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Scream, sidney, scream!

Flyn Pinkman – 2070

Eu acordei com a raiva ancestral. Uma coisa que foi passada por muitas gerações na família e até eu, o cético, aprendi a aceitar sua validade. Assim que me desvinculei dos indulgers, também me desvinculei do mundo e naquele ponto somente tinha minha ciência e o apoio do meu pai nas pesquisas. Mas eu queria trazer à tona a raiva ancestral. Ora, já que o nome referia à ancestralidade e que nossa espécie é a mais raivosa e destrutiva que já existiu nesse planeta, decidi procurar na nuvem por algum registro de ato violento cometido pelos antepassados. De certo encontrei muitos registros detalhados, mas eu queria alguma coisa minimamente tragicômica!
Foi nesse ímpeto que acabei entrando em contato com filmes do século passado e dei de cara com um trabalho que eu tive muita dificuldade pra caracterizar. Em alguns momentos o longa metragem dava a impressão de que queria assustar garotinhas de 10 anos de idade, em outros ele parecia querer evocar algo como comédia. Você tenta avaliar o trabalho de outra época imparcialmente e considerando coisas como o contexto histórico, mas não dá. Eu assisti o filme rindo do começo ao fim. Não sei se era um filme pra adolescentes retardados, se as pessoas naquela época eram retardadas ou se era pra ser um filme de comédia.

- Flynn, ta ocupado? – perguntou Emanuel pela linha de emergência
- Porra, Emanuel, ta usando essa linha indulger comigo? – perguntei impaciente
- Essa linha é minha.
- Tá, tudo bem, o que você quer.
- Decidi entrar pro treinamento. Vou vestir a porra do traje
- Você sabe que essa porra arrancou meus dois braços, não sabe?
- Bem, os braços novos que você recebeu funcionam bem. Isso não será problema.
- Tem certeza que vai suportar a dor?
- É o que vamos descobrir!
- E você quer satisfazer a quem com essa porra? Meu pai?
- Eu quero satisfazer algo imaterial. Alguma coisa essencial que existe dentro de todos, inclusive de mim. I wanna indulge mankind’s hatred, man.
- Ah! Leu meus diários de adolescência, é? Você é um pervertido!
- Não somos todos?
- Exato! Bom treinamento, Emanuel. Faça aqueles moleques sofrerem e abrace a dor!

Emanuel se desconectou e eu não podia ficar pra trás. Abri os comentários do filme e achei apenas um.
“Um absurdo a maneira como o cinema distorcia a cultura e os seres humanos. Isso jamais aconteceria no mundo real!”
Aquele comentário me transtornou e inspirou ao mesmo tempo. Durante toda a minha vida eu ouvi que sou um absurdo distorcido pelas minhas costas e só não fui perseguido e agredido por causa do poder da minha família. Mas não há poder que te faça ser “equilibrado”. Muito pelo contrário, quanto mais poder você tem, mais liberdade tem pra ser extremo. O que esse cara falou do filme já foi dito sobre mim tantas vezes que se tornou imperativo provar o contrário.

- Computador, encontre e imprima essa fantasia pra mim em fábrica de algodão do século 20. Quero 15 cópia.

O computador rapidamente encontrou várias versões, mostrando como essa fantasia invadiu o século 21 em celebrações de fantasia. Mesmo alguns anos depois desse filme se produzido, foi satirizado por outros filmes e pela própria cultura popular. A cultura popular estava prestes a pagar. Sentiriam a raiva ancestral e veriam Sidney gritar. Eu e esse filme jamais seríamos comédia!
Tudo o que eu precisava fazer era me tornar Danny rolling vestido de Ghostface em alguma cidadezinha americana e então começar a matar adolescentes. Coisa corriqueira! Nada impossível pra um expert em computação bilionário e ocioso! Tudo o que eu precisaria é desativar o monitoramento, os robôs e, quem sabe, a própria energia elétrica!
O segredo de assustar pessoas, segundo meu tio Benjamin, reside precisamente em lhes apresentar inconstância, imprevisibilidade. Chegamos à segunda metade do século 21 e realizamos o sonho positivista. Ordem, progresso e muita putaria! Mas alguém precisava parar essa porra. Alguém precisava relembrar a humanidade de um pequeno fato: ninguém controla nada e os deuses ainda brincam com o nosso destino!

- computador, facas inoculadoras. Projeto 36, gutting knife versão 2.7 com titânio e fio artesanal.
- Sim, senhor flyn. Devo acrescentar à fila ou adiantar?
- Quantos trajes já foram feitos?
- Sete, senhor
- Então faça agora as facas.
- Sim, senhor.

Aquela impressora 3D já era velha, mas dava conta do recado muito melhor do que as outras disponíveis. Uma verdadeira beleza ver aqueles braços robóticos trabalharem de forma aparentemente aleatória e de repente apresentarem o trabalho exigido. Cheguei ao ponto em que parei de comprar coisas pra minha casa e passei a simplesmente imprimir tudo. Somente pela diversão de dizer que eu mesmo fiz tudo o que tenho. Eu até quis imprimir outra impressora, mas seria insuportável ter que montar tudo e não há robôs que saibam fazer isso por conta própria, então, desisti.

- Flyn, está disponível? – disse martha
- Puta que o pariu, to popular hoje, em? O que você quer, Stewart?
- Estou procurando Emanuel. É urgente, cara. Você sabe onde ele se meteu?
- Por acaso alguém sabe por onde Emanuel se mete. Talvez ele esteja nadando na porra do ártico!
- Ele disse da última vez que o vi que te ligaria. Ele te ligou?
- Ligou sim, Martha.
- Ele não disse pra onde ia?
- Não disse pra eu dizer onde ele estava indo. Sabe como é, né?
- Não, Flyn, isso é sério. Cadê o Emanuel?
- Garotinha, eu to ocupado. Se você ama tanto seu indulger, porque ele não te disse onde está? Pra alguém que tem assuntos com ele você me parece bem mal informada, não?
- Vai se foder, cara. Você nunca foi um indulger.
- Bem, eu também nunca fui uma putinha transando com mendigos, fui? Cada um com seus problemas, Rita!
- Ele... te contou isso?
- Quem, meu hacker? Ah, Emanuel sabe disso!? Que genial!
- Você é um merda, Flyn.
- Bem, nesse caso você bem que poderia enfrentar seus demônios e vir aqui chupar meu pau, loirinha. Seu pai ficaria tão orgulhoso!
- Deixa meu pai fora disso! Cadê o Emanuel?
- Ah, eu me esqueci de mencionar. Eu removi o cérebro do seu pai com uma colher nanoafiada e dei pro cachorro dele comer. Foi cômico seduzir o cachorro que estava com raiva de mim usando o cérebro do dono como suborno!
- Cara, um dia eu vou arrancar a porra da sua cabeça.
- Não, você vai ser uma bela cachorrinha indulger e vai vir aqui se superar. Vai amar seu inimigo e chupar o pau dele.

Ela desligou. Difícil olhar pra ela e não se lembrar da nossa história. Nós nos conhecemos através do pai dela e tivemos um relacionamento de uns 2 meses. Conturbado como qualquer coisa que envolve a mim, o relacionamento acabou com ela fazendo um escândalo numa festa do meu pai. A verdade é que ela sempre foi tão louca e danificada como eu e que até nos dávamos bem, mas que ela fez aquilo pra ficar com Emanuel. Perfeitamente compreensível, já que ele sempre foi um indulger melhor do que eu. Até eu largaria ela por ele, afinal! Foi uma relação de 4 anos, muito mais do que o aconselhado pelo conselho, e no fim das contas eu não sei se somente falhou ou se decidiram terminar porque ele virou indulger. De qualquer maneira, os separou, porque senão eles não poderiam ser indulgers eficientes...!
Depois de um tempo ela descobriu que Emanuel era meu amigo e começou com esse hábito retardado de vir me perguntar por onde ele andava sempre que sentia vontade de ter ele dentro dela pra aquecer seu útero frígido. A questão urgente dela só poderia ser a necessidade de receber o orgasmo que aparentemente só ele conseguia fornecer. Segundo ele, era uma questão circunstancial que os unia, não a habilidade dele. Eu não sei dizer se isso é verdade, porque esse cara tem talento pra ambiguidade: a circunstância pode ser simplesmente que ele sabe chupar frígidas!

- Flyn, responda a porra do telefone! – Meu pai disse na minha tela
- Quem te deixou hackear meu computador?
- Porque você não está trabalhando no software que te pedi?
- Porque eu estou de férias. Sabe o significado dessa palavra?
- Férias não sobe o nome Pinkman.
- bem, lorde Pinkman, que tal você mudar seu nome pra Sir Leagueman? Você já serve esse grupo, afinal!
- Eu comando esse grupo, Flyn. Nós seremos os donos desse mundo!
- Corrigindo, você será dono desse mundo. Eu sou só seu cachorro pra morder quando você manda e fazer programinhas em sigilo.
- Se te incomoda tanto, fique de férias então. Estou com uma nova leva de recrutas pra vestir o protótipo e espero que ao menos morram ao invés de ficarem remoendo bracinhos perdidos dentro de casas trancadas.
- Foda-se. Quer brincar? Então vamos brincar!

Desliguei a comunicação, tomei minhas facas e inseri a ricina. O traje estava pronto e a máscara atrapalhava minha visão, mas decidi seguir usando aquela mesmo pra honrar o filme.
Pra falar a verdade aquela noite foi completamente entediante. Adolescentes retardados e desprotegidos estavam sozinhos em casa. Eu quis brincar com o primeiro, mas com os outros eu decidi só fazer o que devia fazer. Era desligar a comunicação, depois os robôs, depois as trancas eletrônicas e então remover a eletricidade. Você nem precisa mais falar muita coisa: basta você remover, uma por uma, as parafernalhas tecnológicas e as pessoas entram em pânico. Criamos ferramentas pra facilitar nossas vidas e nos tornamos tão dependentes dela que viver sem é como ser uma criança pequena abandonada no meio da selva. O primeiro foi até interessante no começo. Invadi os óculos dele, que ele usava compulsivamente pra tentar fazer ligações mesmo estando sem recepção.

- Hey, quem está falando? – perguntei em tom casual
- Puta merda, graças à Deus!
- Ah, então você acredita em Deus? Que fofo!
- Quem tá falando? – ele perguntou irritado
- Você que me diga: quem tá falando?
- Que palhaçada é essa? Isso é algum tipo de trote?
- Ah, sim, sim. Eu sei um trote, quer ouvir?
- Cara, deu algum problema aqui em casa, chama ajuda pra mim. Para com essa palhaçada.
- Aí é do açougue?
- O que é um açougue?
- Porra, você estragou o meu trote. Seu filho de uma puta!

Acabei entrando na casa dele com a roupa do pânico e a reação dele foi hilária. Tirou os óculos que não pesavam nem meio quilo e começou a bater com eles na minha cabeça e gritar num tom agudo. De fato as antigas previsões estavam certas: os homens perderam sua masculinidade. E isso nada tem a ver com a homossexualidade, pelo que vi nas minhas vítimas. É uma coisa de idade: quanto mais jovem, mais afeminado é o cara. O infeliz conseguiu desmaiar de medo somente porque alguém entrou em sua casa com uma fantasia do século passado. Deprimente! Que aquilo tenha me feito rir balançou meu propósito: comecei a querer fazer tudo pra conseguir algumas risadas. Mas eu sempre fui um cara determinado, então o objetivo tinha que ser o mesmo de antes. Eu iria fazer uma piada do passado se tornar terror real e todos os que riram desse filme (e já morreram) vão pagar!
Enfiei a faca no peito do moleque e liberei 10 miligramas de ricina. Era uma coisinha pequena e frívola sem nenhuma reconstrução ou procedimento plástico. Dentro dez bilhões de habitantes, quem sentiria falta do pobre afeminado?
Conforme planejado, deixei cicatrizadores fecharem a ferida dele e ativei seu robô no local, dando a entender que a máquina salvou sua vida.
Fora esse pequeno incidente, todos os outros sete jovens reagiram da mesma maneira. Gritaram feito crianças, tentaram me estapear e correr, mas não conseguiam nem correr pela casa depois que decidi desligar também seus óculos que já não os avisava sobre obstáculos pelo caminho. Que tipo em mundo vivemos em que jovens não sabem mais fugir de um simples assassino em série?
Com todos eles a encenação foi a mesma. Facada no peito, salvos pelo robô herói que agia sob meus comandos e cicatrizados enquanto o agressor fugia. E ninguém tinha tecnologia pra detectar a porra do veneno. Há 20 anos essa tecnologia está disponível e ainda é luxo!
Voltei pra casa e hibernei em sono sem sonho por dois dias. Por algum motivo essa matança me sugava a energia. Era, de fato, a única coisa capaz de me acalmar, mas ao mesmo tempo parecia que eu mesmo morria por algum tempo depois de fazer essas coisas.
Quando despertei, descobri que formaram um grupo de apoio para os jovens “traumatizados”. Quanta solidariedade! Assisti a uma reunião e me dei conta do quão patética a nossa civilização se tornou. Todos se tornaram vítimas querendo atenção do mundo e sem nada pra dar em troca. Um mundo sem religião, mas com uma população que faria Nietzsche arrancar o bigode! Querem pecar, mas ainda querem o papai do céu pra passar a mão na cabeça. Essas pessoas mereceram a morte que tiveram!
O mais irônico de tudo foi o organizador do grupo atribuir os sintomas do meu veneno a efeitos somatizantes do trauma. Até mesmo as doenças se tornaram apenas problemas psicológicos, tamanha a previsibilidade do mundo contemporâneo. Quem pensaria que um veneno usado há cem anos estaria matando adolescentes medíocres no meio do nada? Até que perceberam depois que o segundo morreu e a cidade realmente entrou em toque de recolher. Aquilo só me inspirou.

- Flyn, tenho um presentinho pra você! – Martha falou
- Porra, Emanuel te passou a ligação direta comigo?
- Não, eu tenho amigos. Acessa o vídeo! Boas festas!

Eu nem sabia, mas estávamos em época de natal. Abri o arquivo que ela me mandou e era um vídeo bidimensional de uma animação 3D. A visão congelou o meu corpo. Eu queria parar de assistir, mas nem meus olhos se moviam. Era um homem correndo com os braços abertos e se chocando contra dois pilares de marsídio. Os braços se separaram do corpo e ele se debateu no chão por alguns segundos sem nenhuma forma de cicatrização. Era eu, dentro daquela merda de traje. Perdi os dois braços e a máquina não desligava. Vi minha vida diante dos meus olhos como quando uns moleques mais velhos queimaram meu rosto num motor de caminhão quando eu era criança. Só que dessa vez foi meu próprio pai que se aproveitou da minha resistência à dor pra me colocar diante da morte.
Eu caí no chão da minha sala e comecei a convulsionar e tive um daqueles malditos lapsos de tempo. Os robôs me seguraram pelo que vi no vídeo, e fiquei me debatendo por um dia inteiro no chão da sala. Limparam minha urina, minha saliva e minha merda. Todo esse maldito avanço e ninguém sabia dizer que porcaria de doença é essa que eu tenho. Bem que eu mereci esse ataque da Martha, depois de confessar o assassinato do pai dela. Mas naquele ponto até o idiota do Peçanha já tinha desistido de me curar e eu não estava com nem um pouco de disposição pra conseguir o conhecimento necessário pra começar a fazer isso por mim mesmo.
Quando acordei, a cidade estava em alerta. Casas trancadas, robôs com sistemas de segurança mais avançados, trancas mecânicas nas portas. E, acredite se quiser, estavam treinando crianças pra correr em ambientes domésticos e encontrar abrigo! Pessoas estavam sendo vacinadas contra minha velha toxina e pensavam realmente que poderiam se defender de mim! Assistir aquilo da minha casa era tão hilário quando ver abelha tentando aplicar ferrão em robôs de crianças destruidoras. Eles vão destruir o ninho, não há nada que os insetos possam fazer, mas eles reagem, porque é tudo o que sabem fazer!
Os meus insetinhos estavam me convidando ao massacre com essas defesas fúteis!
Computador faça a haste pra encaixe da minha lâmina de marsídio. Leia a lâmina. Eu adorava dar comandos na ordem contrária pra confundir os computadores e amava o fato de que você pode fazer isso com esse algoritmo caótico que fizeram na liga.
Pela primeira vez o modelo impresso falhou e a haste não encaixou na lâmina. Tive que fazer medidas manualmente e construir o modelo tridimensional pra me armar. A espada ficou elegante com o fio nanométrico. Pronta pra cortar através do concreto dessas casas ridículas.
Eram casas bem separadas umas das outras, como somente em lugares isolados como aquele permitiam. Tinha árvores reais espalhadas por campos reais. Um disparate numa civilização onde praticamente tudo já havia se tornado artificial e controlado. Era literalmente mato que cresceu por meio de sucessão ecológica! Perfeito pras minhas exibições.
Minha primeira vítima era a mãe do desmaiado. Estava em estado de choque porque sua cria morreu, removendo sua razão de viver. Ou talvez ela simplesmente nunca tivesse tido contato com alguém que posteriormente morreu e esperasse que seu filhote frívolo vivesse pra sempre! Fosse como fosse, parecia imperativo reintroduzir ao mundo a morte. Por incrível que pareça, a perda da noção de finitude estava removendo toda a paixão do mundo!
Bem, decidi ativar meus músculos artificiais e causar estrago!
Qual não foi minha surpresa quando descobri que o nome dela era Sidney!
Aquela maldita dor de cabeça voltou e perdi o controle do lado esquerdo do meu corpo. Ativei o controle artificial dos membros, mas segui com aquela velha sensação de meu braço e minha perna tinham sido removidos, arrancados. E eu removi a tontura, mas mesmo assim continuei sentindo como se não fosse eu mesmo. Há coisas que tecnologia nenhuma resolve. Na tentativa de curar os sintomas da doença mental, acabamos por apenas ocultá-la. Pessoas como eu, diagnosticadas com uma doença pra cada médico, se beneficiam desses tratamentos porque podem ter vidas relativamente normais e se desenvolver cognitivamente. Mas a eterna sensação de que em boa parte do tempo você não é você, mas um artefato tecnológico, já me motivou a simplesmente deixar meu corpo convulsionando no chão. Em momentos quietos eu me perguntei se esse ódio infinito que parece brotar de dentro de mim é fruto das tradições de família ou se é porque tenho genes que me levaram a ser assim. No fim das contas percebi que as duas explicações são perfeitamente compatíveis e simplesmente aceitei quem sou.
Ela estava com um homem pequeno e gordo. Logo que eu ouvi sua voz, percebi que se tratava do pai da minha vítima. Um homem frívolo como o filho, chorando mais do que a própria mulher. Esses arranjos familiares modernos parecem cada vez mais estranhos pra mim. As únicas famílias que parecem funcionar são entre amigos que nunca sequer se tocaram, porque vínculos românticos já não duram o bastante pras pessoas sequer considerarem ter filhos. De fato, a mais nova forma de família é entre homossexuais do sexo oposto, que chegam a morar juntos como se fosse um casal clássico, mas nunca se tocam. A humanidade sempre acaba encontrando um jeito de seguir se propagando como a praga que é, mesmo que seja de maneiras cada vez mais bizarras.
Contra a homossexualidade eu nunca tive nenhum problema. Afinal, isso seria hipocrisia, dado que meus melhores relacionamentos foram com homens. Mas se tem uma coisa que me dá raiva é homem com comportamento frívolo, frágil. O que os gregos atribuíam às mulheres. Eu tive que começar por ele.
Apaguei todas as luzes, desliguei a comunicação e comecei a correr em torno da casa. As pancadas que eu dava nas árvores começou a chamar atenção dos dois e rapidamente Sidney saiu de casa com um rifle de assalto. Minha surpresa foi grande quando ela me rastreou e me atingiu com um tiro na cabeça que me derrubou desorientado no chão. Desativou o reparo do meu cérebro e perdi o controle dos membros esquerdos. Os tiros começaram a destruir toda a minha roupa e ela parecia não perceber que eu estava sob proteção pesada demais pra ser atingido por uma arma daquele porte. Ela gritava enquanto sua arma destruía minha fantasia e eu me arrastava pro refúgio da escuridão. Assim que meu cérebro se recuperou e minha crise acabou eu lancei uma granada sonífera e o jato de gás no rosto a derrubou instantaneamente. Uma cidadã comum, impotente diante dos milhares truques tecnológicos da elite intelectual do mundo.
E o gordinho logo apareceu berrando e correndo na direção da amiga/baby mama. Quando me viu, no entanto, escorregou e caiu no chão. O infeliz bateu de cabeça numa mesinha e desmaiou sozinho. Essa foi uma das razões porque eu passei tanto tempo sem caçar e matar pessoas. Há uns trinta anos atrás você ainda encontrava presas dignas que conseguiam fugir e lutar. Presas como essa Sidney eram coisa comum. Mas a frivolidade tomou conta desse mundo. Estamos seguros demais, acomodados demais. Perdendo cada vez mais o contato com nossas origens caçadoras e assassinas. Como os próprios cães, que foram adestrados através dos milênios para se tornarem dóceis, a maioria das pessoas aceitou esse adestramento frívolo ao ponto de um homem se tornar aquilo que eu via diante de mim.
Coloquei o homem no ombro puxei Sidney pelo cabelo até o Carvalho do quintal dos fundos.  Dando a volta na casa, percebi como ela era velha. Devia ter uns cem anos de idade. Afinal, com uma casa daquele tamanho eles deveriam ricos se fosse uma coisa nova. A tinta nova escondia a madeira podre abaixo. Uma estrutura condenada pelo progresso.
O carvalho era mais novo do que a casa, mas nem por isso deixava de ser velho. Fosse como fosse, Era forte o bastante pra minha brincadeira. Ele tinha cicatrizadores, mas eram antigos, daqueles bem burros que chegavam a matar pessoas. Deitei ele na grama bem na base da árvore e abri um buraco cirurgicamente limpo  na sua barriga, passando camada por camada até chegar ao seu intestino delgado. Eu precisaria de uns 5 metros, então foi o que consegui. O intestino do homem era absurdamente grande, como se a natureza o estivesse obrigando a ser obeso como era. Então usei os próprios cicatrizadores dele pra fechar o que sobrou de tubo digestivo, Deixando o homem com um tubo digestivo minúsculo, mas teoricamente funcional. Os outros órgãos ficaram soltos por uns instantes, mas logo o excesso de gordura tratou de preencher o espaço recém-liberado e a cicatriz cirúrgica foi fechada. Encontrei uma mangueira e joguei agua gelada no rosto daquele bípede desprezível até ele despertar, rapidamente retomando seu pânico juvenil. Mas ele já não conseguia se levantar. Ainda estava se recuperando de sua recente “cirurgia”. Lancei sobre ele um dardo com 10 miligramas de nicotina e ele ficou ainda mais desorientado, embora tenha diminuído seus sinais de medo. Nada mais divertido do que ativar a região responsável pela sensação de “recompensa” do cérebro logo antes de matar uma pessoa: mostra a futilidade e irrealidade das alegrias da vida.
Com seu intestino cheio nas mãos, apertei a musculatura lisa e produzi peristaltismo externo, liberando aquele bolo alimentar fétido na boca dele, porque meu objetivo não era roubar comida. Ele vomitou uma mistura de suco gástrico, sangue e suco de maçã: fiz questão de fazer a análise nanoquímica daquilo. Quando o tubo estava limpo, preparei meu nó de forca e subi na árvore com um salto. Ainda sobrava um tubo anti-asma de nanocelulose no meu compartimento traseiro, então logo inseri ele naquele verme pra me certificar de que ele não seria sufocado. E certamente, com o peso que tinha, ele já tinha instalado sistemas facilitadores de circulação sanguínea, de maneira que não tinha como ele morrer rápido. Amarrei e preguei o intestino em um ramo grande enquanto ele chorava.

- Por favor, pelo amor de Deus! O que eu fiz pra merecer isso?
- Você nasceu, porco, e polui o mundo com sua existência.

Logo depois de fazer isso, meu chute o derrubou, impedindo que ele seguisse implorando. Ele tossia e se debatia em pleno, possivelmente na esperança de quebrar o galho, mas era grosso demais até pra alguém com o peso dele. Sidney já estava próxima de despertar, embora estivesse bem longe de se livrar da desorientação que aquele tranquilizante causa. Se debatia em algum tipo de pesadelo, então decidi acordá-la com alguns tapas na cara pra que ela pudesse ver o espetáculo. Acordando, ela viu o homem se debatendo, a cada segundo menos disposto. A vida estava se esvaindo aos poucos, já que menos sangue chegava até o cérebro e os neurônios iam morrendo aos poucos. Daquele jeito ele levaria meia hora pra morrer porque a tecnologia da sua corrente sanguínea impedia a obstrução de veias e artérias e meu aparelho de asma impedia que ele se sufocasse. Era um dano constante, irreversível e fatal.
Sidney estava deitada de bruços e eu estava sentado sobre suas costas assistindo o espetáculo. “como seria”, imaginei, “se ela o salvasse agora?” De certo ele já estaria levemente demenciado. Ela ia se fortificando a cada minuto enquanto a luta ia deixando os olhos de seu companheiro. A partir daquele dia, ela teria que associar seu fortalecimento e recuperação à morte de seu “amor”, pai de sua cria morta. Sozinha no mundo e sem perspectiva, aquela mulher sofreria mais que seu moribundo marido. Ponderei, por um instante, não mata-la.

- Seu... Filho de uma puta... – ela disse
- Oh, já ganhou força pra falar, doce?

Virei ela de barriga pra cima e  vi suas lágrimas de ódio escorrendo pelo rosto. Limpei as lágrimas enquanto ela passava as mãos pelo corpo. Encontrou uma arma e, por incrível que pareça, conseguiu dar dois tiros no meu peito antes de a arma cair de suas mãos. Mas ela sabia que aquela pistola não tinha como me ferir.

- Eu vou te matar. Um dia eu vou ter a sua cabeça...

Eu não conseguia parar de rir. O cara parecia ser capaz apenas de pequenos espasmos e ela alternava entre olhar pra mim e olhar pra ele. Num instante ela pareceu ter um insight e pegou algo no bolso direito da calça. Uma injeção de adrenalina! Que tipo de civil carrega algo assim no bolso? Não pude resistir. Tomei a injeção dela e injetei em seu coração. Ela respirou fundo e rapidamente se soltou de mim. Correu na direção de seu amigo, que naquele ponto já estava morto. Seu abraço e seu choro chegaram a me comover e pela primeira vez em muito tempo eu me senti vivo. Mas já era hora de dar fim à brincadeira e matar a cadela. Segurei seus cabelos negros e a puxei pra trás, mas ela se debateu e lutou. Socos, chutes e até mordidas na minha roupa. A mulher simplesmente nunca parava de me enfrentar, não importando o quão desesperadora fosse a situação. Seus gritos ecoavam pelo campo. Quando finalmente levantei minha espada pra remover sua cabeça, meu pai apareceu.

- Então é assim, vai desrespeitar a sua mãe assim? – ele disse
- O que... O que você tá fazendo aqui?
- Pensa que eu não sei o que você anda fazendo, geniozinho da computação? Eu te conheço. Você ficou traumatizadinho de novo e agora quer desrespeitar a sua mãe.
- Isso não tem nada a ver com ela!
- Não, claro, porque ela não foi decapitada, né? Pensa que não sei quantas mulheres você já matou assim?
- Isso não tem nada a ver com ela, você não sabe de nada.

E foi por aí que o diálogo acabou. Ele lançou uma esfera estranha na minha cabeça e eu ativei a defesa contra neuralização, mas ela não fez mais do que abrir meus olhos e mostrar meu braços sendo arrancado dentro daquele traje maldito. E quando eu berrei o vídeo se repetiu, dessa vez em câmera lenta. Eu podia ver as pequenas fibras de musculo sendo rompidas, podia ver minha dor agonizante. Caí no chão em terror e gritei até ficar inconsciente. Quando acordei, já estava naquele maldito hospício com uma camisa de força e paredes acolchoadas.
Alguém deixou a tela que ficava no teto da sala com um pequeno vídeo que eu poderia comandar que fosse executado. Era o rosto do meu pai em uma conferência midiática e tinha só alguns segundos.


“A ciência é justa, e ela deve sempre ser imparcial. Não há como negar que meu filho é um psicopata. Embora no meu coração eu acredite que ele possa um dia ser curado, é irracional que ele seja livre. Que fique claro hoje que nenhuma emoção ou fraqueza ou preconceito deve regular nosso mundo. Hoje eu abro mão da minha família pelo bem do mundo.”

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