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5 - Redenção, poder e o mal do século

Constantino Augusto Peçanha - 2075

Os detalhes eram excruciantes e não paravam de chegar. A inexpressividade robótica dos jornalistas foi desconstruída e o horror em seus olhos mostravam o horror daquela situação. Tudo queimado, calcinado, despedaçado. Fumaça pra todo lado. O medo já tinha acabado e as imagens naquele momento mostravam outra coisa: apatia. Pessoas sentadas no meio fio, envolvidas em cobertores e com copos nas mãos olhando pro chão, de alguma maneira ausentes daquilo tudo. O tráfego de informações estava sobre o controle da liga há alguns anos e ninguém conseguiria provas do envolvimento de nenhum membro, mesmo que seja óbvio que esse tipo de tecnologia só é produzido por lá. Mas como me disseram certa vez, não importa o que você faça, se pro bem ou pro mal, o que determina as consequências é o seu poder e nada mais. E quem tem poder pra se erguer e punir a liga agora? Por acaso existe algum magnata poderoso que ainda não tenha relações comerciais intensas com a liga? Por acaso existe governo com inteligência e tecnologia pra enfrentar esse grupo de cientistas que, no fim das contas, já se tornou uma nação? Se foi a época em que o número de soldados faz a diferença em uma guerra. Temos robôs de guerra. E está indo embora o tempo em que você pode usar dinheiro pra destruir seu inimigo. Não um inimigo como a liga, pelo menos, que é irritantemente autossuficiente. Não existe bloqueio econômico que possa entravar o progresso desse monstro que ajudei a criar, não há mais nada que pare a ciência feita titã. Conhecimento, nos dias de hoje, é a única forma de poder que restou. E é praticamente apenas na liga que ele é produzido com infra-estrutura que viabilize o avanço tecnológico rápido. Até o Marsídio, esse mineral aberrante conseguido em marte, temos em abundância pra pesquisa. Qualquer cientista que queira ver seu trabalho valorizado e realizado sem as limitações econômicas e burocráticas comuns acaba cedendo e indo pra liga. E já morreu a geração dos reacionários.
Não sei se o embrulho no meu estômago era porque ajudei a criar a liga, se porque no fundo ainda me sinto como parte dela, ou se era por saber que foi meu filho a usar essa arma. Vendo aquelas pessoas atônitas, nada passava pela minha cabeça a não ser “Isso é tudo culpa minha”. Culpa minha por ter dado mais valor a ideais idiotas do que à minha família e deixado meu filho se perder pelo mundo. Culpa minha por ter tido ideais radicais demais, que por algum milagre as pessoas decidiram seguir, e que resultou nessa abominação.
Normalmente eu deitaria minha cama, ligaria meu concentrador de oxigênio colocaria minha emoções sob controle. Em último caso, usaria um dos diversos métodos pra supressão de respostas emocionais. Mas, paradoxalmente, minha segunda infância me tornou totalmente artificial e ainda assim muito mais espontâneo. Minhas emoções ficaram fortes, como se na reconstrução alguma coisa que faltava em mim tivesse sido reconstruída de maneira apropriada. Finalmente eu estava me tornando mais parecido com aquele arquétipo que a Luíza queria!

- Já te disseram que você é um chorão? Cara, você parece que saiu de algum filme! - Luíza disse
- Tá todo mundo morto, Luíza. - falei inconfortavelmente – Olha só aquilo!
- Sim, sim, mais uma atrocidade da liga. Todo mundo sabe que eles estão criando essas armas absurdas e destruidoras. Mas isso me deixa revoltada, não com vontade de chorar.
- Bem... É complicado... - respondi limpando o rosto

O menino voltou com o traje cuspindo fogo. Dessa vez o fogo não ia na mesma direção que ele, mas para trás. Ele estava sendo perseguido por um homem, possivelmente um viciado que tomaria a roupa dele. Eu não podia deixar aquilo acontecer. Não, aquele menino não podia acabar virando mais um monstro ou viciado sem esperança. Não quero que ele seja mais uma criança abandonada à própria sorte, se forjando por valores violentos e degradantes pra se adaptar a esse mundo doente. Não, esse menino é esperto! E ele parece tanto com o Frederico!
Esse meu filho foi um acidente mágico. Nascido em 2014, ele foi o acidente que acabou salvando o namoro meio disfuncional que eu e Luíza tínhamos. Quando ele era pequeno nós ainda estavamos nos formando, ela terminando o mestrado e eu no meio da minha graduação. Tudo conturbado, tudo limitado, mas nós conseguimos. E passar tempo com ele, brincar com ele, lutar pra comprar um brinquedo, era um propósito que unia a todos nós. Eu sinceramente não sei o que aconteceu com ele. Nós dois éramos presentes na época de infância dele, fizemos o nosso melhor. Éramos jovens e inexperientes, mas fizemos melhor com ele do que com os outros dois que vieram apenas mais tarde, quando já estávamos envolvidos como trabalho até o pescoço. No momento socialmente aceitável, quando todos diziam que estávamos prontos por termos dinheiro, aquele apartamento enorme, foi precisamente onde mais falhamos. No ímpeto de prover bens materiais, acabamos esquecendo o mais importante: presença, atenção, segurança. Luíza percebeu isso muito antes de mim, mas já era tarde demais. Letícia, minha menininha, já não falava comigo ou com Luíza e não dizia os motivos e Emanuel já tinha saído naquela jornada estranha pelo mundo. Pensávamos que era bom, porque ele saiu da depressão em que estava antes, mas ele nunca mais voltou, fez absurdos e acabou se tornando um genocida. Mas e com o Frederico, o que fizemos de errado? Quando nos tornamos ausentes, ele já tinha seus 18 anos, já tinha ido embora pra faculdade. Mas ele também foi se afastando lentamente e mais ou menos na época em que Emanuel ficou deprimido ele foi embora do país e continuou se comunicando apenas com Letícia. Talvez tenha sido justamente esse senso de impotência e fracasso que tenha desgastado o casamento. Ou talvez tudo tenha sido um enorme equívoco, uma união de pessoas que nunca foram compatíveis de verdade, mas que se cruzaram ao acaso pela estocasticidade da vida.
Mas eu queria uma segunda chance, já que tudo na minha vida estava recomeçando. Eu queria tomar coragem e falar com meus filhos, e dizer que os amo. Dizer que fiz tudo errado, que nunca passei de uma criança grande, mas que isso não significa que nunca os amei. Que quero compensar tudo, que quero desfazer todos os meus erros e finalmente ser um pai. Mas naquele momento tudo o que passava pela minha cabeça que aquele menino também não teria pais. Mais uma criança desamparada, mais uma criança aprendendo que a vida não é gentil. E justo eu, que prometi que lutaria bem das humanidade com especial ênfase nas crianças, acabei esquecendo todos os meus ideais com o passar dos anos. Mas eu já era jovem demais pra ficar inerte, então levantei e fui em direção à saída. A porta tinha trava eletrônica, então não tive que me preocupar com abrir a porta.

- Espera Tino, onde você tá indo? Ficou chateado com o que eu falei? Olha, desculpa, eu faço de tudo pra tentar entender as pessoas da sua época, mas a verdade é que eu não entendo como as coisas eram e só sonho com um passado mágico. É fácil sonhar, sabe? Quando você nunca vai de fato voltar no tempo pra verificar que suas crenças não se aplicam.

Olhei pra ela e vi mais uma criança perdida. Onde estariam os pais dela? No fim das contas, eles não eram tão diferentes de mim. Trabalharam e trabalharam pro bem dos seus filhos apenas pra descobrir que estavam fazendo tudo errado tarde demais.

- Eu vou salvar aquele menino. Ele não vai ficar largado na rua, crianças não podem ficar largadas assim
- O quê? Você está chateado comigo ou não?
- Você me falou a verdade, Luíza, estou chorão como uma menininha. Não pense que você pode me ofender falando a verdade. Eu não sou assim. Mas aquele menino, ele vai perder a roupa que acabei de dar pra ele de presente. E se ele também perder a esperança?
- Tino, é sério, não se mete com esse menino. O pessoal que é dono dele é barra pesada...
- Dono? O menino por acaso é um escravo? Eu não tenho medo de bandidos, eu tenho meus contatos também!
- Que contatos? Polícia? Eu não iria falar com eles sem pelo menos alguma proteção robótica, tem que tomar cuidado com esses traficantes.
- Como você sabe essas coisas?
- Todo mundo que mora nesse lado da cidade acaba sabendo, ué. Aqui a lei quem dita é essa quadrilha e não tem polícia que ponha rédeas nisso, porque eles são inteligentes.

Pensei em chamar o Creed, mas não consegui. No fundo eu queria culpar ele pela morte da Luíza, como se as ações dele não fizessem total sentido na época em que vivemos. Os argumentos dela estavam corretos, ele espionar a vida dela pra encontrar um momento ótimo pra eu conversar faz sentido. Tudo é filmado, interpretado e registrado, a vida se tornou um enorme reality show. Tudo o que ele fez foi agir naturalmente e lidar com as informações da forma que fazem hoje em. Ele não tinha como adivinhar que ela olharia na minha cara e conseguiria extrair informações com aquele sexto sentido que ela tinha e também não tinha como prever que ela reagiria como reagiu. E certamente não poderia prever que ela interromperia tratamentos pra morrer por causas naturais depois desse choque. Mas se não fosse ele, seria outro. Ela era uma celebridade, a vida dela era sempre monitorada e mais cedo ou mais tarde ela perceberia isso.
Mas nada tirava da minha mente que ele poderia não ter monitorado a vida dela. Até porque, eu nunca pedi isso pra ele. E no fundo eu sentia que se ela não tivesse passado por isso eu teria tempo pra conversar com ela e convencê-la, mesmo que apelando pros nossos filhos, a aceitar o procedimento e lutar pela nossa família. Ficou enraizada em mim a idéia de que tudo poderia ter sido como eu sonhava. Até porque, Emanuel e Frederico aceitaram a reconstrução e Letícia conseguiu a reconstrução dela por conta própria, então, de um ponto de vista biológico, tudo estava reconstruído. Só faltava nossa matriarca voltar e acolher todo mundo em seus braços. Mas Creed apareceu e me falou a verdade. E ela viu essa verdade nos meus olhos e se sentiu violada. Como chamar ele agora pra pedir informação depois de todas as atrocidades que falei pra ele e depois de reduzir nossa relação a manutenção no endocomputador e na renovação dinâmica das mitocôndrias?
Tentei levantar, mas meu corpo não respondeu como eu esperava. Perdi o equilíbrio e logo recebi o viso nos meus óculos. Meus níveis calóricos estava perigosamente baixos e meus bloqueios de notificações metabólicas foram quebrados pela emergência. Sem perceber, eu estava sem comer a três dias. Deixei todas as minhas barras calóricas em casa. Depois de todo esse avanço e transhumanização, depois de vencer a velhice, o que me parou foi a fome!

- Tudo bem contigo, Tino?
- Sim, só estou com fome, aparentemente.
- Aparentemente? Você bloqueia sua sensação de fome?
- Atrapalhava meu trabalho, essa urgência diminui minha concentração.
- E você nunca ficou doente?
- Não. Temos barras calóricas que fornecem basicamente tudo o que o nosso organismo precisa nas proporções mais eficientes.
- mais saudáveis, você diz?
- Não, a eficiência é cognitiva. Comemos pra melhorar o desempenho cognitivo e isso nem sempre significa o mais saudável. E se algum dano ocorre, basta revertermos ou substituirmos o órgão em questão. Geralmente fígados e estômagos são descartáveis. Mas não tenho nenhuma barra aqui.
- Quer dizer que você vive comendo tipo uma comida de astronauta?! Que deprimente, tino! Vou te fazer alguma coisa de verdade pra comer.

Eu não tinha muita escolha, então reativei meus sinais sensoriais e logo caí no sofá cama dela. Eu estava com tão poucas calorias que meu cérebro simplesmente me derrubou. Fiquei tonto, desorientado e extremamente ávido. Reagi como um cão de rua quando senti o cheiro do bife que ela estava fritando com curry e pimenta, mas me controlei até ele ficar pronto. Ela serviu basicamente dois pães com carne pra mim, como bastante gordura, proteína e carboidratos. E eu senti, depois de anos, aquela alegria de comer quando com fome. Uma que eu esqueci primeiro quando Luiza me fez criar um plano de alimentação que não em deixava sentir esse nível de fome. E que, ainda por cima, apaguei do meu repertório ao ativar o bloqueio a “anestesia focada permanente”. Com o tempo você vai esquecendo que não passa de um animal como qualquer outro.

- Eu amo exatamente esse tempero. É o meu preferido – falei depois de dar um belo gole na agua cafeinada que encontrei ao lado do sofá-cama.
- Eu sei, eu li a sua biografia
- O quê? - perguntei atônito
- Tudo bem, na verdade a biografia é da Luíza, mas ela menciona que fazia isso pra você. E eu comecei a fazer igual algum tempo atrás depois de ler.
- Nossa, seria estranho se fizessem uma biografia minha sem eu saber e comigo vivo, não?
- É, eu acho. Mas tem tanto livro saindo pro aí que é seria bem capaz de você nunca saber desse.
- Não, eu saberia. Se estivesse nas nuvens eu saberia.
- Ah, esqueci, a liga vê tudo! Mas você não está aposentado?
- Deixa isso pra lá. Você já estava pra fazer isso ou fez só porque eu gosto?
- Fiz porque você estava falando da sua fome como é descrito no livro. “De súbito, como se no instante anterior tudo estivesse perfeitamente bem, a fome dele chegava, e ele parava tudo o que estivesse fazendo pra comer, como se tivesse um botão de fome que só era acionado quando ele estava com muita fome” - ela disse lendo a citação em seus óculos.

Meu estômago embrulhou. Eu já estava terminando o último pão e continuei comendo com a mesma teimosia da minha juventude. Mas mastiguei devagar e engoli com esforço, porque minha garganta parecia mais estreita. Lembrei daquele cheiro que se espalhava pelo nosso apartamento minúsculo quando ela cozinhava pra mim. De uma vez que ela fez lasanha bolonhesa com esse mesmo tempero que eu sempre amei, mas decidiu colocar maçã no meio pra não desperdiçar e ainda assim ficou uma delícia. O aperto no peito era pelo passado perdido, pelos momentos bons que não voltariam mais. Quando tínhamos menos coisas e mais problemas foi o período mais feliz. Conforme fomos vencendo as limitações do começo, ironicamente, tudo foi piorando. Eu queria fazer como alguns e pedir uma realidade virtual feita sobre medida, entrar nela e viver eternamente o sonho de voltar no tempo. Mas sempre que eu sonhava com ela nas minhas noites desconectadas eu acordava em desespero. Algo dentro de mim quebrou e voltar no tempo não seria suficiente pra me fazer sentir aquela felicidade novamente. Algumas coisas, descobri, quando quebradas não têm mais conserto.

- Más lembranças? - ela perguntou
- Não, pelo contrário. Ótimas lembranças. Eu que dei um jeito de torná-las um tormento. É o preço que você paga por pensar demais.
- Acho que sei como é. Aquele trem onde nos encontramos era onde nos escondíamos juntos, eu e o Fernando.
- Seu ex?
- É. Só passei bons momentos lá, mas lembrar deles hoje em dia é doloroso. Quando eu vou ali eu fico pensando se ainda é possível você ter uma relação nesse mundo. Com todo mundo querendo receber tudo, toda a atenção, todo o amor, quase não restou quem seja capaz de dar essas coisas. Só tem os indulgers mesmo, eu acho.
- O que? O que é isso?
- É tipo um grupo de prostitutos, algo assim. Pessoas que, mesmo nesse mundo louco em que vivemos, saem por aí satisfazendo anseios dos outros. Eles nem cobram nada, sabe? Simplesmente chegam até a pessoa, fazem todas as vontades dela e daí vão embora. Já li vários relatos de encontros com eles. Fazem todo tipo de loucura e fantasias que as pessoas têm, mas o que eles oferecem que todo mundo quer mesmo é atenção incondicional. Eles se desconectam da nuvem, tiram os óculos e se fecham num quarto com você como se nada importasse além de você. Geralmente eles frequentam os plasmas, sabe onde nos conhecemos?
- Engraçado, eu lembro de uma entrevista muito antiga, coisa da década de 50, sobre algo parecido.
- Não é tão antiga assim, então!
- É sim. 125 anos!
- Do século passado! É escrita, então?
- Não, é um vídeo mesmo. Com um autor que eu amava. O jornalista perguntou pra ele sobre uma preocupação que tinha na época, de que o ser humano se transformaria em algo como só mais um tijolo na parede, sem vontade, sem voz. Eles não imaginavam que o que aconteceria seria justamente o contrário: que o muro cairia e que cada tijolo iria querer ser um muro inteiro. Eles viviam ditaduras e centralização porque os meios de comunicação eram centralizados.
- Mas o que isso tem a ver com o que eu disse?
- É que não terminei. A resposta dele foi espetacular. Ele disse que se surgir uma sociedade com esse nível de deturpação, surgiria uma reação. Que isso não é natural à psiquê humana, então surgiria algum movimento na sociedade pra se contrapor violentamente. Esses indulgers que você menciona parecem uma reação contra uma cultura em que todo mundo quer ser a estrela, o especial, o centro das atenções. Um fenômeno previsto de maneira indireta a tanto tempo atrás! Ah, que saudade da minha época filosófica...
- Mas ele previu o contrário. Ele errou!
- Não, ele não previu isso. Quem previu foi o repórter. Ele apenas respondeu o que aconteceria se a previsão do repórter se concretizasse. É um mecanismo de equilíbrio a lógica dele. Que funciona pra ambos os lados.
- Nossa, você parece melhor. Passaram as lembranças ruins?
- Ah sim, estou lembrando de um período bem conturbado da minha vida e ele também se inverteu. Lembro de tudo com carinho agora. Enfim, preciso ir. A energia já está suficientemente metabolizada e eu preciso ir.
- Mas porque, onde você vai, Tino?
- Eu vou salvar aquele menino.
- O que? Só vai se eu for contigo! - ela levantou o tom de voz – você vai falar bobagem e acabar envenenado. O veneno deles acaba até com sangue artificial, sabe?

Gostei do fato de que ela quis se fazer de guardiã. E mesmo que eu estivesse equipado com o sistema de defesa mais avançado de defesa, quis ter meu momento “indulger” e deixar ela ser minha heroína. E fomos descendo por aquela escadaria estreita, íngreme e escura até chegarmos na rua, com aquele cheiro estranho. Ele ficou muito mais incômodo com minhas respostas sensoriais reativadas. Como se o lugar fosse realmente imundo, apesar de parecer perfeitamente limpo. Uma sensação realmente estranha.

- Você tem certeza disso? - ela perguntou mais uma vez
- Tenho toda a certeza que eu jurei nunca ter sobre nada nessa vida.

Ela fez um sorriso diferente, como se estivesse achando minha fala estranha. E, pensando bem, foi bem estranha mesmo. Antes que eu pudesse pensar sobre qualquer coisa, o menino chegou sendo arrastado pelo homem que o perseguia. Era tão pequeno que toda a sua luta não era suficiente pra ajudá-lo a se livrar de apenas um braço de seu captor, mas ele não parecia disposto a desistir.

- O moleque roubou isso de você? - perguntou o homem parecendo não se importar com quem eu era
- Não. Eu comprei e dei de presente ele.
- Viu? Hablei pra tu que foi de presente!
- Cala a boca, pivete, que não to com paciência. E você, moleque, é algum tipo de playboy bom samaritano ou o quê?
- Sou um cidadão preocupado. Quero que você me leve até o seu chefe.
- Meu chefe? Moleque, meu chefe é minha nove milímetros!

O homem puxou uma pistola bem ali no meio da rua. Apontou pro meu peito e ideias de combate começaram a tomar conta da minha mente. Lembrei de todas as técnicas de desarme que aprendi em realidade virtual enquanto aprendia swahili e trocava de corpo. Mas decidi usar intimidação invés de agressão. Em um movimento bem calculado que mal consigo descerver, movi a pistola dele na direção do meu braço direito e ele disparou. A pistola não fez som algum e senti a bala atravessando meu braço porque, brilhantemente, eu tinha deixado esse tipo de resposta sensorial ligada. Em segundos o sangramento já estava estancado e meus óculos mostravam a barrinha de progresso dos reparos no meu tecido. O homem olhava pro meu braço expressando assombro enquanto se comunicava com alguém usando os óculos. Se eu ainda falasse com o Creed, talvez optasse por interceptar a ligação, mas dessa vez decidi me arriscar e agir por puro instinto. Ele largou o moleque e guardou a pistola. Vi o menino correr e se embrenhar em algum tipo de tubulação em poucos segundos como se fosse sua rota usual de fuga.

- Então você não é bem um moleque, não é? Venham comigo, os dois.
- Não, Tino, vamos embora. Esse cara é perigoso, é sério, vamos embora – dizia Luíza por mensagens que não paravam de chegar nos meus óculos
- Constantino, aqui é Creed. Desculpe te contatar, mas receio concordar com sua nova companheira de jornada. Você está numa rota muito perigosa.
- Que foi, está me espionando agora? - falei em voz alta
- O que? - perguntou o homem
- Quer que eu me mate também, é isso? Quer me lembrar de como sou uma criatura analógica num mundo digital? - gritei
- Você nunca foi uma criatura digital, cara. Fica aí repetindo os ideais da Luiza como se fosse seus, mas não são. Você endeusou ela desde o momento em que ela faleceu, mas não esqueça de como ela te fazia se sentir miserável e insuficiente!

Meu sangue ferveu e eu senti uma vontade estranha de destruir alguma coisa. Especialmente porque o que ele disse era verdade, mas, ainda assim, eu sentia raiva a cada palavra que chegava dele. Talvez minha raiva fosse de mim mesmo, ou talvez do fato de que o mundo mudou e não acomodava mais ela. Difícil discernir, porque eu parecia sentir aquela raiva adolescente fundamental que, no fim do dia, não tem nenhuma causa. Ela é canalizada à posteriori. E eu estava com cada vez mais clareza da direção pra onde a minha seria direcionada.

- Nos falamos mais tarde, Creed. Se você estiver errado, nos falamos mais tarde.
- Quem é Creed? - Luíza perguntou
- Não se preocupe com ele.

O homem parecia não se importar com a nossa conversa. Ele passava a sensação de ter tido uma vida bem difícil que o deixou daquele jeito, parecendo incapaz de esboçar um sorriso ou ser amigável. Só pela reação da Luíza, era possível deduzir que ele tinha fama ali na região. De alguma maneira, um homem armado e perigoso não era detectado por toda a tecnologia da informação. Eu costumava pensar que com todo o monitoramento o crime seria progressivamente erradicado, mas ao que tudo indica ele ficou apenas mais sofisticado. Atividades ilegais, eu descobri, sempre se mantêm um pouco mais sofisticadas do que sistemas de vigilância e punição e os seres humanos sempre encontram uma saída pra continuar seguindo suas tendências destrutivas. Andamos por corredores que mais pareciam labirintos e Luíza parecia cada vez mais assustada com a situação. Pra falar a verdade, não entendi muito bem porque ela continuou me seguindo se ela poderia dar meia volta e ir embora a qualquer momento. Bem, talvez não pudesse. Que pessoa que vive fora desse mundo do crime realmente entende como ele funciona, afinal?

- Miguel está pronto para recebê-los, por aqui – disse o homem

A parede se abriu, numa daquelas antigas portas escondidas, revelando uma sala que parecia um show de aberrações. Partes de animais a pessoas penduradas pela parede e artefatos tecnológicos barbáricos em amostra. Tinha até um neuralizador dos primeiros modelos de uso individualizado idêntico aos utilizados na Grande Guerra. Tudo ali dentro parecia especificamente planejado para intimidar pessoas, mas no fim das contas apenas me deixou com mais raiva. Era esse tipo de psicopata que tomava contas das crianças por ali.

- Bem vindo à minha humilde residência – disse Miguel, sorrindo com seus dentes de ouro – pro favor, sente-se

Luíza congelou com as costas na porta. Parecia estar em pânico e reconhecer o homem, mas eu já estava desligado demais da sociedade pra entender a situação. Felizmente, ele também não entendia a situação em que estava, então estávamos todos dando tiros no escuro.

- Vou me sentir em casa, então – falei pra mostrar que o lugar não me intimidava.

Quando dei meu segundo passo, meus óculos detectaram um braço robótico apontando uma arma na minha direção e imediatamente meu endocumputador passou a informação pro meu cérebro. Foi tudo muito rápido e bem diferente do que eu previa com base nas simulações. Fiz uma acrobacia e me apoiei todo o meu peso no braço esquerdo sem muito esforço pra me esquivar da mira da arma, mas Miguel se aproveitou disso pra me acertar com um dardo poli-venenoso e eu caí no chão. Me levantei com dificuldade enquanto meu sangue era filtrado e o veneno ia pingando pra fora de mim pela minha mão sem que eu pudesse controlar o fluxo. A mistura de venenos era tão poderosa que meu sistema estava trabalhando em eficiência máxima e ainda assim eu precisei me sentar e esperar dois minutos pra todo o veneno sair. E mesmo sem o veneno, continuei me sentindo mal, porque acabei desidratando meu corpo no processo de eliminar as toxinas. O homem me ofereceu agua, mas eu não estava mal o bastante pra aceitar agua de uma pessoa que acabou de tentar me envenenar.

- O senhor desculpe as minhas medidas de precaução. Acontece que eu precisava descobrir se você realmente é quem meu sistema de identificação facial disse. Soube que você tinha saído pelo mundo pra curtir a vida, mas não imaginei que isso significaria vir pra esse buraco comer uma versão refeita da sua esposa. Mas devo reconhecer, é um brinquedo tentador, essa aí. Mas vamos direto ao assunto, o que você quer no meu território?
- Seu território?
- Sim, meu território, minhas leis, minha gente.
- Eu estava passando por aí e esbarrei em um menino que me lembrou meu filho quando operava uma dessas camisetas públicas. Esperto, o moleque.
- Ah, já entendi. Você é mais um daqueles velhos pervertidos e quer levar uma criança pra abusar. Más notícias, cara. Nós aqui protegemos os nossos e isso inclui não deixar que nossas crianças sofram esse tipo de abuso. Compra uma porra de robô, seu doente!
- Você me acusa de ser um pervertido, mas treina crianças para serem traficantes e morrerem aos seus trinta anos de idade por overdose. Entendo que pessoas como você só consigam ver perversão no mundo, porque imundice é tudo o que você tem pra projetar, mas minhas motivações são bem diferentes do que você disse. Eu fiz muita merda na minha vida, cruzei muitas linhas e não posso mais desfazer os erros do passado. Mas quando vi essa criança abandonada pelas ruas, pensei que poderia tentar mais uma vez. Adotar o menino e providenciar pra que ele viva em um lar e que receba educação adequada.
- Caralho, então é verdade que você é viadinho assim? Eu li naquela biografia e não quis acreditar. Seja como for, o moleque não está à venda. Quer fazer caridade, adote uma criança lá pro norte do país, onde elas nascem como filhotes de coelho. Minhas crianças são minha família e não vendo elas pra nenhum velho tirar seu peso na consciência.
- Tudo está a venda, caro Miguel. A questão é o preço.
- Bem, como você pode ver, dinheiro não é um problema pra mim. Essas crianças são lucrativas.

Senti ódio, queria matar ele ali mesmo, mas meu corpo não responderia bem com aquele nível de hidratação. Acabei decidindo comprar o homem e deixar o conflito pra outro momento, talvez mais planejado.

- Com essa reconstrução barata, me surpreende que você venha me dizer que não tem problemas com dinheiro. Você me parece um homem ambicioso e já deve entender que os eixos do poder estão mudando, não é?
- Sim, não há como negar que a liga mudou tudo o que entendíamos sobre poder. Hoje nós sabemos que ciência é poder em sua essência, poder sobre a natureza e sobre todas as pessoas sem conhecimento. Mas não estou muito interessado e receber aulinhas e adquirir o poder do conhecimento, velho. Eu tenho outros planos.
- Não tenho tempo pra discutir demais. Ofereço uma reconstrução completa, com sangue decente e uma vaga de segunda infância no departamento de defesa da liga.
- O que? Você enlouqueceu? Tudo isso por causa de uma porra de um moleque? Os pais dele eram só dois drogados, não tem nada de especial nele!
- A oferta não vai ficar de pé por muito tempo.
- Eu não confio em você. Se você pode me oferecer tudo isso só por uma criança, porque você não simplesmente leva o moleque embora a força pra África central?
- O menino só conhece esse lugar e só respeita as regras daqui. Se eu pretendo educar esse menino, pelo menos no começo vou precisar exercer a sua autoridade sobre ele, porque também não sou nenhum educador exemplar. E eu também quero essa sua lança aí pra analisar o DNA dela.
- O que? Cara, é melhor você não estar de sacanagem comigo?! Eu tenho contatos!
- Faço contato com a liga agora pra passar sua identificação. Eu recebi esses recursos e já não preciso deles. Só você trazer o moleque e explicar que ele tem que me obedecer senão ele vai se ver contigo. Eu mesmo lido com questões legais e adoção.
- Cara, você está falando sério mesmo? Vai adotar essa criança?
- Sim, é sério.
- Você é estranho, já te disseram isso? - disse ele enquanto se movia desconfortavelmente em sua cadeira
- Sim. É o que me faz eficiente. Mas então, temos um acordo?
- Olha, é melhor o meu hacker estar certo sobre você. Mato aquele moleque se isso der merda. Temos um acordo sim, mas vou ter que encontrar o Juan. O menino tem o hábito de se esconder em buracos e sumir por aí. Esperem na minha boate. Soube que tem dois indulgers por lá, libero seu brinquedinho pra entrar lá também. O nível á plasma azul e imagino que vocês nem vão sentir o tempo passar.

Olhei pra trás e vi que a Luíza já não demonstrava mais medo. Parecia surpresa, talvez um pouco confusa, mas o que realmente saltava aos olhos era a vontade. Ela queria ir naquele bar e eu tinha que esperar de qualquer maneira. Fiquei pensando sobre o que o hacker dele teria falado. Talvez ele tenha recebido informação falsa do Creed ou talvez só tenha tomado tempo pra interpretar as informações sobre minhas aparições públicas pra entender o que os jornalistas queriam dizer quando escreveram que “Para alguns danos causados pelo tempo, não há ciência que os desfaça”. As pessoas esperam que eu seja só mais um velho enlouquecido tomando decisões aleatórias como essa, como se eu já tivesse perdido toda a minha capacidade de planejar e executar planos de ação. Minha má reputação, imagino, foi o que me ajudou naquela situação.

- Entro em contato com vocês por lá. Hugo vai levar vocês até o bar e dar a entrada da menina – ele disse obviamente querendo tomar tempo pra considerar aquela situação
- Mark, na escuta? Mark?
- Senhor Constantino, na escuta. Como posso te ajudar?
- Quero código laranja/marrom 2050 pra esse homem. Está vendo os dados dele?
- Sim, estou vendo. Confirma que é 2050?
- Sim, mantenha o transporte em prontidão. Quando eu der a autorização, o código já pode ser executado.
- Comandos secretos e encriptados, é? - perguntou Miguel
- Estou certo de que você entende a necessidade disso. - respondi – quando concluirmos nosso acordo o seu transporte será enviado.
- É provável que só seja possível finalizar essa troca amanhã pela manhã, porque o moleque sai pra comer com os outros. Esse aí tem talento, mas quero ver como você vai por ele na linha.

O homem estendeu as mãos e nos cumprimentamos. Naquele momento eu me perguntei se não estava indo longe demais com aquilo tudo, mas eu fiz um plano e comecei, então decidi levar até o final. Pro momento, no entanto, restava aquele tal de plasma azul. Saímos da sala e Miguel estava a nossa espera. Sem pronunciar nenhuma palavra, ele nos levou até a entrada e autorizou a entrada de Luíza. Só nesse momento que eu me perguntei como eu posso entrar nesses locais se não tenho nenhum tipo de vínculo com eles.

- Luíza, você pode me explicar o que são esses “plasmas”?
- Ah, eles são redes de bares com acesso bem restrito. Na verdade são meio que mansões cheia de quartos, como o plasma verde que você viu, e cada um tem meio que uma especialidade. No começo, cada um deles tinha um nome próprio e eram conhecidos como bares de plasma porque era aquela época em que sangrar passou a ser seguro, então as pessoas começaram a se cortar durante o sexo. Daí um magnata anônimo aí comprou todos eles e deu nomes especiais que os antigos donos viam pessoas usando. As cores representam basicamente o nível do bar. E é muito caro pra você entrar sem ter conexões. Acho que é isso.
- Como assim nível do bar? Azul é melhor dor que o verde?
- Bares de nível mais alto tem melhores drogas, mais chances de você cruzar com indulgers e têm regras mais soltas, então você pode fazer coisas mais extremas de maneira discreta aí.
- Engraçado que eu nem sabia da existência desses bares e entro neles automaticamente.
- Ah, mas deve ser por causa dos seus óculos.
- Como?
- Eles são personalizados, o cara que fez deve ter colocado sua casta como identificação. Você era influente na liga como fundador, daí...
- Casta? Que porra é essa?
- Ah, é tipo um ranking de influência das pessoas. Os plasmas e outros lugares trabalham com castas pra não deixar qualquer um entrar. É uma droga, porque eu não uso a casta dos meus pais e tenho que pagar super caro pra poder entrar. Mas agora foi de graça! Quer uma bebida?
- Porque não? - respondi – quero uma caipirinha!
- Ha! Tu é velho mesmo, cara. Caipirinha? Bem, tem gosto pra tudo, né!

O lugar tocava uma espécie de música sertaneja eletrônica com vários sons que eu não conseguia reconhecer. Efeitos que eu nunca tinha ouvido. Luíza foi pra pista e começou a dançar, mas eu decidi seguir bebendo e, como não estava cancelando sensações ou filtrando alcool, logo fiquei bêbado.
As luzes brilhavam aparentemente no ritmo da música, minha pele estava dormente e comecei a dançar. Eu pulava, gritava e fazia movimentos aleatórios pelo local, mas volta e meia eu via Luíza, pra me certificar de que eu não tinha me perdido. Alguém colocou uma máscara na minha cara e pessoas vinham dançar comigo naquele canto onde eu me enfiei. Acharam graça nas minhas ações e provavelmente imaginavam que usei muito mais do que só alcool. Pelo que parece, jovem ou não, eu ainda era estranho. Mesmo em um ambiente estranho.
Minha visão ficou embaçada, mas ainda encontrei uma última vez com Luíza.

- Tino, Tino, caralho, encontrei um Indulger e ele me escolheu!
- ha! Vai levar ele pra cama, é?
- é claro!
- Vê se não arruma bebê, em? Bebê dá trabalho!
- Claro que não, eu nem tenho como ter filho, deixa de doideira! Cê tá muito chapado, cara!
- A natureza faz truques, minha cara. Faz truques!

Ela sumiu e não consegui mais encontrá-la por ali. Dancei um pouco mais, girei e caí no chão. Algum robô me levou pra um quarto e passei ali uma noite sem sonhos.

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