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Cortes e recortes por ângulos tortos (extra)

Emanuel Peçanha, 2040

Vi o vagão dela sumir nos velhos trilhos do metrô e sorri como um idiota. Um aluno de engenharia passou um dia inteiro estudando neurofarmacologia com sua namorada, abandonando seus próprios compromissos atrasados. Eu ria ainda mais quando pensava em mim mesmo na terceira pessoa: parecia um completo idiota. Mas quem se importa em ser idiota se isso significa ser feliz? Estudei algo divertido, passei um tempo com ela e ela voltaria pra mim depois da prova. Minha Liana, meu passarinho cantante voltaria. Tudo tinha que ser preparado como ela indicou. Duas garrafas de vinho, batata frita e mais algumas bobagens pra comermos. A maior parte das coisas eu já tinha preparado e a casa foi deixada com a temperatura correta. Os móveis também já estavam todos fora do lugar pra podermos ver nosso filme, como nosso vinho, nossa pipoca, nossas porcarias cardiopáticas. Liguei meu video-game e comecei a jogar qualquer coisa pra ver se o tempo passava. E realmente passou! Entre meus pulos e golpes errantes, passei uma hora e fiquei tão suado que um banho se mostrou inevitável. Logo que saí do chuveiro, alguém me ligou. Acionei meus óculos e atendi. Era jônatas.

- Cara, tá podendo falar?
- To aqui, pode falar, cara.
- Porra, perdeu a aula de ontem! Professor surtou porque alguém tava boçejando na aula dele. Po, filmaram e colocaram na internet e tudo!
- Porra, Jônatas, quantas vezes vou ter que te falar que agora se chama nuvem porque mudou a tecnolgia?
- Ah, sim sim! O professor estava falando disso. Eu posso chamar de internet ainda, sabe porque?
- Manda.
- Cara, pensa na palavra máquina. Sabia que ela veio do latim Machina, que usavam pra descrever aqueles trabucos tipo dos jogos de estratégia? Procura só no google aí.
- Tá, e daí?
- Po, e daí que chamamos uma impressora 3D de máquina. Mudou a tecnologia, mudou o paradigma, mas ainda usamos a mesma palavra. Não precisa ficar trocando toda hora, maluco. Nuvem não tem nada a ver, essa palavras.
- Cara, é um novo paradigma de computação e de rede. Deixa de ser animal.
- Tá, tá, não liguei pra falar disso não. Eu só tava tomando coragem.
- Pra quê?
- Po, cara, nem sei como te contar isso. Sabe a liana?
- Ta tudo bem com ela?!
- Ta sim, cara, tá tranquilo. É que eu to vendo ela agora aqui na minha frente, te juro. Já tem uns 10 minutos que ela tá se pegando com um cara aqui. Ela tá te traindo, cara. Na cara dura!
- Sabe quem ele é?
- Ah, é um cara da ADM aí. Vou te mandar a imagem ao vivo. Estão naquele beco do prédio de ciencias humanas.
- Não, porra! Eu acredito, não quero ver isso não. Para, sai...!
- Tudo bem, calma. Não precisa gritar também!
- Cara, eu vou desligar.
- Ela tá indo pro metrô. Tá indo praí? Cara, não vai fazer nenhuma bobagem!
- Tipo o que?
- Sei lá, porra, o guto acabou preso por brigar com a namorada na faculdade e empurrar ela. Não dá mole, só manda ela embora que ela é safada.
- Cala essa boca, Jônatas. Tu não sabe de nada e fica aí falando dela. Eu não sou dono dela não. Não sou eu que vou dizer quem ela pode ou não pode beijar!
- Porra, tu é o que, um corno manso. Maluco, várias pessoas viram isso, não foi só eu não!

Desliguei o telefone e deitei na cama, minha respiração acelerada. Eu estava com medo. Quem seria esse cara, que me recusei a ver? Será que ele era importante, será que ela queria terminar tudo comigo? Como poderia ser possível, se parecíamos tão bem ontem?
Naquele momento eu fui tomado por paranoia. Será que ela se incomodou com a garrafa de agua dela que sempre esqueço fora da geladeira e fica quente? Não, ela nem se incomodava tanto de beber água no copo! Ou será que ela não me falava de algum problema mais fundamental na relação e tudo estava acontecendo sem eu saber?

- Para com isso, merda! Não tem nada de errado, lembra dos textos! - gritei pra mim mesmo feito louco

O computador acionou e buscou minha frase no google. Me senti um retardado. Eu mesmo, o cara que tanto falava do poliamor, o único que sabia do caso do meu pai com aquela Mônica e o apoiava firmemente. Um cara que leu livros, que aceitou argumentos, agora estava tendo crise de insegurança e ciuminho? Ridículo, eu tinha que ser mais maduro que aquilo.
Sentei na cadeira e tomeu uma lata de energético. Minha perna direita tremia e minha cabeça coçava. Eu tinha que sair, tinha que andar. E foi o que fiz: saí de casa e andei até o shopping que ficava a uns dois quilômetros de casa, pra, de lá, ir pra estação onde encontraria com ela. De repente eu já estava todo suado novamente na estação, artificialmente calmo pela caminhada. Mas quando ela apareceu, tudo ficou natural.
Ela desceu do vagão e me viu logo de cara, com aquele sorriso acanhado que ela tem. Segundo ela, não passa de uma reação à cara de imbecil que eu faço toda vez que a vejo. Mas ela colocou os braços pra frente e veio correndo na minha direção com o sorriso. Quando abraçá-la, descobri que ela segurava a mochila no braço direito.

- Ta pensando o que, pode pegar a mochila! - ela disse
- Ué, mas pensei que ia ganhar um abraço!
- Tem abraço nenhum pra você não que tá muito abusado pro meu gosto.
- Vem cá agora, mulher. É agora!

Quando fechei o abraço ela deu um passo pra trás sorrindo, mas acabou me abraçando de volta. Era sempre o mesmo jogo, eu sempre soube que ela adora meu jeito exagerado de expressar meus sentimentos. As vezes parecia que ela resistia exatamente pra me ver fazer esses espetáculos em público. E isso porque ela se declarava tímida! Enquanto andávamos pra casa ela veio falando sobre como foi a prova, sobre o que soube responder e o que não soube, e senti aquele efeito único de estar com ela. Não importa que tipo de problemas passam pela minha cabeça. Seja crises existenciais adolescentes, problemas na família, qualquer coisa, ela chegava e tudo passava. Até mesmo a crise causada por ela era calada pela presença.
Tudo o que eu queria era cheirar aquele cabelo preto logo depois dela sair do banho, fazer batata frita e assistir alguma novelha mexicana velha do jeito que ela gostava. Ela sempre gostava quando eu imitava as caras e bocas que os personagens faziam. “não, carlos mariano, não!!!”. Também tinha aquelas cenas loucas de transição que, presumivelmente, aconteciam antes de intervalos comerciais, mas que já não tinha comerciais porque estávamos fazendo streaming da nuvem.

- Liana, preciso cheirar seu cabelo! - gritei com minha expressão facial congelada passando a sensação de que era uma questão de vida ou morte.
- Você tá estranho, Emanuel. O que você tem?
- Por acaso em algum momento você me viu sem estar estranho?
- Não, mas dessa vez você tá diferente. Não sei, tem alguma coisa aí.
- Tem falta de LP, é isso.
- AN?
- Falta de Liana passarinho, é isso.
- Deixa de ser doido, eu dormi aqui ontem já!
- Bem, nunca é demais, né?

Ela sorriu e virou o rosto do jeito que sempre faz. Aquilo já tinha virado um convite pra mim. Sempre que ela fazia, eu a abraçava e começava aquela brincadeira besta. Dessa vez não foi diferente.

- Sai, sai Emanuel que você tá muito abusado pro meu gosto!
- Abusado nada, to ensandecido. Voa pra ca, passarinha!
- Não, sai, sai! - ela falava em meio a risadas imponderáveis
- Ta bem, só um beijinho, só um!
- Você pede só um beijinho toda hora, pensa que sou besta?
- Vou ficar duas horas inteirinhas sem te agarrar, prometo!
- mentira, duvido!
- Dou a minha palavra!
- Não, mentira sua... Para... Ta bem, tá bem

De repente o cotovelo dela estava fora do caminho da minha boca em volta do meu pescoço. Foi um beijo que ela tentou fazer curto, mas eu insisti, como de costume. Ela deu um passo pra trás, rindo.

- Era só um!
- Não terminou ainda!
- Manu, eu quero batata frita. Eu to com fome.

As vezes parecia que ela fazia isso de propósito. Falava de alguma coisa que ela precisava exatamente porque sabia que aquilo ia me parar. Era uma urgência, afinal, que ela tivesse a batata frita! Na cozinha já estava tudo preparado e ela foi pegar a batata no congelador pra fritar. Por um instante a sensação de insegurança voltou e abri uma Ice que achei na geladeira. Imaginei que o energético estava provocando a ansiedade, então o álcool deveria diminuí-la pela depressão do sistema nervoso. Estudar pra prova dela serviu pra alguma coisa! Ou não...!

- Tá começando cedo, em? - ela comentou
- Never too soon to rock n roll, baby!
- Tá errada essa frase, não?
- Agora tá certa!

Dei um gole e ela começou a tirar batatas já fritas. Fui beliscando uma ou outra. Difícil acostumar com essas batatas pré-salgadas. Tudo parecia muito mais natural com batata frita industrializada sem tempero! Mas essa era deliciosa porque não ficava uma mais salgada do que a outra. Liana bateu na minha mão.

- Para com isso que assim a gente não vai ter pro filme. Faz a pipoca, faz?

Ela estava agindo tão naturalmente que aquilo me assustou. Quer dizer, se aquele caso extra-conjugal fosse verdade e fosse um problema pra relação, como ela podia estar se comportando daquela maneira? A sensação de que eu estava pra ser pego por um fim de relacionamento repentino me deixou apreensivo. Fiquei imaginando coisas pra fazer que evitariam aquilo tudo enquanto observava a pipoca ser feita.

- Porque você sempre faz isso? - ela perguntou?
- isso o que?
- fica olhando pro micro-ondas assim. Como se algo surpreendente fosse acontecer além do imediatamente previsível.
- Nem sei. Eu só fico viajando, eu acho.
- Vou colocar o filme lá na sala. Depois trás a pipoca. Essa é a light, né?
- É! Mas você sabe que isso é loucura porque estamos comendo batata frita, né?
- Pois é, eu já vou virar uma bola pela batata, imagina se ainda comer pipoca normal cheia de calorias?
- Ah, tem mais calorias no vinho do que na pipoca, Liana. Mais fácil parar de beber pra emagrecer.
- E você quer que eu pare de beber, por acaso?
- Não, jamais! Você fica legal demais bêbada!
- Então trás aí vinho pra mim e pra você também!
- Você me perguntou se eu quero?
- Anda logo que já tá pronto aqui pra gente ver o filme, manu!

Depois de certa dificuldade pra encontra o saca-rolhas, enchi nossos copos, guardei a garrafa na geladeira e vim pra sala com os copo.

- Cadê a pipoca, não tá pronta ainda?
- Ta sim, esqueci lá. Pode por o filme pra rodar que eu já vi, tá tudo bem.

O filme começou, naquele volume meio alto que ela gostava e eu sentei novamente na frente do micro-ondas. Os mesmos questionamentos passavam pela minha cabeça enquanto eu lentamente abria o saco de pipoca. O vapor saiu e veio no meu rosto, mas foi como se não fosse nada. Fechei os olhos e pus a pipoca no pote pra ela salgar sozinha. Eu podia ir com o pote salgando pra sala, mas acabei esperando o processo todo sentado ali na cozinha

- Manu, cadê a pipoca?! Vou acabar comendo a batata toda, vem logo!

Encontrei a garrafa de Ice aberta e terminei toda ela em um gole antes de voltar. Percebi que ainda estava de meia, tirei e pus no cesto: tudo que eu podia fazer pra evitar ir pra sala eu fazia. Mas acabei ficando sem mais nada pra fazer e cheguei lá. O filme era Mr. Nobody, um dos meus favoritos que ela nunca tinha visto. Sempre marcávamos de ver e acabávamos nunca vendo, mas hoje estava tudo combinado. Os olhos negros dela ficavam ainda mais fechados do que o normal enquanto ela prestava atenção na tela. Um golinho de cada vez ela ia bebendo o vinho.

- Ainda vou ter que aprender a beber no seu ritmo, viu?
- Ah, é que eu fico enjoada de beber rápido
- Eu sei, eu sei...

Ela colocou as pernas em cima de mim e ficamos vendo o filme. De tempos em tempos eu voltava pra cozinha e pegava mais vinho. Quando acabamos com a primeira garrafa o filme acabou. Eu estava fazendo massagem nos pés dela e com minha mente e outro lugar. Ela colocou a novela mexicana que ela estava assistindo e eu fui buscar mais vinho. Percebi meus sentidos alterados e a bagunça que deixamos na cozinha. Abri a garrafa e coloquei vinho nos copos, mas derrubei um pouco na pia. Como sempre, eu me mostrava fraco pra bebida. E ela, daquele tamaninho, muito mais resistente do que eu. Quando cheguei na sala, Luana me mandou mensagem pelo celular. Sentei com Liana e lembrei da conversa que tive com Jônatas. Eu tinha que escolher entre Liana e Luana, a única diferença era uma letra no nome de cada uma. Pelo menos segundo ele, eu tinha chances com as duas, mesmo que pra mim eu não tivesse chance com nenhuma. Mas a confluência caótica de eventos acabou me unindo a Liana, e eu não era o tipo de pessoa a ficar olhando atrás e tentando calcular se outra escolha teria sido melhor. Mas e se ela estivesse pensando isso?

- E aí, manolo, tudo beleza?
- Oi Luana, tudo bem sim. Só enlouquecendo um pouquinho e consumindo o etanol aqui
- hahahaah! Vai que é hoje que te conto todos os meus sonhos e esperanças?
- É hoje, luana! Vou achar a chave do seu coração!
- hahaha! Escuta você soube daquele curso de férias?
- O de biomateriais e filtração?
- É, esse mesmo!
- po, eu to trabalhando na equipe, Lu. Soube sim, tem que falar com a professora helena pra entrar!
- caraca você tá na equipe? Que foda, cara! Tão dizendo que vai dar pra cancelar com a disciplina de biomateriais do semestre que vem, é isso mesmo?
- Não sei, Lu. Conversa com a professora helena lá pra confirmar certinho
- Beleza. Mas e aí, como vai a vida?

Liana moveu a perna, indicando, como de costume, que queria a massagem. Mas ela queria outra coisa.

- Tá falando com quem?
- Com a Luana. Sabe, dos calouros lá?
- Ah, aquela anoréxica? Tá confessando bulimia pra você?
- Confessou que comeu um bolinho inteiro hoje. Ela é magra mas não é feia não!
- ah, e eu sou gorda balofa, né?
- Não, você tá no ponto certo. Prefiro mil vezes você!
- Você fala isso só porque tá comigo. Aposto que falaria a mesma coisa se fosse ela aqui.

Eu não podia acreditar no que estava acontecendo. Ela estava se beijando com outro naquele mesmo dia e agora estava tendo uma crise de ciúmes. Porra, ela mesma concordava com a coisa toda de poligamia, como podia estar com outro e ainda assim ter ciúme de uma conversa por mensagens telefone? Naquele ponto eu me senti no direito de expressar meus próprios sentimentos, mas sem revelar o que eu sabia.

- Mas e você, não tem suas dúvidas também?
- Ah, você sabe que eu sou maluquinha, né? Eu tenho sempre dúvidas.
- mas daí você sabe se quer mesmo estar comigo?
- Tá pergutando isso porque? - ela falou tirando os pés do meu colo
- Ah, porque eu sou bem mais ativo nas coisas. Tipo, sempre que a gente se beija pra valer sou eu que te beijei, você nunca veio me beijar por conta própria.
- Claro que fui, semana passada aqui no sofá!
- Eu tava te puxando e você esqueceu porque tava meio chapada
- Ah, mas não tem nada a ver...

Ela pareceu desconfortável e levantou. Pegou meu copo e foi pra cozinha encher de vinho. Eu sabia que ela estava fugindo, mas não quis ir atrás. Ela sempre fazia isso quando queria pensar sobre alguma coisa sem eu ficar olhando no rosto dela. Afinal, mesmo com ela negando isso, o rosto dela mostrava bastante do que ela tava sentindo, então, pelas nossas longas horas de conversa, dava pra saber mais ou menos o que ela estava pensando só de olhar pro seu rosto. Mas acabou que ela não se demorou. Encheu os copos, deu um gole no dela e depois terminou de enchê-lo, esvaziando a garrafa toda. Ela voltou no mesmo ritmo lento de sempre e sentou no sofá comigo.

- coloca pra mim o próximo capítulo da novela? - ela falou num tom de voz baixo

Mandei o comando pra tela e o episódio começou. A música tocando, cenas passando e ela bebendo o vinho dela em silêncio. Quando eu ia recomeçar o assunto ela falou.

- O que você tem com essa Luana, em?
- Ela é uma colega do meu curso. Eu saí com ela e o Jônatas uma vez.
- Mas vocês nunca ficaram, né?
- Não. Mas porque?
- Ah, não é nada. Não é certo eu ficar assim com ciúme, a gente fica sempre com essas conversas de poligamia, né?
- Certo e errado pra mim não são coisas tão bem definidas.
- É, mas daí a gente fica nessa coisa de pode isso, não pode aquilo e as pessoas acabam se machucando, sabe?
- Olha, pra mim o negócio é saber se você me ama, sabe? As vezes eu penso se não devia ter saído com a Luana.
- Porque você tá falando isso?
- Ah, sei lá, Liana. Você fica sempre fugindo dos meus abraços, dos meus beijos, dos meus carinhos. E quase nunca diz que me ama. Quer dizer, as vezes parece que você tá comigo, mas que queria estar com outra pessoa. Isso é mais que poligamia, sabe? É tipo: você quer estar com outro e não comigo, o que é diferente de querer os dois. Daí...
- Ah, manu, não fala assim. Você sabe que eu sou assim mesmo, que eu tenho dificuldade de expressar meus sentimentos. Mas não quer dizer que eu não me importe e que eu não queira. Eu sou doida, mas você sabe que se eu não quisesse estar aqui com você agora eu não estaria.

Ela deu um gole no copo. Parecia angustiada com a situação. Aquela mesma cara que ela faz quando se sente pressionada, com uma tentativa fracassada de sorriso defensivo. Mas eu não estava disposto a parar.

- Sim, mas você entende que isso me deixa inseguro as vezes? Sabe, você bem que podia fazer um esforço...

Ela estava bebendo o vinho num ritmo bem mais acelerado do que o normal. Um gole pequeno atrás do outro, ela chegou a beber mais rápido do que eu, que estava ocupado falando e pensando no que falar e já tinha esquecido que tinha um copo comigo. Dei um gole grande e ficamos em silêncio por um tempo. Então ela deu um último gole e largou o copo. Veio pra cima de mim, sentada no meu colo e me abraçou forte. Com aquele efeito mágico que só ela sabe ter, o abraço dela tirou todas as minhas preocupações e colocou meu coração pra queimar. Ela beijou meu pescoço e foi me dando vários beijos até chegar na minha boca. Suas mãos passavam pela minha cabeça e então desciam pelo pescoço e o ombro. Abracei o corpo dela inteiro, com um braço segurando sua cintura e o outro subindo até sua nuca. O piercing no nariz dela arranhava o meu e meu rosto estava coberto por seus cabelos negros. A novela ia passando na TV até que ela mesma colocou o pé na tela e a desligou. Quando a perna dela voltou pra cima de mim eu a levantei e carreguei pro quarto. Nos beijamos na cama por um tempo até eu me vi beijando todo o seu corpo. A textura daquela pele, o cheiro que ela emanava... algo ali simplesmente me hipnotizava. Quando fui tirar sua blusa, ela me interrompeu.

- Espera, espera, pega o jaleco. Vai... Por favor!

Ela adorava quando eu pegava um jaleco antigo meu e colocava os óculos e fazia um roleplay de médico. E eu adorava os sorrisos que ela dava, então não tinha como resistir. Vesti o jaleco, coloquei os óculos e sentei na cadeira.

- Então, você tem se alimentado bem e regularmente? Seus exames de sangue mostram excesso de gordura saturada e açúcar.
- É, doutor... É que eu não tenho levado uma vida muito saudável, sabe?
- Mas Liana, eu já não te expliquei como é importante se alimentar bem? Vamos, deixa eu te examinar.

E ela me olhou com aquela cara de criança que está prestes e fazer alguma travessura.

- Então eu preciso tirar a roupa pra o senhor me examinar e ver se está tudo bem?
- Sim, claro. Preciso ver se não tem nenhum problema na sua pele. As vezes são só detalhes que a gente tem que ver, entende?
- Ah sim, sim. Saúde em primeiro lugar, né?

Ela tirou a roupa e ficou apenas de calcinha.

- Já te falaram que ceroulas fazem mal pra saúde?
- hahaha! Para com isso vai estragar!
- Bem, certo, certo. Você por acaso já fez seu exame de mamas?
- Não fiz! É importante?
- Muito importante, deixa eu te mostrar!

Eu massageava os seios dela e os sorrisos se misturavam com suspiros. Nunca soube dizer porque ela gosta tanto disso, mas também nunca me importei. Minha experiência diz que muitas vezes saber qual é a graça de algo tira totalmente sua graça. Explicações só deixam a vida menos fantástica e surpreendente. Ela me puxou pra si e me deu um beijo profundo. Subiu em cima de mim e tirou meu jaleco. Foi tirando toda a minha roupa enquanto eu só atrapalhava o processo passando minhas mãos pelo corpo dela.

- Seu celular tocou. Não vai atender?
- Ah, deixa ele tocar.
- Pode ser um paciente!
- Já tenho todos os pacientes de que preciso aqui!

Virei-a pra mim e comecei a beijar seu pescoço, atrás da sua orelha, seu corpo. Meu beijos desciam pelos braços até a mão e então subiam de novo pra tomar outro caminho até chegarem no seu destino. Como sempre, ela resistiu em me deixar tirar sua calcinha.

- Não pode olhar, fecha o olho!

Mas tudo o que eu precisava mesmo era do meu tato. Com o tempo você vai aprendendo detalhes pequenos e eles se tornam automáticos. Já estávamos juntos há tempo suficiente pra eu saber como ela gostava. O segredo era fazer ela se sentir segura e ser paciente. Nada espetacular, nenhuma técnica mágica. O orgasmo dela era pelo coração. Eu, da minha parte, sentia a respiração dela, as contrações na perna, os gemidos roucos, o gosto, o cheiro. A minha vontade era de continuar ali pra sempre, dando prazer pra quem já tinha se tornado parte de mim. O prazer dela parecia retornar em dobro pra mim e cheguei ao ponto de gemer com o orgasmo dela. Com Liana eu tinha descoberto uma nova razão pra existir. Eu vivia pra vê-la feliz, pra amar. Tudo bem que eu sempre trocava de sentido de vida porque nunca nenhum me satisfez, mas vários meses já tinham se passado e eu ainda não tinha mudado de ideia!
Quando ela gozou, foi como sempre. Gemeu um pouco mais alto, prendeu minha cabeça entre suas pernas e deu aquele sorriso que eu sempre fazia questão de abrir os olhos pra ver. Depois disso fizemos amor exatamente da mesma forma que sempre fazíamos. Uma peculiaridade dela é que, por mais que o sexo fosse uma coisa bem parecida entre uma transa e outra, ainda assim era magnífico. O mesmo gemido, o mesmo arranhão na nuca, as mesmas posições. Até a duração era mais ou menos a mesma. Mas era sempre mágico, era sempre como se fosse a primeira e última vez.
Quando terminamos, ela foi pro banheiro e trancou a porta.

- Deixa eu entrar, Liana, abre a porta
- Ah não, espera sua vez.
- Abre aí, quero ir!
- Quem mandou morar num lugar só de um banheiro? Problema é seu!
- Eu estava dentro de você agorinha, qual é o problema de eu entrar no banheiro contigo?
- Todos! Não pode e ponto final!

E realmente tive que esperar. Pra mim era incompreensível que ela me mandasse fechar os olhos durante o sexo oral e me proibisse de entrar no banheiro com ela, mas que fizéssemos todo o resto. Mas eu já estava acostumado e só pedia pra irritá-la. Fui no banheiro depois dela, tomei meu banho e voltei pra cama. Ela já estava quase pegando no sono.

- Manu, não esquece que vamos na praia amanhã. Vai a família toda, você não pode dar furo, viu?
- Não, tudo bem, vamos sim. Já colocou o despertador?
- Coloquei pra 8 horas
- Caralho, não vamos pra praia não! Meu deus, pra que tão cedo?!
- Para de graça, vamos sim.

Em poucos segundos eu pude ouvir a respiração dela ficar mais lenta e intensa. Ela sempre dormia rápido depois do sexo. Virou pra mim e pude ver seu rosto. A coisa mais linda desse mundo era a tranquilidade dela. Sorri e tentei ficar acordado, mas acabei pegando no sono também.

- Manu, você tá roncando, vai resolver! - ela falou depois de me dar fortes chutes

Levantei no meio da madrugada, ainda meio bebado, e fui desobstruir as vias aéreas. Acrescentei uma substância dilatadora de vasos sanguíneos pra melhorar a eficiência e voltei pro quarto. Ela já estava dormindo e eu a segui rapidamente.

Sonhei que ela estava beijando um estranho na faculdade. Quando ia falar com ela, ela agia como se não me conhecesse e o estranho me apresentava pra ela. Eu não podia ver seu rosto, mas tentava explicar que ela era minha namorada. Só que e falava outra língua e eles não entendiam, então foram embora. De repente eu estava nu, mas mesmo assim ninguém conseguia me ver. E fui encolhendo, ou o mundo foi ficando gigante até que alguém pisou em mim e eu acordei.

- Manu, tudo bem? - Liana perguntou
- Ah, nossa, tive mó pesadelo!
- Depois me conta. Já são 8:30 e estamos atrasados
- Qual praia é mesmo?
- A de copacabana. Vamos, lava esse rosto e comemos alguma coisa por lá mesmo.

Fomos pra praia de metrô e encontramos minha família estrategicamente posicionada perto de um quiosque. Liana que tinha convencido todo mundo a se juntar ali e as pessoas pareciam estranhamente confortáveis com a situação. Por incrível que pareça, meus pais estavam de mãos dadas, Fred estava sem seguranças e Letícia estava de Biquini. Coloquei essa estudante de psicologia com a família e ela deu jeito de tirar todo mundo do marasmo. Uma coisa impressionante. Todo mundo cumprimentou todo mundo e eu rapidamente virei pra comprar algo pra comer.

- manu, trás pra mim um suco de laranja sem açúcar?
- Ta bem, li. Vai comer o que?
- Nada, já comi meio sanduíche em casa!
- meio sanduíche! Vou te enfiar comida goela abaixo!
- Aí vou ficar com bulimia igual àquelazinha!

As pessoas não entenderam o que estávamos falando direito. Minha mãe se limitou a falar que ela precisa se alimentar bem, mas que homem nenhum gosta de mulher gorda. Quando cheguei no quiosque, um homem estava me olhando diretamente. Estava com uma porra de um sobretudo de dia no verão no Rio de janeiro.

- Você, to falando com você!
- Ah, desculpe, eu não tinha ouvido. O que?
- Cadê ele?
- Ele quem, cara?
- Ele pensa que vai tirar tudo de mim? Quem ele pensa que é!?
- Cara, eu não sei do que você tá falando. - falei antes de virar pro balcão - Manda um suco de laranja, um energético e um salgado desse aí de queijo presunto.

Quando me voltei pra ele, percebi que ele estava com duas submetralhadores apontadas pro chão. O homem do balcão se escondeu e eu comecei a andar pra trás.

- Cara, relaxa, ninguém aqui quer o seu mal, a gente só veio curtir uma praia, mais nada!
- Ele vai pagar!

Quando ele apontou as armas eu percebi que Liana estava correndo na minha direção.

- Não porra, volta! Abaixa!

O homem começou a dispara contra todos que estavam por ali. Em plena luz do dia, pessoas corriam de um lado pro outro e eu estava agachado no chão. Alguém acertou sua cabeça pelas costas e ele caiu morto sobre mim. Quando tirei ele, vi que pessoas estavam aglomeradas em torno de alguém que tinha sido atingido.

- Nossa, de todos os tiros só uma pessoa foi atingida! - exclamou uma mulher

Meu estômago embrulhou. Fui até o lugar de olhos fechados e quando os abri, vi ela. Atingida por um tiro na cabeça em uma plena manhã de sábado.

- Pai! PAI!!! Me ajuda, puta que o pariu! - Eu gritava – conserta a cabeça dela, conserta, porra!

Mas meu pai estava em choque abraçando minha mãe e Letícia, que choravam copiosamente. Frederico estava caído no chão com os olhos arregalados. Levantei e o mundo começou a girar. Vomitei até esvaziar meu estômago, mas continuei sentindo as contrações no meu abdome.

- Não, porra! NÃO!!


Eu senti que ela já não tinha pulso e percebi que o meu também já não era tão forte. De súbito, a vida pareceu fugir também de mim...

7 - Encruzilhada - (parte 3 de 3)

Cochilei na sala e Creed me induziu a entrar em realidade virtual. Estávamos em algo como uma academia onde tudo parecia gigante.

- Constantino, que bom que funcionou e você está aqui. Estou mostrando as alterações dos trajes pra luíza, mas tenho alguns módulos novos pra instalar no seu endocomputador e uns códigos pra escrever pra preparar os trajes. Ensina aí pra ela da descarga positrônica e tudo.

De repente, estávamos vestindo os trajes em um ambiente que parecia o centro de São Paulo. Estava tudo destruído, e logo reconheci o cenário de treinamento de guerra.

- Os inimigos chegarão em cinco minutos – disse a voz robótica
- Ah, isso é treinamento em ondas. Sou boa nisso. Mas fala aí o que é essa descarga positrônica?
- Ah sim, é uma descarga desenvolvida por um jovem cientista da liga. Você nunca deve ter ouvido porque a guardamos meio que como uma arma secreta desde que os governos pelo mundo deixaram de comprar nossos trajes. Ela basicamente altera o comportamento das moléculas no processador central dos robôs e os desativa no processo.
- É tipo uma arma pra desligar os robôs inimigos? Porra, assim fica mole!
- Não os desativa, mas os mantém se debatendo pelo chão e sem praticamente nenhuma capacidade de processar informações. O efeito não é permanente e isso gasta muita energia. Por isso há ocasiões em que é melhor você enfrentar os robôs normalmente. Especialmente quando você não dispõe de uma base com alta carga elétrica liberada gratuitamente, que vai ser o nosso caso.
- Mas espera aí, e os robôs que estão dentro de você?
- Eles se fecham sobre um casco durante o efeito do pulso e ficam inoperantes.
- Então você não vai mais poder regenerar sua pele sozinho, certo? E os cicatrizadores?
- Nada baseado em nanotecnologia vai funcionar. Seja cérebros de robôs ou cicatrizadores de pele. Na verdade esses convencionais não estão preparados pra lidar com situações assim e podem te matar fechando veias e tudo mais. Não use em hipótese alguma nessa circunstância.
- Cara, usar isso parece arriscado demais. Não quero não.
- Bem, melhor saber que você tem esse recurso.
- Tá bem, mas não quero não.
- E você, conhece seus recursos, Constantino? - disse Creed pelo alto-falante
- Cara, você tá monitorando a gente de fora? Que indelicado! - Luiza disse
- Bem, conheço os recursos que uso normalmente. Pra falar a verdade eu não li todo o manual com as possibilidades desse corpo novo, porque é muito longo. Preferi testar mesmo.
- Bem, agora você precisa saber. Conectei os pulsos positrônicos ao seu sistema muscular auxiliar. No caso de você usá-lo sob forte dano no traje, seus músculos tomarão a forma de fibra de carbono contrátil.
- E porque?
- Bem, pra você poder se mover, né? - falou Luiza
- Mas isso vai detonar todos os meus tendões! - protestei
- Vai sim, mas você tem outros auxiliares pro caso do rompimento dos seus. Você vai ter que romper todos eles mais cedo ou mais tarde nessa situação.
- Ah, cara, que isso. São só criminosos, eles não vão ser capazes de ver a gente. Vai ser tudo tranquilo. Aliás, como você sabe tanto sobre meu corpo?
- Eu recebi a mesma reconstrução que você, esqueceu? Você mesmo me deu de presente.
- Bem... lembro sim. É que foi num período conturbado, você sabe. Muita coisa acontecendo, memória falhando...
- Você vai ter que deixar de ser uma criança impulsiva agora, Constantino. Não parece entender a gravidade do que está se propondo a fazer. Por isso vou te dar uma lição aqui.
- Você dando lição de moral? Como as coisas mudam!
- É mais uma lição de sobrevivência! - ele protestou
- Um código moral de sobrevivência! - retruquei
- Deixa ele falar, porra – gritou luíza
- Viu, a moça tem juízo. Desde a época da liga e com as nossas pesquisas, você nunca se deu conta das coisas que podia fazer. Aquela sua mulherzinha, a mônica, parecia saber mais do que você era capaz do que você mesmo e ela nem sabia nada da liga. Poderíamos ter feito modelos mais avançados e efetivamente ampliado a capacidade criativa daqueles macacos, mas você apareceu com aquela desculpa ética. Mas nós dois sabemos que a ética não é o lema da liga e que não levamos a ideia adiante porque você não achou que conseguiria os recursos. Mas eu monitorei as comunicações e criei um sistema de ranking pra liga só pra averiguar isso: você tinha mais influência do que precisava pra conseguir os macacos e tudo. Você só não sabia do seu verdadeiro poder.
- Não é tão simples assim, Creed. Tudo pra você parece que é racional. Eu tenho uma filha ecologista, sabia? Como você acha que ela se sentiria me vendo abrir cabeças de chimpanzés que foram tirados da reserva do departamento dela pra causar demência em vários deles até criar super macacos que já não seriam mais capazes de viver na selva? Estaríamos matando todos eles.
- Você fez isso com gente. Deixe de ser hipócrita. Esse não é o ponto.
- Será que você é incapaz de pesar as coisas que fala?
- Ok, vamos deixar o sentimentalismo pra lá. Tudo isso era pra provar o ponto de que o seu maior erro sempre foi achar que não podia fazer as coisas que podia. Você achava que não podia ser um bom pai, então desistiu. Achava que não podia ser um bom marido, então desistiu. Achava que não podia mais ser um pesquisador decente, então se reconstruiu e agora quer salvar criancinhas. Só que agora a coisa é séria, cara. Agora a sua vida está em jogo. Se você decidir que não é capaz de lutar e desistir, você vai morrer. Chegou o ponto em que você só tem duas opções: muda ou morre. A não ser, é claro, que você desista agora e se entregue ao nada que restou da sua vida.

Eu senti ódio. Esse filho de uma puta vem até a minha casa querendo me dar regras pra seguir e ainda vem me dizer que eu desisto de tudo!

- Desisto de tudo!? Quem fez a porra a neuro-interface funcionar? Quem curou a epilepsia? Eu não desisti da minha família, seu merda! Eu lutei pra fazer o sistema de reparo de neurônios ficar perfeito e trabalhei na neuro-interface pra ter minha segunda chance com eles. Pra vencer o tempo e seguir lutando porque eu não desisti!
- Não desistiu? Sua vida é uma sequência de desistências! Ficou anos trabalhando em tecnologia pra fugir de ter que encarar seus filhos e pedir perdão. Quando você sequer considerou fazer isso? Você só estava querendo ganhar mais tempo pra seguir sendo um covarde com o rabo entre as pernas. Mas hoje, meu caro, você precisa ser um homem. Você pode fazer isso?!

Lágrimas escorreram pelo meu rosto, mas eu não solucei. Aquele menino não era só um órfão precisando da minha ajuda. Ele não era só alguém que me lembra meu filho, um substituto. Ele era parte do meu renascimento. Creed estava certo. Eu estava tentando resgatar meus erros sem mudar minha atitude de maneira global. Naquele momento eu decidi viver. Mesmo que só pra falar com meus filhos e lhes pedir perdão por ser o que sou. Anos e anos eu lutei pra ganhar mais tempo de inércia e de covardia. Mas não mais!

- Se eu precisar, vou usar essa porra. Mas o plano é ser silencioso, certo?
- Sim, mas estou desconfiado da segurança deles. Até que é formidável, mas não está à altura do cara que comanda isso. Nem sei quem é, mas sei que ele tem muito mais recursos do que isso. A defesa pode estar oculta, então você precisa estar pronto. Precisa saber o que pode fazer e o que não pode, porque não é só a sua vida na linha cara. E essa menina não tem músculos de carbono contrátil!
- Eu não sou menina, porra. E sei me virar sozinha sem esse traje. Eu conheço essa cidade.
- Mesmo assim, você vai ter que se esconder e esperar ele vir te resgatar em caso de pulso positrônico, porque vai ficar desprotegida.
- Não vamos usar esse pulso, deixa de ser paranoico. Esses trajes são top de linha, a gente vai destruir esses filhos da puta.
- Bem, as chances disso acontecer são boas. Mas estejam avisados! Há avisos de emergência que preciso instalar no seu endocomputador diretamente na parte biológica, Constantino. Você precisa hibernar agora.
- Só avisos?
- Não, há também manobras evasivas de combate pra te proteger contra golpes que venham por trás. Só pra melhorar a segurança.
- Cara você vai hacker meus ouvidos pra fazer isso, não vai?
- Sim, naturalmente. É pro caso de você não ter câmeras.
- Isso é estranho pra caralho. Desde quando você faz isso com seres vivos?
- Tecnicamente não é um ser vivo. É seu endocomputador e você pode não realizar a manobra evasiva se se concentrar, além de desativá-la com comandos simples. Estou só de dando um recurso, não roubando seu livre arbítrio. Cara, como você pode ser hetero e fresco desse jeito? Parece uma florzinha!
- Ha! Olha quem fala, moça delicada! Fala de mim como se você também não tivesse um mundo de defeitos! Você fala de mim, mas também vive rodeados de muros, de ideais! Pelo menos eu tentei, porra! E você?!
- Você não sabe do que está falando. As coisas mudaram. Depois nós conversamos melhor. Vai lá e se liga na realidade virtual pra ativar a hibernação.

Não falei mais nada e deitei no leito, que foi me envolvendo como de costume. Ouvi algumas falas:

- Você não foi duro demais com ele?
- Não, ele precisa disso. Você não sabe, mas...

E entrei naquela escuridão do estado de hibernação. As pessoas normalmente dormem, porque é uma situação em que você perde total contato com seus sentidos. Pra algumas é até angustiante ficar acordado, mas eu já entrei nesse estado precisamente pra pensar. Em hibernação, você não perde suas faculdades mentais. É como se você vivesse desencarnado, sua existência reduzida a termos abstratos. A zona de hibernação é minha zona de conforto, onde tudo existe nos meus termos autistas. Fiquei pensando no que me motiva, no que eu realmente quero com essa loucura toda. Eu queria resgatar o menino pra me absolver pela minha ausência com relação aos meus filhos? Queria retomar a luta social da Luíza, combatendo o crime que ela sempre acusou? Ou será que eu queria apenas me livrar do mar de apatia robótica que minha vida se tornou? Talvez tudo? Eu poderia nunca encontrar redenção pelos meus erros e nunca recuperar o amor dos meus filhos, mas precisava ao menos de um legado bom pro mundo. A ideia de morrer sempre me angustiou justamente por isso. Porque inventei coisas e resolvi problemas, mas nunca lutei senão pelas minhas próprias ânsias. Mas aquele momento era diferente: ali eu queria fazer como a Luíza, algo genuinamente em prol de outras pessoas. Minha vida não poderia se realizar sem eu fazer alguma coisa genuinamente altruísta. Eu tinha um complexo de messias a ser realizado e poderia ser a última realização da minha vida. Pela primeira vez, eu soube que poderia morrer e senti que isso valeria a pena. Antes eu pensava em termos de risco, dessa vez eu nem pensei claramente. Eu só senti aquele ímpeto de justiça, totalmente novo pra mim. Meu próprio espírito renasceu depois daquela reconstrução e somente hibernando eu pude perceber. Não demorou muito até Creed me tirar da hibernação sem aviso.

- Constantino, já está na hora. As camadas do traje já foram dispostas na ordem pelo seu robô velho.
- Certo, certo – falei num to de voz mais baixo que o usual

Luiza estava se vestindo e parei pra olhar pra ela um pouco. Aqueles traços lindos no rosto dela não eram os mesmos da mãe dos meus filhos. Eles eram traços da alma se fazendo carne.

- Tá olhando o que? O que foi? - ela disse
- Nada, só estou apreciando.

Ela não gostou da minha resposta, aparentemente. Se virou de costas e, sem entender o que estava acontecendo, comecei a vestir o traje. Eram tantas camadas que até eu duvidava da capacidade daquele traje de dissipar calor, mas realmente o sistema de nanocompressão funcionava muito bem. Quanto maior o número de camadas eu vestia, mais motivado eu me sentia. Antes era meio claustrofóbico, mas eu já estava farto de orientar minhas decisões por fobias. Não, dessa vez eu era todo vontade e meus medos ficaram guardados em algum canto que eu desconhecia. Dessa vez era eu o guerreiro! Luíza terminou de vestir o traje bem antes de mim. Era bem eficiente nisso.

- Cara, anda logo com isso. Deixa de ser lerdo! - ela disse
- Não liga não, moça. Esse aí é assim com sapatos e exoesqueletos. Fica parando pra pensar na morte da bezerra e demora a vida inteira pra terminar. Pelo menos ele veste tudo direito, né? Sua última camada de compressão não está ajustada perfeitamente.
- Como assim, você não ouviu o click? Claro que está, eu conheco esse traje.
- Está errado. Refaça.
- Vai se foder, tá certo, eu não vou refazer nada!
- Está desprotegido e qualquer nano-robô pode desativar toda a sua refrigeração. Devo te lembrar que dentro desse traje você pode literalmente morrer de calor se ficar presa nele com os compressores invertidos?
- Cala essa boca, hacker. Desde quando você é especialista em exoesqueletos!?

Desliguei a recepção de áudio quando fechei a antepenúltima camada de capacete e Creed se conectou aos óculos do meu traje.

- Essa mulher parece incapaz de sequer verificar se há algo de errado na instalação do traje! Desde quando você começou a ter relações com pessoas tão irracionais assim? Cara, nem a sua ex-mulher era assim!
- Bem, ela não me parecia ser assim. Vivendo e aprendendo, né? Mas ela não tá nem examinando o problema?
- Bem, agora que eu tirei meu holograma ela está checando o negócio. Não sei porque o drama quando eu estava com imagem lá. Parece até que ela acha que não estou vendo o que ela faz!
- Bem capaz de ela pensar isso sim. Essa sala não tem cãmeras.
- Tem a sua, né? Bem, ela não está resolvendo nada. Vá você lá e conserte o erro dela porque a comemoração já vai começar.

Meu traje estava equipado e eu fui na direção de Luíza. Ela parecia desconfiada.

- O creed foi falar com você, não foi? Que cara metido, meu deus do céu. Insuportável! Não quero falar com ele na missão, Tino!
- Ele vai monitorar nossos inimigos, Luíza. Você não precisa ouvir todas as sugestões dele. Mas sério, esse cara é um gênio. Uma máquina de calcular!
- Vai se foder, Constantino. Eu sou muito mais avançado que calculadoras. Eu tenho uma na minha cabeça e é só um detalhe! - protestou Creed enquanto aparecia em holograma novamente.
- Você se acha o fodão, não é? - disse Luíza
- Minha jovem, eu sou o fodão. Na quinta vez que eu salvar a sua vida hoje você vai entender isso!
- Hahahahahahahahaha! Esse é o Creed que eu conheço!

Mas Luíza não esboçou sorriso. Só virou na minha direção e fez um gesto pra eu ver o erro dela e facilmente eu o encontrei. Ela não sabia do módulo extra de proteção e encaixou o traje sem por ele pra dentro completamente. Tudo o que precisava ser feito era abrir aquela parte do traje, colocar a proteção (que parecia um pedaço de pano) pra dentro e fechar novamente. E então estávamos prontos pro combate. O frio da minha barriga se propagou pelo meu corpo. Creed começou a revisar o plano de ataque com as ilustrações no projetor.

- Então, Constantino, quem é esse cara que você pôs em quarentena na liga?
- Creed, você precisa parar de invadir o sistema da liga. Um dia eles vão te pegar, cara. Eles têm muitos recursos e muitos hackers.
- Eu não invadi o sistema deles, po. Eu só estava vendo o que Você fazia. E sei que o que você indicou é pra prender ele lá. O que você tava pretendendo?
- Só queria desestabilizar a hirearquia pra atacar e liberar as crianças.
- Você nem pesquisou pra fazer isso, né? Desde quando você é impulsivo assim? Estragaram sua regulação emocional? Ou será que só consertaram e ela estava estragada antes?
- Não planejei. Mas com os recursos que tenho é possível resgatar e preservar a integridade das crianças contra uma facção como essa.
- Você não entende a dinâmica de poder desse mundo mais, cara. Nós retornamos ao feudalismo. Anônimos hoje em dia são donos de cidades como se fossem sua propriedade privada. Uma espécie de estado paralelo e privado. São donos dos postos de gasolina, fast food, puteiros, plasmas, boates, tudo o que dá bastante dinheiro. Ah, e são donos das empreiteiras e controlam todo o transporte coletivo, além de serem donos dos prefeitos, como já acontecia na sua época. O dono dessa cidade eu ainda não consegui identificar, mas ele é bem poderoso e é dono de pelo menos mais duas cidades no brasil. Ele pode ter ligações com a Liga, mas confesso que Não consegui quebrar os códigos dele. Tudo bem que não tive tempo, mas isso é pra dizer que esse cara tem recursos. Ele tem defesas do nível da Liga!
- Acha que é tecnologia contrabandeada?
- Possivelmente cedida, né? Qualquer pessoa poderosa hoje em dia entende a importância de ter bons negócios com esse grupinho de psicopatas do qual você fazia parte!
- Não são psicopatas! - disse Luíza
- Imagino que você leu os livros das editoras “não relacionadas com a liga” falando do bem que a liga faz, não? Esses psicopatas são a maior praga que já assolou esse planeta e não tem avanço tecnológico que compense a destruição que eles já causaram. - creed retrucou
- Você é um conspiracionista louco. Vamos logo pro plano. Constantino vai pro centro e eu pra zona oeste, certo? Nesses pontos serão os eventos e todos os membros importantes da facção estarão em uma dessas reuniões. Mas porque não fazem uma só?
- São culturas diferentes. Se não fosse pelo líder em comum, essas facções seriam separadas. Talvez aliadas, talvez neutras, mas nunca uma coisa só. Precisamos apenas colocar uma contra a outra e tirar o poder desse líder. Então eis o plano: Vou apagar a energia central da cidade e vocês entram com a invisibilidade ligada e matam esses caras que estão nos seus óculos. São só cinco e sei que podem matar mais, mas eles são líderes importantes. Depois de matá-los, vão voando na direção do território um do outro e deixem eles perseguirem. Lá no meio do caos eles vão começar a destruir uns aos outros. - explicou Creed
- Cara, sou só eu que to vendo que várias pessoas inocentes vão morrer com esse seu plano?
- Não. Mas é só você que não sabe a quantidade de pessoas que eles matam e escravizam.
- Escravizam?
- Sim, não sabia? Que santinha! Além disso, a maior parte do combate será feito no solo e não bastará pra derrubar essas cavernas de aço gigantes onde as pessoas moram hoje em dia. Quem morrer vai ser por estar na rua logo que a confusão começar. E quem anda na rua hoje em dia?
- Ai, não aguento mais essa cara! Vamo, Tino, vamos fazer as coisas acontecerem porque ele só sabe falar!

Ela andou como quem vai sair do laboratório pra ir pra sala. Não sei se pensava que iria simplesmente sair com um traje gigante apertada pela porta da frente, mas pareceu insatisfeita com o fato de que eu não a seguia.

- Anda logo, deixa de ser lerdo constantino.
- Não dá pra sair por aí. - respondi tentando segurar o riso
- É obvio que dá, olha o tamanho da sua porta! - ela retrucou
- Então você vai fazer o que, pegar o elevador e descer até o térreo? - comentou Creed
- Pela janela é que não vamos sair, né?
- Luíza, essa casa é no último andar. É só sairmos pelo topo do prédio. Já traçamos nossas rotas e vamos diretamente e invisíveis. - expliquei
- Teste, teste, estão me ouvindo? - disse creed com voz chiada
- O que você fez com o aúdio, cara. A qualidade está uma merda!
- Estou fazendo broadcast de sinal analógico. Qualquer sinal digital vai ficar inoperante, porque vou interferir na identificação de pacotes de dados. Vocês vão, basicamente, ouvir fragmentos de conversas de outras pessoas se não usarem esse método de comunicação. Com ele nos comunicaremos fluentemente e sem interferência a não ser que o canhão de pulso positrônico seja usado.
- E porque você vai fazer isso? - ela perguntou em tom cético – como eles vão chamar reforços um contra o outro se não podem se comunicar?
- Eles vão usar fogos de artifício. Se puderem se comunicar, vão falar diretamente com o líder, que vai saber do que se trata e colocar todos contra você. E não pensem que um homem como esse não tem acesso a marsídio. Ele vai massacrar vocês.
- Com esse seu pensamento negativo, nenhuma precaução nos salvará!

Depois de alguns instantes de silêncio, subimos pro telhado. A imagem da rota mais curta até meu destino surgiu projetada sobre meus olhos. As fotos dos meus alvos primários surgiu. Não eram todos líderes na hierarquia oficial, mas eram populares e suas mortes causariam pânico e ódio. Então tudo o que eu devia fazer era voar até o meio do caminho entre meu destino e o da Luíza e deixar a destruição acontecer. Luíza ativou a invisibilidade e desapareceu.

- Tudo pronto, podem ir! - anunciou Creed

Eu pude ouvir o abafado som de Luíza decolando e logo em seguida era eu no céu. Fiz várias simulações naquele traje, mas nunca realmente voei com ele pela cidade. Risível, de fato, mas é a verdade. Na minha história o que mais se encontra são previsões teóricas e projetos que construí e nunca vivi. Mas dessa vez era eu no céu, e eu gritava com um espírito juvenil que nunca tive.

- Porra, constantino, tá alto seu microfone, para de gritar – protestou luíza – parece criança!
- Por acaso não estou na minha segunda infância?

Eu rodopiei pelo céu e vi luzes de estrelas e da cidade se alternando até chegar perto do meu destino.

- Contantino, para de girar que tá dando interferência – protestou Luíza novamente
- Não gosta mais do meu apelido? Senti falta do carinho agora!
- Cala a boca, não era carinho, era só pela facilidade. Vamos acabar com esses filhos da puta!

Mergulhei na direção do que se mostrou ser um evento enorme com centenas de participantes. Meus alvos logo se formaram na tela e pousei em uma rampa de mergulho da piscina onde eles nadavam. Apesar de toda a luz, ninguém podia me ver.

- Creed, você vai afetar a eletricidade aqui? Acho que não precisa – pontuei
- Pessoas se assustam mais facilmente quando no escuro. Não há tecnologia de visão noturna que resolva isso. Vivemos num mundo em que praticamente não há mais noite, tamanha a iluminação. Já não há mais estrelas no céu e a civilização aprendeu a ter medo da escuridão. Já vi muitos casos de pânico por ausência de eletricidade, já que faz uns 30 anos que quase nunca ficamos sem luz. Sem essa segurança fundamental, nada restará senão instinto.
- Você tem mesmo evidência disso? - perguntei
- Tenho. Só não mostro porque seu sinal é analógico e o acesso às nuvens já é bastante restrito. Outra hora, quem sabe!

No momento em que me preparei pra atacar, vi uma cena estarrecedora. Robôs montaram uma espécie de ringue no meio de um campo de futebol e jogaram uma mulher dentro dele com uma lança que parecia ser se titânio nanoafiado. A mulher estava sem camisa, com os peitos balançando e certamente não queria estar ali. Seu cabelo desgrenhado, seu olho inchado e toda a lama que cobria seu corpo davam sinal dos maltratos que ela recebeu. Destruiu um dos robôs que a arrastava pra lá assim que ele lhe deu a lança e gritava com uma mistura de medo de ódio contra seus captores. Um homem que aparentava ser recém-reconstruído começou a falar:

- Eis aí a nossa mais nova sininho! Eis aí nossa revolucionária que jurou lutar contra nossa organização! Hoje a noite ela vai lutar! E vai lutar até a morte, como andou jurando nas realidades virtuais! Release the fucking Hounds!

Um robô veio trazendo uma criatura que só posso descrever como abominável presa por uma coleira. Parecia um felino, mas tinha mandíbulas como a de um cão e dentes afiados enormes. Tinha o tamanho de um cão de grande porte e sua espinha se prolongava pra fora formando espinhos nas vertebras. Os olhos da criatura pareciam emitir luz, como se fosse um recurso intimidador. Lembrei que tinha comigo a lança de veneno de Miguel. Só mais um dos artefatos funestos que estavam sendo criados pra consumir e destruir o futuro brilhante que eu tanto sonhei.
A besta era atraída pelo robô por uma espécie de isca retangular como barra de chocolate. Logo na entrada do ringue o animal ficou impaciente e arrancou a mão do robô junto com seu prêmio. Era um robô com membros de aço, então senti pena da mulher. Quem lutaria pelos fracos? Quem daria voz ao grito de guerra dos mudos sociais?
O homem que anunciou o massacre se chamava bira era um dos meus alvos, mas naquele ponto eu só me preocupava com a mulher. Quando a criatura pulou na direção dela, eu mesmo tentei pular da pista de mergulho, que cedeu ao peso do meu traje e quebrou, me forçando a voar desajeitado. Logo chamei a atenção dos inimigos...

- Constantino, já matei meus alvos e to indo praí. Como você tá? - Luíza falou

As luzes se apagaram e vi apenas com a visão noturna que a mulher matou a fera com a lança. Um único golpe: ela caída no chão com a lança apontada pra cima e a criatura pulou pra própria morte como se não tivesse nenhum instinto de sobrevivência. A lança atravessou o peito do animal, que seguiu tentando esfolar o rosto dela com mordidas enquanto sangrava até a morte.
Alguém jogou muitas iscas na direção do ringue e soltou os cães, que foram na direção dele. Ela estaria condenada se eu continuasse sem agir.

- porra, constantino, responde! Você tá vivo? - Luíza perguntou preocupada
- To aqui, to vivo. Vem pro meu destino, vem pra cá
- cara tem uns bichos estranhos me seguindo. Não sei até quando consigo desviar deles, resolve seu lado aí logo que vai dar merda!

Eu desci até o ringue e peguei a mulher, revelando minha posição. Começaram a atirar em mim, e tive que voar numa posição pouco eficiente abraçando a mulher e não usando os propulsores do meu braço. Embora os tiros não tenham causado danos ao casco, eliminaram a invisibilidade nos pontos atingidos, funcionalmente tirando minha invisibilidade.

- Quem é você? - perguntou a mulher
- Sou só um louco. Não se preocupa com isso. Eu vou pegar eles.
- Meu nome é Leigh Anne, me procura! - disse ela bem antes de eu decolar, deixando ela no topo de um pequeno prédio.

Quando cheguei de volta no lugar, robôs já estavam armados e voando enquanto meus alvos já não podiam ser rastreados digitalmente apenas as fotos deles permaneceram na minha tela e eu tinha que encontrá-los. Uma sirene começou a tocar e o combate começou bem diferente do planejado.
Quando pousei, um robô saltou na minha direção e tentou acertar diretamente o meu braço direito com um martelo pequeno. Quando me esquivei e esmaguei o tórax dele, eliminando seu processador central, descobri que era um martelo de marsídio. Creed estava certo: aquela gente trabalhava com tecnologia da liga. Pena pra eles que não era a última tecnologia da liga, porque os robôs não podiam me enfrentar. Um atrás do outro me atacavam e eu me esquivava sem muito esforço e os destruía. Ora com tiros, ora com o próprio martelo que tomei do primeiro. Levou um tempo pra eu perceber que estavam apenas me atrasando. Quando acabaram os robôs, as feras me atacaram, também focadas no meu braço direito e foram bem mais rápidas que os robôs. E não me atacam uma de cada vez, mas vinham em conjunto. Eu dava saltos mortais em esquiva enquanto quebrava os ossos delas com o martelo e com os próprios punhos. No ímpeto de usar a arma do inimigo contra ele mesmo eu esqueci que a minha própria estava ali por um tempo. Mas um deles removeu o martelo de mim e ativei os punhos.
Tomado por uma espécie de frenezi, comecei a chacinar os animais e usar os cadáveres deles pra atingir outros. Nada os intimidava e, mesmo quando apenas um restou, ele seguiu atacando meu braço direito, que teve o encaixe do casco de marsídio levemente danificado.
Como minha invisibilidade mal funcionava, desativei-a por completo e corri na direção do abrigo dos bêbados que pensaram que me venceriam tão facilmente. Bira estava logo na entrada e correu quando me viu.

- Pega ele, porra! Chama o governador, caralho, chama a cavalaria!

O homem entrou em uma sala que resistiu aos meus tiros, possivelmente envolvida em grossas camadas de aço, mas os demais estavam vulneráveis. Acertei todos os outros alvos. Quando eu me voltei pra erradicar o resto deles, fui atacado pelo que inicialmente pensei serem robôs, mas logo percebi que se tratava de humanos em trajes. E eram formidáveis, dignos da década de 60. Um modelo concorrente do nosso que se provou mais durável e comercialmente viável. Aqueles trajes eram a última prova de que há ciência e tecnologia fora da liga, que alguém de fora pode superar os maiores inventores do mundo. Mesmo ultrapassados, em conjunto eles se provaram difíceis de enfrentar. Destruí um deles com um soco certeiro no peito, confirmando que não tinham casco de marsídio e eles seguiram atirando no meu braço direito até que o casco ficou frouxo. Quando pensei Em voar na direção da luíza ela chegou, seguida por uma horda de robôs e abominações genéticas voando e saltando.
Os primeiros a atacar foram os monstros, que vieram diretamente na minha direção e na dos meus oponentes. Estávamos em combate quase equilibrado, com praticamente nenhum golpe sendo acertado e tiros se provando inúteis até que aquele clube se transformou num campo de guerra. Mais e mais trajes saíram e um maior saiu de onde Bira entrou. Ele entrou não pra se esconder, mas pra se vestir pra batalha.

- Tino, sai daí, vem...

A comunicação com Luíza sofreu interferência e eu só pude ouvir chiado. Imaginei que ela queria que eu ficasse mais próximo dela, que já tinha perdido a invisibilidade. Juntos, lutamos em meio ao caos e a escuridão onde todos pareciam ser inimigos de todos. Meu braço direito seguiu sofrendo danos.

- Querem tirar meu casco, filho da puta! Então toma!

Comecei a acertá-los com o punho direito e pareciam mal tentar de esquivar. Meu dano aumentava, mas os corpos deles se acumulavam. Foi aí que bira chegou e pisou na minha cabeça. Se antes eu estava sob controle vencendo meus inimigos, naquele momento o mundo inteiro girava enquanto ele atacava Luíza. Um golpe atrás do outro ele a acertava enquanto ela revidava à altura, mas parecia não causar dano nele. Quando me ergui, a vi ser lançada na piscina e o segurei pelo pescoço antes que ele fosse atrás dela. Sem dificuldade ele me lançou pra frente e não cai na piscina porque meu endocomputador ativou o voo automaticamente. Ela não tinha esse recurso...

- Quem é você? Pra quem você trabalha?! – o alto-falante de bira bradou

Mas eu só gritei a voei na direção dele, que foi tirado da minha frente pelo ataque de uma das feras voadoras que devia ter uns dois metros de altura. Persegui os dois até ouvir o alto-falante de luíza

- Tino! - ela gritou em tom agudo

Dois dos monstros voadores a seguravam e golpeavam seu tórax violentamente. Deixei bira com seus problemas e fui na direção dela. Quando tirei um dos monstros dela, o outro a soltou e me atacou, apenas pra ser metralhado por ela mesma, agora de braços livres. Esmaguei a cabeça do outro contra o chão e nem vi o chão apontado na minha direção. Uma bala de titânio do tamanho dos cães me atingiu de cima pra baixo, me lançando longe e desorientado no ar. Tive tempo de ver bira com a arma em mãos.

- Agora assiste seu amigo morrer, seu filho da puta! - ele gritou

Mas logo um robô enorme o atacou e eu o perdi de vista enquanto o mundo girava em volta de mim. Caí num prédio comercial e destruí dois andares no impacto. Mal tive tempo de entender o que estava acontecendo quando ouvi Luíza

- Tino! - Luíza gritou, mas não por si mesma.

Com meu casco do braço direito frouxo eu já não contava com a mão direita pra me apoiar. Meu ouvido zumbia e meu corpo já estava mole. Perdi a flexibilidade do tórax quase por completo, mas ainda podia voar, então voltei pra luta. Quando cheguei lá, Luíza estava lutando com bira, mas dessa vez vencendo. Com cada golpe que ela acertava em sua cabeça ele parecia mais desorientado e a confusão já era tão grande que monstros se atacavam mutuamente enquanto reforços desorientados chegavam de todos os lados. Já tínhamos criado a nossa bagunça e era hora de ir embora, mas bira se segurou firmemente à Luíza, impedindo-a de sair do lugar e resistindo a todos o ataque dela. Quando me aproximei pra salvá-la que ele detonou o próprio traje, lançando nós dois longe e matando tudo além de nós dois num raio de 30 metros. Robôs e monstros despedaçados choviam no céu e finalmente todos os meus alvos estavam mortos, mas meu traje estava inoperante. Nossos inimigos de traje, no entanto, não foram totalmente danificados e se recompunham pra nos destruir.

- O pulso! - ela gritou

Mas antes que eu pudesse alcançar o meu, ela ativou o dela e todas as luzes se apagaram. Os trajes caíram no chão como robôs sem bateria e fiquei preso no meu. Rapidamente a pele do meu corpo começou a coçar como se eu tivesse urgência pra sair daquele casco claustrofóbico. Eu sabia o que devia fazer e o tempo era curto. Vi que algumas feras sobreviveram e o pulso positrônico não afeta seres vivos, seja pelo motivo que for. Os monstros nos matariam se eu não ativasse a musculatura auxiliar. A ideia de romper todos os tendões do meu corpo, no entanto, não me parecia nem um pouco agradável. Fogo e fumaça estavam por todo lado e todos pareciam mortos, mas alguém soltou fogos que não paravam de subir. Aquilo traria reforços e precisávamos fugir.
A pior dor de todas, eu percebi, é aquela que precisamos sentir pra ganharmos força quando estamos fracos. Naquele caso não foi diferente: No começo, rompi apenas tendões e ligamentos dos braços de ombros sob uma dor excruciante que pode ser minimamente comparada com a sensação se ter um membro arrancado. Tentei eliminar minha dor, mas meu endocomputador me passou uma mensagem automática

“Devido ao pulso positrônico, todos os recursos nano robóticos já não funcionam”

Nenhum artifício poderia me livrar daquela dor. Ela tinha que ser sentida se eu tinha alguma esperança de me salvar e de salvar Luíza. Minha vida passou pelos meus olhos quando um dos monstros voadores mordeu meu capacete e começou a me sacudir de um lado pro outro. Um beijo na montanha, um beijo na ponte, um beijo no terraço. Parecia que toda a minha linha do tempo se orientava por beijos memoráveis. Perigo pra todo o lado e eu pensando em beijos

- Tino!!! - Luíza gritou enquanto dois dos monstros tentavam erguê-la no ar pra sequestrá-la.

Reagi rápido e esmaguei a cabeça do monstro que me atacava entre meus braços. A força que resultou de toda aquela dor era formidável. Apesar de que ela era enorme e não passava, comecei a romper ligamentos e tendões até meu corpo ser todo meu novamente. Em alguns segundos eu estava de pé e correndo na direção dela. Eles decolaram, mas pulei e puxei os dois pra baixo. Com murros usando as duas mãos eu esmaguei o crânio dos dois e danifiquei ainda mais meu braço direito, que já não tinha mais o casco de marsídio.

- Vem, vamos embora – falei com luíza
- Tino, tira meu capacete. Tá abafado

Enquanto eu removia todo o casco dela pra faz possível uma fuga rápida, começou a tocar uma música. Era Dies Irae, de jenkins! Mas que aparelho de som funcionaria naquelas circunstâncias? Como aquilo era possível? A cantoria prometia a ira de Deus e eu não queria ficar ali pra descobrir do que se tratava. Coloquei luíza no ombro direito e comecei a correr na direção do ponto de partida, mas logo que saí pela rua me deparei com a fonte dos ruídos.
Uma daquelas bestas que atacava Leigh Anne quando cheguei, mas dez vezes maior. Sua boca estava aberta e dela saia a música. Como se suas cordas vocais tivessem sido geneticamente programadas pra reproduzir música. Um feito já imaginado no passado, mas que exigiria recursos consideráveis e não valia a pena. Naquela noite a música anunciou a chegada de um homem que se considerava divindade, montado sobre a fera sob um traje parecido com o meu, mas menor. Parecia pequeno com seus aproximados dois metros e trinta pros padrões dos trajes de guerra, mas logo entendi o propósito do seu tamanho: ele não tinha aparato robótico. Se tratava de um traje otimizado pro uso com musculatura de carbono contrátil, não passava de uma armadura sem tecnologia.
Deixei Luíza desacordada num beco e corri na direção dele, que avançou com sua montaria. Quando saltei pra derrubá-lo, a criatura saltou pro lado e vi apenas seu martelo gigante acertar meu torax e lançar longe o que restava do meu casco enquanto eu girava em pleno ar. Tentei disparar minha arma, mas percebi que a única que tinha munição tinha sido danificada e já não podia disparar. A fera me tomou na sua boca, interrompendo a música, e me sacudiu de um lado pro outro. Quando ela me lançou contra a parede, mesmo tonto, consegui me recompor em pleno ar e cair de pé no chão.

- Porra, diz que essa monstruosidade usa oxigênio carregado em ferro! - falei comigo mesmo

Se a criatura tivesse sangue como o meu, a lança de Miguel poderia matá-la mesmo que tivesse nanotecnologia instalada. Era minha única chance. Limpei a poeira do meu traje e comecei a removê-lo, camada por camada, até pouco sobrar no meu tórax e eu poder empunhar a lança escondida abaixo das camadas. Andei lentamente até o meio da rua e abri os braços fitando a armadura e sua montaria.

- Tino, não! Sai daqui, vai embora, se salva! - Luíza gritava repetidamente, desperta pela confusão

Mas eu não me movi e a fera começou a correr na minha direção. Logo peguei a lança e comecei a disparar todo o cianureto que ela continha e que podia sintetizar. Suficiente pra matar um elefante, pelos meus cálculos, mas apenas enfraqueceu a fera e tirou um pouco de seu equilíbrio. Logo a lança começou a exigir tempo pra ressintetizar seu cianeto. Como o montador da fera não parecia entender o que aconteceu, seguiu vindo na minha direção sem recuperar o equilíbrio e então eu fui contra ele. Loucura, porque uma mordida da fera me mataria, mas eu não tinha escolha. Quando eu saltei com o objetivo de derrubar o montador, a fera tentou me abocanhar, mas estava lenta e falhou, deixando seu mestre vulnerável. Meu chute o acertou em cheio e eu mesmo caí sobre a fera, que começou a tentar me sacudir pra longe. Segurei os ossos que saiam por sua espinha e puxei dois deles, produzindo um grito tão alto que Luíza se contorceu no chão. Removi duas vértebras da fera, que perdeu os movimentos das patas traseiras, e aproveitei a oportunidade pra enfiar as mesmas vértebras na cabeça dela.
Mal pude olhar em volta e já tinha sido derrubado no chão. O inimigo enfiou uma lança possivelmente de titânio no meu braço direito, me prendando ao chão. Meu grito foi tão forte que parecia remover todo o ar dos meus pulmões. Eu respondi com um soco na cara, que foi logo devolvido por ele diversas vezes até remover meu casco da cabeça. A partir daí ele seguiu removendo camada após camada do meu capacete até que meu rosto ficou completamente nu e ele congelou como se fosse um robô desligado. Por uns 15 segundos ele ficou ali parado e então começou a tirar as casmadas do próprio capacete. Quem seria ele?
Num piscar de olhos, Luíza o acertou com um daqueles martelos pequenos e ele desmaiou. Mais ruído de música podia ser ouvido e eu removi a lança do meu braço, que sangrava bastante.

- Vamos cuidar desse braço em casa, vem, vambora!


E ela me ajudou a andar pelos becos até chegarmos num ponto relativamente distante e começarmos a tirar o traje. Em pouco tempo, já eramos pessoas normais com hematomas pelo corpo sendo cobertos por nossas roupas. Fomos pra casa juntos, mas eu não tive a sensação de dever cumprido. Vendo todas aquelas monstruosidades, entendi que o problema era muito maior do que uma facção explorando a venda de drogas e o trabalho infantil. Tudo na sociedade parecia se corromper e a própria ciência parecia se tornar fascista. Demoramos pra chegar e quando deitei na cama o efeito do pulso positrônico já tinha passado. Meu braço foi curado e meu sangue substituído. Wallie se ligou automaticamente e começou a dançar soba melodia de Sgt major, do Jet. “wake up major...” E Luíza me deu um beijo que pareceu durar uma eternidade. A música seguia se repetindo, meu corpo seguia amolecendo. Mais um beijo pra marcar minha jornada...