meu anúncio. Seria um momento de transição em que os amigos do Emanuel finalmente descobririam quem eu sou e do que sou capaz. Eu mentiria se dissesse que não gostava de ser tratado como se fosse um herói. Mesmo que, no fundo, eles só me vissem um mero burocrata estúpido. Eu fazia minha mágica (ou pelo menos eles pensavam que era mágica) e os recursos da universidade apareciam, tornando todos os aspectos mais improváveis do projeto possíveis. Investi bastante dinheiro, tempo e favores pra fazer essa ideia do Emanuel acontecer porque entendi o momento político. Pinkman facilitou meu acordo com a liga por essa patente em troca do Marsídio do mercado negro brasileiro e mais a quantia básica em dinheiro. Estávamos tão bem de acordo que eles venderem a patente da antiga técnica de purificação de água pra obviamente ser vazada pro resto do mundo. E não já não importava quantos processos eles abrissem contra mim: nunca houve um registro de patente no nome daquele grupo de pesquisa. Era uma patente minha que foi “vendida” para a liga, cimentando de uma vez por todas as minhas relações com esse grupo. Muitos diziam que Pinkman é um louco que apenas recebe algum respeito por causa de seu total e rápido domínio sobre o Marsídio, mas eu conheço um homem ambicioso quando vejo. Ele dominou o Marsídio e, ao invés de produzir bens de consumo e patentes com isso, começou a formar uma rede dentro da liga, ensinando outros cientistas e fazendo contribuições vitais pras suas pesquisas. De uma maneira parecida comigo, ele formou uma rede de subordinados poderosos, cuja ascensão dependeu dele e que cederiam recursos de pesquisa sem questionar. Eu sabia que as motivações dele não eram simples, sabia que ele queria algo muito maior e certamente queria estar do lado certo quando os planos dele se concretizassem. Nós dois eramos muito parecidos a esse respeito: estávamos escalando em busca de muito mais poder do que tínhamos, que no foi dado. A diferença é que ele queria o poder de mudar, de controlar os aspectos mais fundamentais do que se entende por realidade, enquanto que eu me contentava com minha ânsia indeterminada.
Fui até aquela sala de reunião onde o projeto foi pensado, discutido e, em última análise, desenvolvido. Cadeiras espalhadas mostravam bastante da dinâmica informal que eles formaram. Um vínculo que os ajudou a realizar o trabalho de maneira mais eficaz, mas que também os tornou mais idiotas quando a respeito de qualquer outro integrante. Eu os vi contrariarem a evidência para defender um ao outro como se fossem parte de algum culto religioso. Podiam estar na fronteira entre o passado e o futuro e fazendo história da ciência, mas ainda eram primatas como qualquer outro, com seu instinto de bando. E não existem grupos sábios: grupos são sempre nivelados pelo ponto mais baixo da média dos indivíduos. Não é tão surpreendente, afinal, que esse fosse um dos poucos grupos relativamente grandes de pesquisa a realmente funcionar tão bem, quando normalmente uns três pesquisadores com seus robôs já bastavam pra ocorrerem conflitos.
A primeira a entrar na sala foi a Juliana, justamente a pesquisadora mais emocional do grupo e que era informalmente responsável por organizar as confraternizações do grupo. Quando me viu, parecia em pânico e com raiva ao mesmo tempo. Sua respiração estava acelerada e seus punhos cerrados enquanto todos os outros do grupo foram entrando, visivelmente confusos com a minha presença.

- O que você tá fazendo aqui? Cadê o reginaldo?! - gritou Juliana com lágrimas nos olhos

Eu até pensava em fazer um discurso antes, mas como ela decidiu ir direto ao assunto, apenas liguei a TV e deixei que eles vissem por si próprios. O espetáculo estava montado de praticamente todas as velhas emissoras de TV estavam cobrindo aquele massacre em seu desesperado intuito de conseguir de volta a audiência perdida. Abandonaram todo o pudor em seu sensacionalismo e era justamente com aquilo que eu contava. Como sempre, o jornalista apareceu pra comentar, mas até esse que costumava fazer espetáculos de raiva falsa estava chocado com a mensagem que deixei. Mas ele tomou forças pra falar:

“É assombroso, inacreditável. Se você ligou sua tevê agora e está se perguntando o que aconteceu, te conto agora: 50 pessoas, uma família inteira! Foram todos torturados, mortos e postos pra exibição! Que tipo de monstro faria, isso, me perguntam? Que tipo de monstro mataria crianças, idosos, uma família inteira?! Mas eu sei o que aconteceu, meus espectadores sabem o que aconteceu! Esse homem, Reginaldo da silva, de 35 anos, e toda a sua família vinha enfrentando a União. Não a do governo, mas a união de tudo o que há de podre no nosso país. Sem apoio do Estado, que nunca deu conta dos hackers desses marginais, ele e seus familiares lutavam por própria conta e risco contra essa corja! Isso enquanto o Estado se dá o direito manter em sigilo todo o sistema de monitoramento que mal funciona e pessoas filmando com seus óculos trabalham mais do que eles! Isso, meus caros, é uma mensagem dessa corja de criminosos. Estão nos dizendo que nosso governo, nossa polícia, nossos impostos não podem nos salvar. Isso, meus caros, é o preço da impunidade, é o preço de um sistema de vigilância que não funciona. Querem dar argumento, que é privacidade isso, direito a imagem aquilo. Mas nós estamos dando privacidade pra BANDIDO roubar, matar, sequestrar! Cadê as filmagens dessa atrocidade? A central da prefeitura parou de funcionar, como sempre acontece quando esses, me desculpem o termo, filhos da puta aparecem pra infernizar a nossa vida! Quando esses desgraçados vendem drogas na porta das escolas dos nossos filhos! Aí é que as câmeras falham! Cadê a privacidade da Josane, a empregada que ficou bêbada e tirou a roupa na rua? Por acaso a cena não está por todo canto da internet? A que ponto nós chegamos, ouvinte, que protegemos o INIMIGO e fazemos piada uns dos outros como se NADA estivesse acontecendo!!? Querem entrar no comercial, mas eu ainda não acabei! Eu mesmo aqui nesse programa me coloquei contra a abertura da vigilância, mas hoje eu mudei de ideia. Hoje eu falo pra todo o país: Nós precisamos que todos os cidadãos tenham acesso constante às imagens da cidade, que os próprios cidadãos registrem e denunciem isso! Que essa corja seja publicamente exposta! Isso tem que acabar!”

Ele estava pra continuar a falar, mas as imagens do massacre voltaram a ser exibidas e ele foi cortado. Parece que a mídia realmente não estava entendendo o que aconteceu e meu plano estava indo muito bem.

- Tá dizendo o que, que foi você quem fez isso? Você não me assusta, Fred – Disse Juliana
- Eu acho que foi ele sim, Ju. - disse André
- O quê? Tá louco, andré! Ele é só um fracassado que veio aqui porque é irmão do Emanuel! - ela protestou
- Vocês me chamaram de paranoico, então eu não falei nada, mas pesquisei a vida dele. Ele é rico, rico pra caralho, ju.
- O que? Porque você não falou nada? Como assim? - Déborah falou confusa.

Aquela Déborah sempre mexeu comigo. Uma pena que, da posição em que eu estava, não seria possível usar meus recursos com ela. E demorei bastante tempo pra colocar outra no lugar dela, daquela beleza vulgar que ela tinha. Nunca mais ouvi dela depois daquele dia...

- É verdade, Déby. Ele é dono de dezenas de lanchonetes de fast food. Todas as melhores, as mais movimentadas são dele. Ele tem comércio em vários setores e até coisa com o exterior. Eu descobri tudo direitinho só semana passada, antes eu só sabia que ele era rico, mas não dava pra saber que era tanto.
- Porque você roubou nosso projeto, seu filho da puta?! - Juliana gritou
- Roubar? Eu? Não ficaram sabendo, não é? Esse projeto é meu e vocês são minha equipe.
- Ah sim, quero ver a reitoria acreditar que temos um administrador que faz nanotecnologia! - disse Déborah
- É, você tá fodido, cara! A justiça vai te obrigar a devolver todo o nosso dinheiro e você vai pra cadeia!

Eu tinha mais coisas pra falar nos meus planos, mas acabei simplesmente mostrando o instrumento usado pra marcar os familiares do Reginaldo. Fiquei só olhando pros restos carbonizados que se acumularam sobre ele. André foi o primeiro a entender. Suas lágrimas foram poucas e desceram sem causar nenhuma modificação em seu rosto. Pensei que ele estava apático, pois ficou em silêncio.

- André, caralho, porque você não falou nada!? Você sabia que ele era isso, cara, que porra é essa!

Ele permaneceu em silêncio, aparentando estar ausente, mas eu não percebia nenhuma emoção em seu rosto.

- Fala alguma coisa, André, diz que ela tá errada! - Disse júnior, que mal se fazia notar no local
- Ele tá quieto porque é verdade. Ele sabe que essa porra é culpa dele! Ele que defendeu o Fred naquele dia no bar quando estavamos decidindo quem aceitar pro cargo. Ele é igualzinho, ele também deve estar ganhando alguma coisa com isso!

Juliana estava cada vez mais descontrolada. Começou a gritar e derrubar cadeiras pela sala até partir pra cima do André, que nem tentou se defender. Socos, tapas, arranhões, nada parecia afetar o homem.

- Para, Ju, para com isso! - Disse Déborah – vamos embora daqui, não quero mais ficar aqui!

Eles olharam pro André no caminho da saída, mas não o chamaram pra ir embora. De alguma maneira, criaram um culpado e passaram a odiá-lo como se a causa de todo o mal não estivesse diante deles ali na sala. Talvez estivessem com tanto medo que eu me tornei como uma força da natureza. Como quando um maremoto destrói uma cidade: ninguém culpa Deus ou a Mãe natureza, é sempre culpa da usina geotérmica mais próxima ou de projetos secretos do governo. Afinal, quem vai culpar o cara que pode lançar raios e sabe de tudo? No fundo, não sei proque reagiram daquela maneira. Se já tinham suspeitas, se ele já tinha feito outra coisa. Mas anos se passaram até esse grupo se reconciliar.

- Eu não preciso desse dinheiro, não preciso desse projeto. Eu vou fazer outro projeto maior e vou entrar na liga. Seu jogos não vão te salvar, filho da puta, quando eu vier atrás de você. Vou estripar você e toda a sua família. Você vai pagar por essa merda com o seu sangue e vai sofrer por tudo o que fez.

Ele não parecia sentir raiva. Não, o que vi em seus olhos foi legítimo ódio e uma mente determinada. Não pude deixar de admirar o autocontrole que ele demonstrou e se tem uma coisa que admiro é a ambição. Um cara com a ambição se escalar e se tornar poderoso com o único intuito de me matar merece, no mínimo, meu respeito!


- Respeito sua ambição. Só lembre: nunca tente ferir aquilo que não pode matar. Feras feridas são duas vezes mais perigosas.

Ele continuou olhando nos meus olhos por alguns segundos. Como se, naquele instante, todo seu ódio estivesse sendo cimentado. Eu olhei de volta querendo alimentar o sentimento. Quando ele saiu, verifiquei minhas armas e acionei meu monitorador midiático. Um estudando com tudo a ganhar e nada a perder que produzia relatórios sobre toda a cobertura midiática a respeito dos eventos que me interessavam. Algo interessante aconteceu que eu jamais teria esperado: um grupo de membros da União foi executado, presumivelmente como resultado de algum conflito dentro da organização. Eles não sabiam que todo o plano estava montado e que seu fim estava próximo. Simplesmente alguém de lá entendia que crises são oportunidades e, mesmo sem saber o que aconteceu, culpou seus oponentes. Segundo meus hackers, foi um golpe pra tomada de poder. E foi excelente pra mim, que tinha já uns vinte inimigos a menos pra me preocupar e um novo líder que não podia mobilizar as forças da organização pra investigar o que de fato aconteceu, já que isso comprometeria suas alegações. A cidade já era minha. Enquanto eu tomava meu whisky e assistia o plano se concretizar, Letícia me ligou.

- Fred, vem que a gente vai comer uma pizza pra comemorar!
- O que estamos comemorando?
- Passei no vestibular! Eu vou pra Liga!
- Que orgulho! Escolha qualquer lugar da cidade e traga quantos amigos quiser! Essa é por minha conta.
- Viu, como você tá? Ta meio sumido esses dias, não dá notícias... Esqueceu a irmã, né?
- Eu to bem, Lê. É que eu to trabalhando bastante, sabe? Colocando os negócios em ordem, é coisa difícil.
- Meu irmão o magnata! Você tem que vir no meu colégio me buscar de moto de novo, as meninas morreram de inveja!
- Vou só se você for com a camisa da Faculdade de Ecologia!
- Como você sabe que escolhi ecologia? Eu não te falei, seu fofoqueiro!
- Eu conheço minha irmãzinhas!
- Oi? Ah, to indo!
- Ta falando comigo?
- Oi Fred, to aqui. Eu tava falando com uma amiga. To indo, se cuida aí, viu? Te vejo mais tarde!


E a cada dia que passava eu sentia mais intensamente que nasci na família certa. Com todos os altos e baixos, crises e brigas, todo mundo parecia estar firme e forte na escalada. Uma família de heróis, cada um com seu próprio desfecho trágico.

Gênese de opostos (parte 1) - Extra


Família Peçanha, 2040

Tudo começou numa tarde de sábado na praia de Copacabana. Um homem apareceu e começou a atirar nas pessoas com uma submetralhadora. Pânico e correria, mas no jornal a notícia foi “incrivelmente apenas uma pessoa foi atingida pela rajada de tiros que teve trinta disparos”. E tragicamente a pessoa atingida morreu, chocando a cidade que já há algum tempo tinha se acostumado com a segurança melhorada. Sistemas de monitoramento e identificação facial tinham resolvido boa parte dos sintomas crônicos da criminalidade carioca, mas esse não foi nenhum crime qualquer. O homem não parecia querer nada além de matar pessoas e teria conseguido mais se não tivesse sido derrubado por um tido nas costas. E a pessoa atingida foi Liana. De toda aquela multidão, foi justamente ela. A família inteira ficou em choque. Pôde-se ouvir gritos e choro, mas ninguém falou nada. Ela era a namorada de Emanuel, mas era amada por todos na família. Por algum motivo, aquele tiro na cabeça instaurou um silêncio na casa que ninguém mais conseguia quebrar. No luto os membros se separaram e efetivamente a unidade da família se desfez naquele dia. Num mundo em que as pessoas vivem tanto, a morte passou a ser ainda mais estranha e inaceitável do que outrora. Especialmente com a perspectiva de eternidade, que tornava juramentos de amor eterno mais do que mera poesia. Mas ela morreu, 18 anos de idade e inocente...

Emanuel – 2041

Eu lutei, eu insisti, mas não adianta. Há coisas quebradas demais pra serem consertadas e nada resta além do descarte. Era esse meu caso. Fui naquele ponto memorável a ponta Rio-Niterói onde meus pais se conheceram. Ele estava pensando em se matar e ela apareceu por ali. Parou o carro e foi conversar com ele e “bam”, se apaixonaram! Bem romântico, coisa de filme mesmo. Tudo bem, filme piegas. Lembro que o Fred sempre disse que nossos pais são o casal clichê, embora indiferença não me pareça tanto um lugar comum. Mas Liana não viria pra mim pra falar palavras bonitas. Um ano depois do incidente e eu ainda acordava acreditando que ela estava viva de vez em quando. E a dor foi se transformando e apatia com o tempo. Abandonei a faculdade e meu projeto de pesquisa, mal falava com meus amigos e eu vivia só pra comer e dormir. Crueldades da vida: você recebe um motivo pra ver, uma coisa sublime e espontânea, apenas pra tudo ser tirado dos seus braços num instante. A lua estava cheia e o mar parecia mais limpo do que ele é por ali. Decidi ficar sentado admirando aquela que seria minha última noite, quando um velho quis dar uma de herói e estragar meus últimos momentos. Ele ficou ali falando coisas, mas confesso que não ouvi. Mas o barulho estava me incomodando, então decidi resolver o problema:

- Escuta, eu não sei quem você é, não sei porque está aí falando. Mas se você continuar me incomodando ou encostar em mim eu vou te derrubar dessa porra de ponte. Aí o mundo vai ficar com menos um herói, não é?

Eu nem me preocupei em olhar pra trás. Ele suspirou e ficou ali por uns instantes, mas finalmente desistiu e foi embora. Um carro velho e barulhento, mas que logo teve seus sons suprimidos pelos outros que passavam, todos indiferentes ao vulto sentado do lado do poste estragado. Meu celular tocou, mas nem me preocupei em atender. Logo quando eu estava pronto pra jogá-lo fora, recebi uma mensagem e decidi ler. Podia ser Letícia, minha caçula. Mas não era. Só o Jônatas, um colega de faculdade. Como o título era “a solução pros seus problemas”, imaginei que se tratava de alguma piada. Quem sabe antes de pular eu desse mais uma daquelas risadas tão fracas que nem chegam a mover o rosto. Mas não era nada daquilo:

“Cara, você deve saber que eu não sou nenhum pastor pra saber o que sua alma precisa e tal, mas po, sabe koé, eu acho que sei resolver. Na moral, é sério, não apaga essa mensagem, continua lendo que você não vai se arrepender. Um cara amigo meu descobriu uma mulher aí que é viciada em sexo, sem sacanagem. Ela dá pra qualquer um, você só precisa chegar nela e falar que quer sexo que ela dá pra você. Ela sempre transa tipo umas 3 vezes ao dia, daí os caras instalaram programas em tudo o que ela tem e ficam sempre monitorando onde ela tá. Daí é sinistro, cara, porque agora só a gente que come ela, porque são sempre três, então a gente revesa e sempre acha ela. Eu li uma revista no dentista e ela falou que a solução pra depressão é sexo, você fode fode fode a acaba saindo dessa. Já falei com os caras, é hoje mesmo, clica aqui que você vai achar ela pelo GPS daí você chega nela. Ela já tá te esperando, nós já avisamos ela, vai lá e come ela. Você vai se sentir melhor, vai por mim, vai ser maneiro, ela é mó gostosa. Saca só essa foto! (anexo indisponível) Falou, muleque !!!1”

Fiquei pensando na Liana. Ela era estudante de psicologia e cheia de compaixão e ideais feministas. Como ela se sentiria sabendo que tem uma mulher solta por aí que é escrava sexual de um bando de hackers? Quem seria essa mulher?
Alguma coisa tomou conta de mim. Pela primeira senti vontade de fazer alguma coisa. Pensei em falar coisas pra ela e todas as frases que eu formava na minha cabeça saiam com a voz da Liana. Eu podia fazer esse último ato pra honrar a lembrança dela. Depois de simplesmente passar um ano trancado num quarto, eu quis fazer alguma coisa por alguém. Foi como se ela estivesse viva em mim. Certamente que não me fez mudar de ideia: eu conversaria com a mulher e tentaria tirá-la dessa situação deplorável, mas depois voltaria aqui pra esse ponto escuro e seguiria o plano
Abri minha jaqueta e subi na moto. Queria sentir o vento. Guardei o capacete na garupa e saí atrás das coordenadas do GPS. Eram no centro da cidade, no meio daquela confusão. Acelerei e senti o vento quase fechando meus olhos e aquele som que cancela todos os ruídos ao redor. Alguma coisa acontece quando você chega em 130 por hora. Tudo se silencia e de repente você se torna parte da estrada. Tudo se torna cenário, plano de fundo e não há mais nada te preocupando a não ser o que está bem à sua frente. Esses momentos eram tudo o que havia restado e com a decisão de por fim em tudo parecia que eu já estava pilotando com nostalgia, como se esse não fosse um hábito novo, mas uma coisa antiga e que em breve já não seria mais parte da minha realidade.
Devo ter tomado multas, mas, como pus tudo isso no débito automático e nunca me preocupei em ver como andava minha carteira de motorista, também nunca me importou respeitar os limites de velocidade. Em pouco tempo, lá estava eu diante daquele bar. Imediatamente reconheci a mulher, pois uma segunda mensagem chegou apenas com a foto dela.
Ela era loira, com cabelo cacheados que pareciam já ter visto dias melhores. Parecia ter tido um dia longo e cansativo, como uma pessoa que passou o dia trabalhando e já não está mais no estado inicial. Tinha uma pele adorável, embora algumas marcas vermelhas estivessem evidentes e nada nela indicava que ela estava na situação que estava. Seu olhar parecia imponente, como se ela estivesse no controle da situação enquanto tomava um Martini e fingia interesse no que um homem falava em seu ouvido. Levou um tempo pra eu tomar coragem e entrar naquele bar. Fiquei ali sentado na minha moto olhando fixamente pra ela, que parecia ansiosa, mas, por algum motivo, não olhava pra nada além do martini, como se ele fosse a única coisa importante no mundo.

- Cuidado com ela, rapaz... Que ela é braba, viu?m – me disse um mendigo que estava deitado ali
- A loira ali?
- Ela mesma. A dona rita. Se ela não for com a sua cara, pega tua moto e foge, que uma vez ela deu um tiro na perna do camarada que se engraçou.
- Ela tá sempre armada?
- Ah sim, sempre com uma pistola, ela. Mulher braba da porra, mas ela gosta de foder que eu sei. Uma vez eu vi ela transando com um cara ali naquele beco ali ó. Fica deserto a essas horas.

Fiquei ponderando sobre aquela situação. A mulher era indiscutivelmente linda, ainda mais pela minha absurda predileção por loiras. As roupas dela eram caras, embora sem muita tecnologia. Coisa de quem tem estilo, dizia Liana. E ainda por cima armada, coisa que, por incrível que pareça, me dava vontade de ir até lá ao invés de fugir. Mas ela era uma escrava sexual e estava sendo usada por uns hackers imundos. Difícil processar uma contradição daquele tamanho: uma pessoa que parecia ter tanto poder sobre tudo a sua volta vivia submissa e sendo usada como um mero objeto. Eu tinha que saber mais, tinha que entender que porra era aquela.

- Vai na fé, irmão. - disse o mendigo
- Lembra de mim se ela me matar! - respondi

Ele riu e joguei uma quantia substancial de dinheiro pra ele. Pensei comigo: “depois disso aqui eu vou pular de uma ponte enorme e morrer: pra quê quero dinheiro? É papel, vai perder a integridade molecular na água e se despedaçar.”

- Ah, você tem dinheiro. Vai lá, guerreiro, que você comer ela – ele falou contanto o dinheiro
- Qual é seu nome? - perguntei
- Eu sou o João Carmo de Souza, pó perguntar pra qualquer um aí na rua que sabem quem eu sou.
- Bem, boa noite, João.
- Boa noite!

Atravessei a rua e entrei no bar. Ela me viu entrar e me ignorou completamente, absorvida na taça vazia de martini. Andei na direção dela e alguns homens olharam pra mim. Estavam rindo, como se soubessem exatamente qual era meu destino. Chamavam a atenção um do outro. Provavelmente pensavam que eu era apenas mais um a ser rejeitado e humilhado publicamente por ela.

- Qual é seu nome? - ela perguntou antes de eu me sentar
- Emanuel – respondi meio hesitante
- Resposta correta! Porque você demorou tanto?
- Eu estava meio... ocupado com um negócio.
- Bem, eu te levaria pra minha casa se você tivesse chegado mais cedo, cara, mas já tá tarde. Quero acabar com isso logo e ir dormir.
- Porque você não me deu bolo, então? - perguntei
- Eu não conseguiria dormir... e preciso dormir pra reunião de amanhã.
- Bem, a última coisa que quero é te atrasar. Também tenho algo que quero fazer hoje a noite.
- Vamos, então. Vem comigo.

Ela pegou minha mão e me puxou pra fora do bar. Eu não sabia o que fazer, então segui as orientações dela e fui. A pele dela era macia, bem jovem e tratada. Mas não pude deixar de notar algumas marcas estranhas. Pensando bem, não estranhas, só que me incomodavam. Eram claramente marcas de mão, marcas de que alguém apertou o braço dela com tanta força e tantas vezes que ficou quase permanente. Eu não sabia o que sentir, porque o perfume dela era intoxicante, sedutor, e o cabelo cacheado dela saltava enquanto ela me puxava pela calçada na direção daquele beco de que joão falou. Linda, esplendorosa, mesmo naquele estado melancólico eu estava ficando meio enfeitiçado. Entendi, naquele momento, a motivação dos hackers, embora não a considere justificável. Algo naquela mulher me fazia querer tirar a roupa dela e transar pro horas. Quando chegamos num ponto bem escondido, ela puxou uma pistola da bolsa e fez aquele barulho de quando se puxa o ferrolho pra trás pra verificar a bala na câmara. Uma nove milímetros clássica, compacta. Não reagi com o som, porque morrer ali não era diferente de morrer por impacto com a agua. Mas o som não era pra mim: logo um mendigo saiu dali correndo, como quem sabe exatamente o que está acontecendo.

- Discupa, minha sióra, discupa eu! - disse o homem logo antes de virar a esquina

Ele provavelmente já sabia o que estava acontecendo e que não adiantava fugir. Eu sinceramente não sabia se estava no controle daquele situação ou se era ali que dava as cartas.
Mesmo no escuro, consegui ver que ela estava abaixando a calcinha e levantando a saia. Fui me aproximando quase que magneticamente, prestes a contrariar os ideais da Liana e envergonhar a memória dela, mas aí ela disse o que disse:

- Você me quer? Sou sua boneca, vem pegar!

Não entendi porque ela falou aquilo e achei que talvez tenha sido pra me estimular. Mas eu senti um embrulho no estômago. Foi como se eu estivesse prestes a foder um daqueles robôs sexuais que só sabem falar essas frases prontas e reproduzir aqueles gemidos estereotipados. Foi doentio.

- Vira pra mim. - pedi

Ela virou na minha direção e eu dei um beijo longo nela enquanto puxava a calcinha dela pra cima. Eu não podia usar ela daquela forma, nem mesmo sendo perturbado como eu sou. Aquilo era errado. Mas ela segurou minha mão e abaixou a calcinha novamente.

- Eu preciso disso cara. Não faz isso.

Encostei a minha testa na dela com os olhos fechados sem saber o que fazer. Eu era um vício pra ela, uma necessidade mórbida. Talvez aquela frase fosse mais do que uma tentativa de me estimular. Talvez ela quisesse ser desejada de outra forma, talvez ela quisesse ter alguém na vida dela que era como a Liana foi pra mim. Alguém pra amar incondicionalmente, pre se entregar sem fazer nenhuma pergunta. Alguém pra te fazer café da manhã com torradas queimadas com o gostinho queimado das boas intenções. Agi por impulso e comecei a beijar o corpo dela. Ela tentou abrir minhas calças, mas não deixei. Eu tinha diante de mim um dilema clássico entre ID e Superego. Não podia usar ela como se fosse um objeto, mas aquela pele macia, aquele perfume, me enlouqueciam. Minha solução poderia ter sido estudo de caso pra psicólogos: decidi chupar ela.
Sentia como se chupar ela fosse ser usado por ela ao invés de usá-la, dar prazer a ela sem querer nada em troca além de ver que estava satisfeita. Porque ela era tão alta e ainda estava com salto, bastou que eu ficasse de joelho pra fazer isso. Ela colocou a perna direita em cima do meu ombro e se apoiou em uma lata de lixo com o braço direito enquanto puxava meu cabelo com a mão livre. Fui entendendo como ela gostava pelas puxadas que ela dava. Pelo que vi, quando ela puxava com força, eu estava indo no caminho certo. Fui experimentando até ver tudo que ela gostava. Dois dedos, movimentos circulares com a língua e um ritmo progressivo. Ela segurava gemidos, aquilo durou lá pra meia hora. E por incrível que pareça, quem estava em êxtase total era eu. Quando eu senti ela gozar, passou um calafrio pela minha espinha que eu já não sentia há um ano. Eu senti uma euforia misturada com satisfação, como se eu mesmo tivesse acabado de gozar. Depois de alguns segundos eu voltei a sentir meu joelho, que doía absurdamente. Olhei pra cima assim que ela tirou a perna de cima de mim e tomei força pra levantar quando vi que ela estava chorando. Chorava copiosamente, como quem está tirando alguma coisa do sistema.

- Tá tudo bem contigo, Rita? - perguntei
- Como você sabe meu nome? Eu disse pra não te falarem meu nome.
- João me falou.
- Ah. Entendi...
- Mas tá tudo bem contigo?
- Ah, nem sei, sabe? Faz tempo que não me perguntam isso. E já faz muito tempo que não choro também. Esse ano eu passei tentanto voltar a chorar, porque acho que eu era mais... sei lá, mais feliz quando eu chorava de vez em quando. Mas eu já tinha desistido.
- Então você não chora sempre?
- Não, não choro... Eu nem sei direito porque estou chorando, então perguntar não vai te ajudar muito.
- Quer vir pra minha casa e conversar?
- Porque? Não pode conversar aqui?
- Olha, até posso, mas preciso por gelo no meu joelho.
- Ai, nossa, desculpa!

Não sei se foi o pedido de desculpas que me chocou, que parecia completamente dispar com a atitude defensiva de antes, ou se foi a voz dela. Antes era mais grave, carregada de autoridade, mas naquele momento ela foi mais aguda, suave, frágil.

- Se preocupa não, rita. A gente senta e conversa um pouco lá em casa.
- Tá bem, então. Eu normalmente não vou pra casa dos outros, mas dessa vez eu vou por causa do seu joelho. Você tá de carro?
- Não, to de moto.
- Melhor vir de carro, então, né?
- É, acho que sim. Você tá de carro?
- To sim, onde é sua casa?
- É em Niterói.
- Nossa, por isso que você demorou, então?

Não respondi e fomos até o carro dela. Estava bem próximo, como se ela estivesse planejando terminar a transa e ir embora rápido. Mas ela parecia contente com a mudança de planos. Fiquei esperando ela abrir o carro e destravar a porta, mas antes de abrir ela me olhou nos olhos, fechou um pouco os olhos e mordeu os lábios debaixo. Não sei se aquilo era curiosidade, se era desejo, ou se era só uma cara que ela faz simples. Mas me estimulou, eu gostei.

- Você não vai entrar?
- Tá aberta, a porta?
- Tá, ué
- Mas eu não vi você destravando o carro.
- Eu destravei só a sua porta.
- Tem como fazer isso? - perguntei enquanto entrava
- nesse carro tem. Cintos – ela disse

O cinto se prendeu automaticamente e se ajustou ao meu corpo. O carro começou a andar pelas ruas sem o controle dela.

- Mudar destino, niterói. - ela disse.
- É na Augusto Ferreira Ramos, não lembro o número, mas chegando lá eu te mostro

O carro aceitou o meu comando de voz e começou a ir pro local.

- E a sua moto?
- Ah, se preocupa não. Ela tá travada, ninguém vai roubar não?
- É trava eletrônica?
- É tipo isso. Eu projetei os mecanismos de segurança dela e tem algumas coisas... incomuns nela. Me ajudava a passar o tempo.
- Que mecanismos?
- Ah, ela é cheia de parafernalha. Dá choque, solta spray de pimenta e até envenena o cara que tá tentando desarmar ela. Tem que usar minha impressão digital, minha voz e minha senha pra ligar. Não vão roubar não. No máximo destroem dela, mas roubar não.
- O que você faz da vida? Aliás, qual é o seu nome?
- Emanuel - muito prazer
- O que você faz, Emanuel?
- Nada. Eu fazia engenharia de materiais na UFF, mas larguei o curso.
- Porque?
- Diz, Rita, essa é uma sequência de eventos normal pra você? Recebe um oral, vai pra casa do cara, pergunta o nome dele e depois a profissão?
- Hahahahahahaah! Bem, não, mas até que achei legal.
- E você, rita, faz o que?
- Eu tenho uma empresa. Marketing digital e coisas assim. Porque você fala tanto o meu nome?
- Sei lá, me dá vontade. Te incomoda?
- Sei lá, ninguém me chama de rita. Parece que você é meu pai falando quando me chama de rita
- E como te chamam?
- Ninfa
- Sério?
- Sério! Sabe o que é uma ninfa?
- Ah sim, é tipo você mesmo. Faz sentido

Ela sorriu pela primeira vez na minha frente. Com o tempo eu fui entendendo como era difícil arrancar um sorriso ou qualquer outro tipo de emoção dela. Naquele instante, no entanto, só sorri de volta como se fosse uma coisa corriqueira. Mesmo diante do fato de que um sorriso meu também era uma coisa tão rara. Lá estava eu, no carro de uma estranha e passando pelo ponto escuro da ponte sem mais nenhuma vontade de pular. Eu queria saber quem ela era, como ela tinha chegado ali, porque ela fazia o que fazia. Na realidade, era parecido com o que eu sentia pela Liana, só que bem menos intenso. Intensidades à parte, de alguma maneira ela me deu um pouco de vontade de viver, mesmo que só um pouco mais.

- Isso que estamos fazendo é loucura, não é? - ela perguntou
- talvez... Mas o que planejávamos fazer também era, então acho que não faz muita diferença, né?
- É. E acho que, no fim das contas, tudo o que fazemos é meio loucura, né? Então talvez fazer alguma loucura diferente das normais de vez em quando seja justamente a melhor saída!
- Pois é. Se você comete um ato de loucura repetidamente por um certo período de tempo, ele acaba sendo sua sanidade. E nada mais insípido do que a sanidade!

Estávamos rindo como dois bêbados, mesmo diante do fato de que ela era a única que tinha bebido. Decidi que aquela deveria ser a noite em que nós nos alteraríamos quimicamente. Cada um com seus problemas, cada um com seus demônios, nós fugiríamos daquilo tudo com um pouco de maconha. Ok, talvez mais do que apenas um pouco!

- É essa a rua? - ela perguntou estranhando as casas
- É essa sim. Que foiw
- Pensei que hackers tinham mais dinheiro.
- Ha! Valeu por me chamar de pobre! Olha, pro seu governo eu não sou um hacker. Ok, sou mais ou menos hacker, mas eu não trabalho com isso! E tem mais: eu moro aqui porque não tem câmeras nas ruas. Eu gosto de privacidade, sabe?
- Porque não tem câmeras nas ruas?
- Porque o pessoal rouba. Eles desistiram de colocar. Isso aqui não era assmi antigamente, sabe? Só nos últimos anos que ficou meio pesada a situação aqui.

Ela ficou procurando câmeras nos postes, meio confusa, e os gestos dela me deixavam louco. Eu tinha esquecido a sensação de desejar uma pessoa dessa maneira. Eu saia com uns amigos de infância e tudo parecia completamente insípido. Assisti um vídeo antigo de uns caras sendo decapitados e entendi o que estava me acontecendo. Eles perderam a cabeça, mas não foi isso que eu vi. Um deles olhou enquanto o outro era assassinado com aquele rosto abatido, meio inchado de algum espancamento, e o que os olhos dele diziam era: “eu já estou morto”. E era esse meu pensamento. Desde que a liana morreu, eu fui junto com ela e meu corpo ficou vagando por aí como se eu ainda fosse uma criatura desse mundo, mas meu lugar era do outro lado, talvez com ela, se essas coisas existem. Mas então ela apareceu. Uma mulher poderosa por fora, mas frágil por dentro. O casco dela escondia o fato de que ela era feita de carne tenra. Tudo em mim me dirigia a ela e eu não entendia a razão de tanta atração. É só uma viciada em sexo que o Jônatas me indicou achando que um pouco de endorfina resolveria meu problema, como se eu já não tivesse tentado uma via direta pra esse tipo de solução. E ela não era mais atraente do que algumas outras que eu conheci, que pareciam até interessadas em mim, mas que logo desistiam diante da minha total indiferença. Elas pensavam que era em relação a elas e nunca paravam pra perceber que era com relação a qualquer coisa ao me redor.

- Cê tá chapado, manu?
- Do que você me chamou – respondi com um calafrio repentino
- Ah, seu nome é muito longo. Manu tá bom!
- Me chama de Emanuel, Rita, na boa.
- porque? Manu é unisex, cara!
- Quer ficar chapada?
- Vamo lá!

Entramos na minha casa, que estava estranhamente arrumada. Acho que arrumei tudo naquele ímpeto que eu criei de deixar tudo nesse mundo em ordem antes de abandoná-lo. Peguei uns cigarros prontos da minha gaveta e começamos a fumar. Logo ali eu tinha alguma comida e meu whisky, que preferi deixar intacto por algum motivo. Antes que eu pudesse pensar, ela estava me beijando. Só quando ela subiu em cima de mim que eu realmente pude perceber a delícia que era a pele dela. O perfume, eu percebi, não era artificial: ela tinha mesmo aquele cheiro delicioso de mulher que deixa um homem louco. Era como se tudo nela fosse milimetricamente projetado pra deixar um cara louco, mas tudo o que eu queria era descer e chupar ela mais uma vez. De alguma maneira, parecia que aquilo me traria muito mais satisfação do que transar com ela, e foi novamente o que eu fiz.

- Porque você não transa comigo? - Ela perguntou quando percebeu o que eu estava prestes a fazer

Eu poderia aparecer com uma porção de resposta, porque sempre fui bom com as palavras, mas acabei não dizendo nada. Eu só olhei nos olhos dela, sorri, e voltei ao trabalho. Imaginei que a imaginação dela diria as palavras certas por mim e, francamente, não era palavras que eu queria na minha boca naquele momento. Era muito mais do que dois dedos e uma língua e é difícil explicar algo assim pra quem nunca tentou. Você se entrega por completo, tudo o que você tem é daquela pessoa naquele momento. E esse momento, o presente, é tudo o que importa. Seu passado, suas dores e suas mágoas, vão todos embora. Seu futuro, com todas suas incógnitas desaparece, porque seu universo gira em torno de um bom sexo oral. Mas acaba que não é só no sexo: Você vai fazendo coisinhas pequenas por outra pessoa e cada sorriso dela é uma recompensa maior do que tudo. Naquela noite e no mês que a seguiu, eu comecei a me entender melhor. Toda manhã eu acordava e dizia: “ah, amanhã eu vou na ponte, hoje eu quero fazer massagem nela”. Coisas desse tipo surgiam todos os dias e acabou que dar prazer foi se tornando minha única razão de existir.
Eu sei que é estranho, sei que é difícil acreditar que passei um mês junto com ela e nunca entrei. Não que tenha sido por falta de vontade, porque tudo aquilo renovou minha vontade de viver. Acontece que quando ela vinha na minha direção querendo sexo, o que eu via em seus olhos era dor, não desejo. Era culpa, não entrega. Ela estava apenas se rendendo a um vício e eu, de alguma maneira, me elegi como um salvador, o cara que ia tirar ela daquele buraco e fazê-la entender o quão especial ela era. Entrar nela, por mais tentador que fosse, a faria mal, e o impulso de arrancar sorrisos foi maior do que o impulso de transar.
Passado um mês, ela estava mudada. Eu tinha criado o hábito louco de acordar antes dela e despertá-la com mais e mais sexo oral, especialmente porque ela já não chorava com aquilo, o que tornava a coisa mais estimulante pra mim. Mas numa manhã de domingo ela pegou minha cabeça, puxou pro rosto dela e me deu um beijo. Um daqueles bem longos que relaxam o corpo todo e fazem seu mundo rodar. Justo naquele momento eu entendi que era ela me resgatando, ela que estava me dando prazer. E uns instantes, ela inverteu a situação e eu estava indefeso em sua mão, pra ela fazer de mim o que quisesse. Ela estava reabilitada. Aquele olhar impulsivo desapareceu e percebi isso quando o beijo acabou. Ela estava em paz. Pensei que iríamos transar naquele dia, mas acabou que isso só aconteceu anos depois. Alguém bateu na porta e eu fui atender enquanto ela bebia a água que eu deixei ao lado da cama.

- Oi, você não deve me conhecer. Meu nome é Matias e eu vim buscar a minha filha – o homem disse antes que eu pudesse dizer qualquer coisa
- Desculpa, quem é sua filha? - perguntei coçando os olhos
- Rita, seu pai tá aqui!

O copo quebrou e de súbito eu tive que me esquivar pra dar passagem. Ela veio correndo e pulou nos braços do cara e eu não entendi porra nenhuma. Ela chorava, ele chorava e eu me sentia como um estranho naquela situação, como se eu devesse sair da casa e dar privacidade. E ele percebeu isso.

- Você é o Emanuel, não é? Quero conversar com você – ele disse

Eu não sabia o que esperar. Será que ele estava prestes a me atacar ou me denunciar pra polícia? Será que ele iria me jurar de morte por ter raptado a filha dele? Fosse o que fosse, eu não senti medo, porque algo no olhar dele me passou tranquilidade. Rita acariciou meus ombros e foi pro banheiro tomar um banho correndo. Ela sempre fazia exatamente aquilo quando estávamos pra sair pra algum lugar. Foi aí que eu entendi que ela estava indo embora. Pensei que esse momento fosse me deixar triste, porque de alguma forma eu tinha certeza que ele chegaria. Mas não aconteceu. Eu só senti como se tivesse cumprido uma missão. Minha cabeça estava um turbilhão e eu tinha que dar atenção ao pai dela, que estava ali parado olhando pro banheiro.

- Entra aí, a casa é sua. - eu disse
- Ah, obrigado!
- Quer agua, cerveja, alguma coisa?
- Que cervejas você tem aí?
- Bem, dá uma olhada!

Abri a geladeira e ele prontamente escolheu a mais cara de todas, abriu e começou a beber em silêncio. Pensei em como eu estava me sentindo naquele momento. Foi uma tranquilidade que eu só sentia com a Liana, quando fazia alguma bobagem que ela pedia. Entendi, finalmente, que minha paz de espírito não era por causa dela, mas pela forma que eu levava a minha vida enquanto estava com ela. Todo aquele amor foi seguido de muita entrega e era essa minha força motriz. Não era tão diferente de passar um mês meio confinado fazendo sexo oral em uma mulher e ouvindo sobre todas as ânsias e sonhos dela. Era entrega, a mais pura entrega. Essa era a razão da minha vida antes, mas como eu só comecei a sentir com aquele namoro, enfiei na minha cabeça que ela era a razão de eu existir. Mas não era, a resposta estava bem diante dos meus olhos e o destino deixou pra me mostrar isso aos 45 do segundo tempo.

- Eu sei o que você fez, rapaz, e sei o que você é – Matias disse
- O que? Do que você tá falando?
- Eu sempre acompanho os passos da minha filha e sei o que tem se passado na vida dela. Nada do que foi feito ou dito passou sem ser notado
- Cara, eu tive boas intenções, é sério, pergunta pra ela. Eu não maltratei ela.
- Então espero que me perdoe, rapaz, porque quem cometeu a ofensa fui eu.
- Como? Não to te entendendo!
- Eu matei o seu amigo. Jônatas, ele se chamava.
- O que?! Você... Matou ele? Que porra é essa!?
- Ele era um filho da puta. Sei que vocês eram amigos de infância, mas ele rastreou minha filha e começou a explorar o vício dela. Ele estava vendendo ela pra outras pessoas como se fosse uma prostituta, como se ela fosse propriedade dele. Ele veio até a sua casa armado, achando que você tinha roubado ela dele e estava vendendo ela nesse lado da ponte, então eu o degolei bem aqui na sua porta. Vocês estavam dormindo, você mesmo roncava absurdamente e nem me ouviram removendo o corpo e limpando o local. Sabe-se lá o que ele estava prestes a fazer, mas eu não podia me sentar inerte. Não mais.
- Você salvou a gente, então? Porque você não interferiu antes?
- A ordem não deixava. “Servir, satisfazer, curar”...
- Que ordem? Tá falando do que, cara?
- Os indulgers. Eu tentei, mas acho que não sou mesmo um deles. Talvez você seja, no entanto.
- O que é isso?
- Rapaz, sem ofensa. Eu vi o que você fez pela minha filha e fico realmente agradecido. Mas não é de mim que você tem que ouvir essa resposta. Pega aqui esse cartão.

Ele deixou um cartão com um número de telefone na mesa da minha cozinha e antes que eu pudesse pronunciar qualquer resposta ela estava pronta pra sair. Com aquele short jeans que comprei pra ela uma camisa minha do bob esponja que ela sempre usava pra ir na padaria. Ela não estava vestida com a pomposidade usual, mas o sorriso dela brilhava e, pelo menos pra mim, era mais belo que qualquer ornamento.

- Liga pro número, Emanuel. E não se preocupa, eu estarei por ai. A gente se encontra mais uma vez. Aí quem sabe não escrevemos aquele conto que queríamos escrever juntos?


Eu queria sorrir e chorar, mas não fiz nada daquilo. Alguma coisa me segurou, algo me disse que o silêncio era a opção mais sábia. Demos um longo abraço e ela beijou meu pescoço antes de me soltar e sair com o pai. Sentei na minha cozinha e terminei a cerveja que ele deixou. Minha cama ainda tinha o cheiro dela, então fiquei deitado ali por algum tempo olhando pro cartão. Eu tinha uma vida pra sempre e meu GPS mostrava que minha moto tinha sido rebocada e não roubada. Decidi sair pelo país com esse cartão no bolso e ver se me daria vontade de ligar. Eu não estava muito preocupado com aquilo, no fim das contas. Só queria sair pilotando pela estrada e, quem sabe, descobrir mais alguém pra proteger e servir. De uma maneira ou outra, eu queria viver e voltei a acreditar no amor.