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Gênese de opostos (parte 1) - Extra


Família Peçanha, 2040

Tudo começou numa tarde de sábado na praia de Copacabana. Um homem apareceu e começou a atirar nas pessoas com uma submetralhadora. Pânico e correria, mas no jornal a notícia foi “incrivelmente apenas uma pessoa foi atingida pela rajada de tiros que teve trinta disparos”. E tragicamente a pessoa atingida morreu, chocando a cidade que já há algum tempo tinha se acostumado com a segurança melhorada. Sistemas de monitoramento e identificação facial tinham resolvido boa parte dos sintomas crônicos da criminalidade carioca, mas esse não foi nenhum crime qualquer. O homem não parecia querer nada além de matar pessoas e teria conseguido mais se não tivesse sido derrubado por um tido nas costas. E a pessoa atingida foi Liana. De toda aquela multidão, foi justamente ela. A família inteira ficou em choque. Pôde-se ouvir gritos e choro, mas ninguém falou nada. Ela era a namorada de Emanuel, mas era amada por todos na família. Por algum motivo, aquele tiro na cabeça instaurou um silêncio na casa que ninguém mais conseguia quebrar. No luto os membros se separaram e efetivamente a unidade da família se desfez naquele dia. Num mundo em que as pessoas vivem tanto, a morte passou a ser ainda mais estranha e inaceitável do que outrora. Especialmente com a perspectiva de eternidade, que tornava juramentos de amor eterno mais do que mera poesia. Mas ela morreu, 18 anos de idade e inocente...

Emanuel – 2041

Eu lutei, eu insisti, mas não adianta. Há coisas quebradas demais pra serem consertadas e nada resta além do descarte. Era esse meu caso. Fui naquele ponto memorável a ponta Rio-Niterói onde meus pais se conheceram. Ele estava pensando em se matar e ela apareceu por ali. Parou o carro e foi conversar com ele e “bam”, se apaixonaram! Bem romântico, coisa de filme mesmo. Tudo bem, filme piegas. Lembro que o Fred sempre disse que nossos pais são o casal clichê, embora indiferença não me pareça tanto um lugar comum. Mas Liana não viria pra mim pra falar palavras bonitas. Um ano depois do incidente e eu ainda acordava acreditando que ela estava viva de vez em quando. E a dor foi se transformando e apatia com o tempo. Abandonei a faculdade e meu projeto de pesquisa, mal falava com meus amigos e eu vivia só pra comer e dormir. Crueldades da vida: você recebe um motivo pra ver, uma coisa sublime e espontânea, apenas pra tudo ser tirado dos seus braços num instante. A lua estava cheia e o mar parecia mais limpo do que ele é por ali. Decidi ficar sentado admirando aquela que seria minha última noite, quando um velho quis dar uma de herói e estragar meus últimos momentos. Ele ficou ali falando coisas, mas confesso que não ouvi. Mas o barulho estava me incomodando, então decidi resolver o problema:

- Escuta, eu não sei quem você é, não sei porque está aí falando. Mas se você continuar me incomodando ou encostar em mim eu vou te derrubar dessa porra de ponte. Aí o mundo vai ficar com menos um herói, não é?

Eu nem me preocupei em olhar pra trás. Ele suspirou e ficou ali por uns instantes, mas finalmente desistiu e foi embora. Um carro velho e barulhento, mas que logo teve seus sons suprimidos pelos outros que passavam, todos indiferentes ao vulto sentado do lado do poste estragado. Meu celular tocou, mas nem me preocupei em atender. Logo quando eu estava pronto pra jogá-lo fora, recebi uma mensagem e decidi ler. Podia ser Letícia, minha caçula. Mas não era. Só o Jônatas, um colega de faculdade. Como o título era “a solução pros seus problemas”, imaginei que se tratava de alguma piada. Quem sabe antes de pular eu desse mais uma daquelas risadas tão fracas que nem chegam a mover o rosto. Mas não era nada daquilo:

“Cara, você deve saber que eu não sou nenhum pastor pra saber o que sua alma precisa e tal, mas po, sabe koé, eu acho que sei resolver. Na moral, é sério, não apaga essa mensagem, continua lendo que você não vai se arrepender. Um cara amigo meu descobriu uma mulher aí que é viciada em sexo, sem sacanagem. Ela dá pra qualquer um, você só precisa chegar nela e falar que quer sexo que ela dá pra você. Ela sempre transa tipo umas 3 vezes ao dia, daí os caras instalaram programas em tudo o que ela tem e ficam sempre monitorando onde ela tá. Daí é sinistro, cara, porque agora só a gente que come ela, porque são sempre três, então a gente revesa e sempre acha ela. Eu li uma revista no dentista e ela falou que a solução pra depressão é sexo, você fode fode fode a acaba saindo dessa. Já falei com os caras, é hoje mesmo, clica aqui que você vai achar ela pelo GPS daí você chega nela. Ela já tá te esperando, nós já avisamos ela, vai lá e come ela. Você vai se sentir melhor, vai por mim, vai ser maneiro, ela é mó gostosa. Saca só essa foto! (anexo indisponível) Falou, muleque !!!1”

Fiquei pensando na Liana. Ela era estudante de psicologia e cheia de compaixão e ideais feministas. Como ela se sentiria sabendo que tem uma mulher solta por aí que é escrava sexual de um bando de hackers? Quem seria essa mulher?
Alguma coisa tomou conta de mim. Pela primeira senti vontade de fazer alguma coisa. Pensei em falar coisas pra ela e todas as frases que eu formava na minha cabeça saiam com a voz da Liana. Eu podia fazer esse último ato pra honrar a lembrança dela. Depois de simplesmente passar um ano trancado num quarto, eu quis fazer alguma coisa por alguém. Foi como se ela estivesse viva em mim. Certamente que não me fez mudar de ideia: eu conversaria com a mulher e tentaria tirá-la dessa situação deplorável, mas depois voltaria aqui pra esse ponto escuro e seguiria o plano
Abri minha jaqueta e subi na moto. Queria sentir o vento. Guardei o capacete na garupa e saí atrás das coordenadas do GPS. Eram no centro da cidade, no meio daquela confusão. Acelerei e senti o vento quase fechando meus olhos e aquele som que cancela todos os ruídos ao redor. Alguma coisa acontece quando você chega em 130 por hora. Tudo se silencia e de repente você se torna parte da estrada. Tudo se torna cenário, plano de fundo e não há mais nada te preocupando a não ser o que está bem à sua frente. Esses momentos eram tudo o que havia restado e com a decisão de por fim em tudo parecia que eu já estava pilotando com nostalgia, como se esse não fosse um hábito novo, mas uma coisa antiga e que em breve já não seria mais parte da minha realidade.
Devo ter tomado multas, mas, como pus tudo isso no débito automático e nunca me preocupei em ver como andava minha carteira de motorista, também nunca me importou respeitar os limites de velocidade. Em pouco tempo, lá estava eu diante daquele bar. Imediatamente reconheci a mulher, pois uma segunda mensagem chegou apenas com a foto dela.
Ela era loira, com cabelo cacheados que pareciam já ter visto dias melhores. Parecia ter tido um dia longo e cansativo, como uma pessoa que passou o dia trabalhando e já não está mais no estado inicial. Tinha uma pele adorável, embora algumas marcas vermelhas estivessem evidentes e nada nela indicava que ela estava na situação que estava. Seu olhar parecia imponente, como se ela estivesse no controle da situação enquanto tomava um Martini e fingia interesse no que um homem falava em seu ouvido. Levou um tempo pra eu tomar coragem e entrar naquele bar. Fiquei ali sentado na minha moto olhando fixamente pra ela, que parecia ansiosa, mas, por algum motivo, não olhava pra nada além do martini, como se ele fosse a única coisa importante no mundo.

- Cuidado com ela, rapaz... Que ela é braba, viu?m – me disse um mendigo que estava deitado ali
- A loira ali?
- Ela mesma. A dona rita. Se ela não for com a sua cara, pega tua moto e foge, que uma vez ela deu um tiro na perna do camarada que se engraçou.
- Ela tá sempre armada?
- Ah sim, sempre com uma pistola, ela. Mulher braba da porra, mas ela gosta de foder que eu sei. Uma vez eu vi ela transando com um cara ali naquele beco ali ó. Fica deserto a essas horas.

Fiquei ponderando sobre aquela situação. A mulher era indiscutivelmente linda, ainda mais pela minha absurda predileção por loiras. As roupas dela eram caras, embora sem muita tecnologia. Coisa de quem tem estilo, dizia Liana. E ainda por cima armada, coisa que, por incrível que pareça, me dava vontade de ir até lá ao invés de fugir. Mas ela era uma escrava sexual e estava sendo usada por uns hackers imundos. Difícil processar uma contradição daquele tamanho: uma pessoa que parecia ter tanto poder sobre tudo a sua volta vivia submissa e sendo usada como um mero objeto. Eu tinha que saber mais, tinha que entender que porra era aquela.

- Vai na fé, irmão. - disse o mendigo
- Lembra de mim se ela me matar! - respondi

Ele riu e joguei uma quantia substancial de dinheiro pra ele. Pensei comigo: “depois disso aqui eu vou pular de uma ponte enorme e morrer: pra quê quero dinheiro? É papel, vai perder a integridade molecular na água e se despedaçar.”

- Ah, você tem dinheiro. Vai lá, guerreiro, que você comer ela – ele falou contanto o dinheiro
- Qual é seu nome? - perguntei
- Eu sou o João Carmo de Souza, pó perguntar pra qualquer um aí na rua que sabem quem eu sou.
- Bem, boa noite, João.
- Boa noite!

Atravessei a rua e entrei no bar. Ela me viu entrar e me ignorou completamente, absorvida na taça vazia de martini. Andei na direção dela e alguns homens olharam pra mim. Estavam rindo, como se soubessem exatamente qual era meu destino. Chamavam a atenção um do outro. Provavelmente pensavam que eu era apenas mais um a ser rejeitado e humilhado publicamente por ela.

- Qual é seu nome? - ela perguntou antes de eu me sentar
- Emanuel – respondi meio hesitante
- Resposta correta! Porque você demorou tanto?
- Eu estava meio... ocupado com um negócio.
- Bem, eu te levaria pra minha casa se você tivesse chegado mais cedo, cara, mas já tá tarde. Quero acabar com isso logo e ir dormir.
- Porque você não me deu bolo, então? - perguntei
- Eu não conseguiria dormir... e preciso dormir pra reunião de amanhã.
- Bem, a última coisa que quero é te atrasar. Também tenho algo que quero fazer hoje a noite.
- Vamos, então. Vem comigo.

Ela pegou minha mão e me puxou pra fora do bar. Eu não sabia o que fazer, então segui as orientações dela e fui. A pele dela era macia, bem jovem e tratada. Mas não pude deixar de notar algumas marcas estranhas. Pensando bem, não estranhas, só que me incomodavam. Eram claramente marcas de mão, marcas de que alguém apertou o braço dela com tanta força e tantas vezes que ficou quase permanente. Eu não sabia o que sentir, porque o perfume dela era intoxicante, sedutor, e o cabelo cacheado dela saltava enquanto ela me puxava pela calçada na direção daquele beco de que joão falou. Linda, esplendorosa, mesmo naquele estado melancólico eu estava ficando meio enfeitiçado. Entendi, naquele momento, a motivação dos hackers, embora não a considere justificável. Algo naquela mulher me fazia querer tirar a roupa dela e transar pro horas. Quando chegamos num ponto bem escondido, ela puxou uma pistola da bolsa e fez aquele barulho de quando se puxa o ferrolho pra trás pra verificar a bala na câmara. Uma nove milímetros clássica, compacta. Não reagi com o som, porque morrer ali não era diferente de morrer por impacto com a agua. Mas o som não era pra mim: logo um mendigo saiu dali correndo, como quem sabe exatamente o que está acontecendo.

- Discupa, minha sióra, discupa eu! - disse o homem logo antes de virar a esquina

Ele provavelmente já sabia o que estava acontecendo e que não adiantava fugir. Eu sinceramente não sabia se estava no controle daquele situação ou se era ali que dava as cartas.
Mesmo no escuro, consegui ver que ela estava abaixando a calcinha e levantando a saia. Fui me aproximando quase que magneticamente, prestes a contrariar os ideais da Liana e envergonhar a memória dela, mas aí ela disse o que disse:

- Você me quer? Sou sua boneca, vem pegar!

Não entendi porque ela falou aquilo e achei que talvez tenha sido pra me estimular. Mas eu senti um embrulho no estômago. Foi como se eu estivesse prestes a foder um daqueles robôs sexuais que só sabem falar essas frases prontas e reproduzir aqueles gemidos estereotipados. Foi doentio.

- Vira pra mim. - pedi

Ela virou na minha direção e eu dei um beijo longo nela enquanto puxava a calcinha dela pra cima. Eu não podia usar ela daquela forma, nem mesmo sendo perturbado como eu sou. Aquilo era errado. Mas ela segurou minha mão e abaixou a calcinha novamente.

- Eu preciso disso cara. Não faz isso.

Encostei a minha testa na dela com os olhos fechados sem saber o que fazer. Eu era um vício pra ela, uma necessidade mórbida. Talvez aquela frase fosse mais do que uma tentativa de me estimular. Talvez ela quisesse ser desejada de outra forma, talvez ela quisesse ter alguém na vida dela que era como a Liana foi pra mim. Alguém pra amar incondicionalmente, pre se entregar sem fazer nenhuma pergunta. Alguém pra te fazer café da manhã com torradas queimadas com o gostinho queimado das boas intenções. Agi por impulso e comecei a beijar o corpo dela. Ela tentou abrir minhas calças, mas não deixei. Eu tinha diante de mim um dilema clássico entre ID e Superego. Não podia usar ela como se fosse um objeto, mas aquela pele macia, aquele perfume, me enlouqueciam. Minha solução poderia ter sido estudo de caso pra psicólogos: decidi chupar ela.
Sentia como se chupar ela fosse ser usado por ela ao invés de usá-la, dar prazer a ela sem querer nada em troca além de ver que estava satisfeita. Porque ela era tão alta e ainda estava com salto, bastou que eu ficasse de joelho pra fazer isso. Ela colocou a perna direita em cima do meu ombro e se apoiou em uma lata de lixo com o braço direito enquanto puxava meu cabelo com a mão livre. Fui entendendo como ela gostava pelas puxadas que ela dava. Pelo que vi, quando ela puxava com força, eu estava indo no caminho certo. Fui experimentando até ver tudo que ela gostava. Dois dedos, movimentos circulares com a língua e um ritmo progressivo. Ela segurava gemidos, aquilo durou lá pra meia hora. E por incrível que pareça, quem estava em êxtase total era eu. Quando eu senti ela gozar, passou um calafrio pela minha espinha que eu já não sentia há um ano. Eu senti uma euforia misturada com satisfação, como se eu mesmo tivesse acabado de gozar. Depois de alguns segundos eu voltei a sentir meu joelho, que doía absurdamente. Olhei pra cima assim que ela tirou a perna de cima de mim e tomei força pra levantar quando vi que ela estava chorando. Chorava copiosamente, como quem está tirando alguma coisa do sistema.

- Tá tudo bem contigo, Rita? - perguntei
- Como você sabe meu nome? Eu disse pra não te falarem meu nome.
- João me falou.
- Ah. Entendi...
- Mas tá tudo bem contigo?
- Ah, nem sei, sabe? Faz tempo que não me perguntam isso. E já faz muito tempo que não choro também. Esse ano eu passei tentanto voltar a chorar, porque acho que eu era mais... sei lá, mais feliz quando eu chorava de vez em quando. Mas eu já tinha desistido.
- Então você não chora sempre?
- Não, não choro... Eu nem sei direito porque estou chorando, então perguntar não vai te ajudar muito.
- Quer vir pra minha casa e conversar?
- Porque? Não pode conversar aqui?
- Olha, até posso, mas preciso por gelo no meu joelho.
- Ai, nossa, desculpa!

Não sei se foi o pedido de desculpas que me chocou, que parecia completamente dispar com a atitude defensiva de antes, ou se foi a voz dela. Antes era mais grave, carregada de autoridade, mas naquele momento ela foi mais aguda, suave, frágil.

- Se preocupa não, rita. A gente senta e conversa um pouco lá em casa.
- Tá bem, então. Eu normalmente não vou pra casa dos outros, mas dessa vez eu vou por causa do seu joelho. Você tá de carro?
- Não, to de moto.
- Melhor vir de carro, então, né?
- É, acho que sim. Você tá de carro?
- To sim, onde é sua casa?
- É em Niterói.
- Nossa, por isso que você demorou, então?

Não respondi e fomos até o carro dela. Estava bem próximo, como se ela estivesse planejando terminar a transa e ir embora rápido. Mas ela parecia contente com a mudança de planos. Fiquei esperando ela abrir o carro e destravar a porta, mas antes de abrir ela me olhou nos olhos, fechou um pouco os olhos e mordeu os lábios debaixo. Não sei se aquilo era curiosidade, se era desejo, ou se era só uma cara que ela faz simples. Mas me estimulou, eu gostei.

- Você não vai entrar?
- Tá aberta, a porta?
- Tá, ué
- Mas eu não vi você destravando o carro.
- Eu destravei só a sua porta.
- Tem como fazer isso? - perguntei enquanto entrava
- nesse carro tem. Cintos – ela disse

O cinto se prendeu automaticamente e se ajustou ao meu corpo. O carro começou a andar pelas ruas sem o controle dela.

- Mudar destino, niterói. - ela disse.
- É na Augusto Ferreira Ramos, não lembro o número, mas chegando lá eu te mostro

O carro aceitou o meu comando de voz e começou a ir pro local.

- E a sua moto?
- Ah, se preocupa não. Ela tá travada, ninguém vai roubar não?
- É trava eletrônica?
- É tipo isso. Eu projetei os mecanismos de segurança dela e tem algumas coisas... incomuns nela. Me ajudava a passar o tempo.
- Que mecanismos?
- Ah, ela é cheia de parafernalha. Dá choque, solta spray de pimenta e até envenena o cara que tá tentando desarmar ela. Tem que usar minha impressão digital, minha voz e minha senha pra ligar. Não vão roubar não. No máximo destroem dela, mas roubar não.
- O que você faz da vida? Aliás, qual é o seu nome?
- Emanuel - muito prazer
- O que você faz, Emanuel?
- Nada. Eu fazia engenharia de materiais na UFF, mas larguei o curso.
- Porque?
- Diz, Rita, essa é uma sequência de eventos normal pra você? Recebe um oral, vai pra casa do cara, pergunta o nome dele e depois a profissão?
- Hahahahahahaah! Bem, não, mas até que achei legal.
- E você, rita, faz o que?
- Eu tenho uma empresa. Marketing digital e coisas assim. Porque você fala tanto o meu nome?
- Sei lá, me dá vontade. Te incomoda?
- Sei lá, ninguém me chama de rita. Parece que você é meu pai falando quando me chama de rita
- E como te chamam?
- Ninfa
- Sério?
- Sério! Sabe o que é uma ninfa?
- Ah sim, é tipo você mesmo. Faz sentido

Ela sorriu pela primeira vez na minha frente. Com o tempo eu fui entendendo como era difícil arrancar um sorriso ou qualquer outro tipo de emoção dela. Naquele instante, no entanto, só sorri de volta como se fosse uma coisa corriqueira. Mesmo diante do fato de que um sorriso meu também era uma coisa tão rara. Lá estava eu, no carro de uma estranha e passando pelo ponto escuro da ponte sem mais nenhuma vontade de pular. Eu queria saber quem ela era, como ela tinha chegado ali, porque ela fazia o que fazia. Na realidade, era parecido com o que eu sentia pela Liana, só que bem menos intenso. Intensidades à parte, de alguma maneira ela me deu um pouco de vontade de viver, mesmo que só um pouco mais.

- Isso que estamos fazendo é loucura, não é? - ela perguntou
- talvez... Mas o que planejávamos fazer também era, então acho que não faz muita diferença, né?
- É. E acho que, no fim das contas, tudo o que fazemos é meio loucura, né? Então talvez fazer alguma loucura diferente das normais de vez em quando seja justamente a melhor saída!
- Pois é. Se você comete um ato de loucura repetidamente por um certo período de tempo, ele acaba sendo sua sanidade. E nada mais insípido do que a sanidade!

Estávamos rindo como dois bêbados, mesmo diante do fato de que ela era a única que tinha bebido. Decidi que aquela deveria ser a noite em que nós nos alteraríamos quimicamente. Cada um com seus problemas, cada um com seus demônios, nós fugiríamos daquilo tudo com um pouco de maconha. Ok, talvez mais do que apenas um pouco!

- É essa a rua? - ela perguntou estranhando as casas
- É essa sim. Que foiw
- Pensei que hackers tinham mais dinheiro.
- Ha! Valeu por me chamar de pobre! Olha, pro seu governo eu não sou um hacker. Ok, sou mais ou menos hacker, mas eu não trabalho com isso! E tem mais: eu moro aqui porque não tem câmeras nas ruas. Eu gosto de privacidade, sabe?
- Porque não tem câmeras nas ruas?
- Porque o pessoal rouba. Eles desistiram de colocar. Isso aqui não era assmi antigamente, sabe? Só nos últimos anos que ficou meio pesada a situação aqui.

Ela ficou procurando câmeras nos postes, meio confusa, e os gestos dela me deixavam louco. Eu tinha esquecido a sensação de desejar uma pessoa dessa maneira. Eu saia com uns amigos de infância e tudo parecia completamente insípido. Assisti um vídeo antigo de uns caras sendo decapitados e entendi o que estava me acontecendo. Eles perderam a cabeça, mas não foi isso que eu vi. Um deles olhou enquanto o outro era assassinado com aquele rosto abatido, meio inchado de algum espancamento, e o que os olhos dele diziam era: “eu já estou morto”. E era esse meu pensamento. Desde que a liana morreu, eu fui junto com ela e meu corpo ficou vagando por aí como se eu ainda fosse uma criatura desse mundo, mas meu lugar era do outro lado, talvez com ela, se essas coisas existem. Mas então ela apareceu. Uma mulher poderosa por fora, mas frágil por dentro. O casco dela escondia o fato de que ela era feita de carne tenra. Tudo em mim me dirigia a ela e eu não entendia a razão de tanta atração. É só uma viciada em sexo que o Jônatas me indicou achando que um pouco de endorfina resolveria meu problema, como se eu já não tivesse tentado uma via direta pra esse tipo de solução. E ela não era mais atraente do que algumas outras que eu conheci, que pareciam até interessadas em mim, mas que logo desistiam diante da minha total indiferença. Elas pensavam que era em relação a elas e nunca paravam pra perceber que era com relação a qualquer coisa ao me redor.

- Cê tá chapado, manu?
- Do que você me chamou – respondi com um calafrio repentino
- Ah, seu nome é muito longo. Manu tá bom!
- Me chama de Emanuel, Rita, na boa.
- porque? Manu é unisex, cara!
- Quer ficar chapada?
- Vamo lá!

Entramos na minha casa, que estava estranhamente arrumada. Acho que arrumei tudo naquele ímpeto que eu criei de deixar tudo nesse mundo em ordem antes de abandoná-lo. Peguei uns cigarros prontos da minha gaveta e começamos a fumar. Logo ali eu tinha alguma comida e meu whisky, que preferi deixar intacto por algum motivo. Antes que eu pudesse pensar, ela estava me beijando. Só quando ela subiu em cima de mim que eu realmente pude perceber a delícia que era a pele dela. O perfume, eu percebi, não era artificial: ela tinha mesmo aquele cheiro delicioso de mulher que deixa um homem louco. Era como se tudo nela fosse milimetricamente projetado pra deixar um cara louco, mas tudo o que eu queria era descer e chupar ela mais uma vez. De alguma maneira, parecia que aquilo me traria muito mais satisfação do que transar com ela, e foi novamente o que eu fiz.

- Porque você não transa comigo? - Ela perguntou quando percebeu o que eu estava prestes a fazer

Eu poderia aparecer com uma porção de resposta, porque sempre fui bom com as palavras, mas acabei não dizendo nada. Eu só olhei nos olhos dela, sorri, e voltei ao trabalho. Imaginei que a imaginação dela diria as palavras certas por mim e, francamente, não era palavras que eu queria na minha boca naquele momento. Era muito mais do que dois dedos e uma língua e é difícil explicar algo assim pra quem nunca tentou. Você se entrega por completo, tudo o que você tem é daquela pessoa naquele momento. E esse momento, o presente, é tudo o que importa. Seu passado, suas dores e suas mágoas, vão todos embora. Seu futuro, com todas suas incógnitas desaparece, porque seu universo gira em torno de um bom sexo oral. Mas acaba que não é só no sexo: Você vai fazendo coisinhas pequenas por outra pessoa e cada sorriso dela é uma recompensa maior do que tudo. Naquela noite e no mês que a seguiu, eu comecei a me entender melhor. Toda manhã eu acordava e dizia: “ah, amanhã eu vou na ponte, hoje eu quero fazer massagem nela”. Coisas desse tipo surgiam todos os dias e acabou que dar prazer foi se tornando minha única razão de existir.
Eu sei que é estranho, sei que é difícil acreditar que passei um mês junto com ela e nunca entrei. Não que tenha sido por falta de vontade, porque tudo aquilo renovou minha vontade de viver. Acontece que quando ela vinha na minha direção querendo sexo, o que eu via em seus olhos era dor, não desejo. Era culpa, não entrega. Ela estava apenas se rendendo a um vício e eu, de alguma maneira, me elegi como um salvador, o cara que ia tirar ela daquele buraco e fazê-la entender o quão especial ela era. Entrar nela, por mais tentador que fosse, a faria mal, e o impulso de arrancar sorrisos foi maior do que o impulso de transar.
Passado um mês, ela estava mudada. Eu tinha criado o hábito louco de acordar antes dela e despertá-la com mais e mais sexo oral, especialmente porque ela já não chorava com aquilo, o que tornava a coisa mais estimulante pra mim. Mas numa manhã de domingo ela pegou minha cabeça, puxou pro rosto dela e me deu um beijo. Um daqueles bem longos que relaxam o corpo todo e fazem seu mundo rodar. Justo naquele momento eu entendi que era ela me resgatando, ela que estava me dando prazer. E uns instantes, ela inverteu a situação e eu estava indefeso em sua mão, pra ela fazer de mim o que quisesse. Ela estava reabilitada. Aquele olhar impulsivo desapareceu e percebi isso quando o beijo acabou. Ela estava em paz. Pensei que iríamos transar naquele dia, mas acabou que isso só aconteceu anos depois. Alguém bateu na porta e eu fui atender enquanto ela bebia a água que eu deixei ao lado da cama.

- Oi, você não deve me conhecer. Meu nome é Matias e eu vim buscar a minha filha – o homem disse antes que eu pudesse dizer qualquer coisa
- Desculpa, quem é sua filha? - perguntei coçando os olhos
- Rita, seu pai tá aqui!

O copo quebrou e de súbito eu tive que me esquivar pra dar passagem. Ela veio correndo e pulou nos braços do cara e eu não entendi porra nenhuma. Ela chorava, ele chorava e eu me sentia como um estranho naquela situação, como se eu devesse sair da casa e dar privacidade. E ele percebeu isso.

- Você é o Emanuel, não é? Quero conversar com você – ele disse

Eu não sabia o que esperar. Será que ele estava prestes a me atacar ou me denunciar pra polícia? Será que ele iria me jurar de morte por ter raptado a filha dele? Fosse o que fosse, eu não senti medo, porque algo no olhar dele me passou tranquilidade. Rita acariciou meus ombros e foi pro banheiro tomar um banho correndo. Ela sempre fazia exatamente aquilo quando estávamos pra sair pra algum lugar. Foi aí que eu entendi que ela estava indo embora. Pensei que esse momento fosse me deixar triste, porque de alguma forma eu tinha certeza que ele chegaria. Mas não aconteceu. Eu só senti como se tivesse cumprido uma missão. Minha cabeça estava um turbilhão e eu tinha que dar atenção ao pai dela, que estava ali parado olhando pro banheiro.

- Entra aí, a casa é sua. - eu disse
- Ah, obrigado!
- Quer agua, cerveja, alguma coisa?
- Que cervejas você tem aí?
- Bem, dá uma olhada!

Abri a geladeira e ele prontamente escolheu a mais cara de todas, abriu e começou a beber em silêncio. Pensei em como eu estava me sentindo naquele momento. Foi uma tranquilidade que eu só sentia com a Liana, quando fazia alguma bobagem que ela pedia. Entendi, finalmente, que minha paz de espírito não era por causa dela, mas pela forma que eu levava a minha vida enquanto estava com ela. Todo aquele amor foi seguido de muita entrega e era essa minha força motriz. Não era tão diferente de passar um mês meio confinado fazendo sexo oral em uma mulher e ouvindo sobre todas as ânsias e sonhos dela. Era entrega, a mais pura entrega. Essa era a razão da minha vida antes, mas como eu só comecei a sentir com aquele namoro, enfiei na minha cabeça que ela era a razão de eu existir. Mas não era, a resposta estava bem diante dos meus olhos e o destino deixou pra me mostrar isso aos 45 do segundo tempo.

- Eu sei o que você fez, rapaz, e sei o que você é – Matias disse
- O que? Do que você tá falando?
- Eu sempre acompanho os passos da minha filha e sei o que tem se passado na vida dela. Nada do que foi feito ou dito passou sem ser notado
- Cara, eu tive boas intenções, é sério, pergunta pra ela. Eu não maltratei ela.
- Então espero que me perdoe, rapaz, porque quem cometeu a ofensa fui eu.
- Como? Não to te entendendo!
- Eu matei o seu amigo. Jônatas, ele se chamava.
- O que?! Você... Matou ele? Que porra é essa!?
- Ele era um filho da puta. Sei que vocês eram amigos de infância, mas ele rastreou minha filha e começou a explorar o vício dela. Ele estava vendendo ela pra outras pessoas como se fosse uma prostituta, como se ela fosse propriedade dele. Ele veio até a sua casa armado, achando que você tinha roubado ela dele e estava vendendo ela nesse lado da ponte, então eu o degolei bem aqui na sua porta. Vocês estavam dormindo, você mesmo roncava absurdamente e nem me ouviram removendo o corpo e limpando o local. Sabe-se lá o que ele estava prestes a fazer, mas eu não podia me sentar inerte. Não mais.
- Você salvou a gente, então? Porque você não interferiu antes?
- A ordem não deixava. “Servir, satisfazer, curar”...
- Que ordem? Tá falando do que, cara?
- Os indulgers. Eu tentei, mas acho que não sou mesmo um deles. Talvez você seja, no entanto.
- O que é isso?
- Rapaz, sem ofensa. Eu vi o que você fez pela minha filha e fico realmente agradecido. Mas não é de mim que você tem que ouvir essa resposta. Pega aqui esse cartão.

Ele deixou um cartão com um número de telefone na mesa da minha cozinha e antes que eu pudesse pronunciar qualquer resposta ela estava pronta pra sair. Com aquele short jeans que comprei pra ela uma camisa minha do bob esponja que ela sempre usava pra ir na padaria. Ela não estava vestida com a pomposidade usual, mas o sorriso dela brilhava e, pelo menos pra mim, era mais belo que qualquer ornamento.

- Liga pro número, Emanuel. E não se preocupa, eu estarei por ai. A gente se encontra mais uma vez. Aí quem sabe não escrevemos aquele conto que queríamos escrever juntos?


Eu queria sorrir e chorar, mas não fiz nada daquilo. Alguma coisa me segurou, algo me disse que o silêncio era a opção mais sábia. Demos um longo abraço e ela beijou meu pescoço antes de me soltar e sair com o pai. Sentei na minha cozinha e terminei a cerveja que ele deixou. Minha cama ainda tinha o cheiro dela, então fiquei deitado ali por algum tempo olhando pro cartão. Eu tinha uma vida pra sempre e meu GPS mostrava que minha moto tinha sido rebocada e não roubada. Decidi sair pelo país com esse cartão no bolso e ver se me daria vontade de ligar. Eu não estava muito preocupado com aquilo, no fim das contas. Só queria sair pilotando pela estrada e, quem sabe, descobrir mais alguém pra proteger e servir. De uma maneira ou outra, eu queria viver e voltei a acreditar no amor.

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